Teatro/CRÍTICA
"Agosto"
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Excelente montagem de um texto belíssimo
Lionel Fischer
Tudo se passa em uma pequena cidade do interior dos Estados Unidos. Poeta e alcoólatra, Beverly é casado com Violet, que tem um câncer na boca e é viciada em remédios. Na primeira cena, vemos Beverly contratando uma empregada para ajudar Violet - trata-se de uma índia cheyenne chamada Johnna, que logo passa a sofrer ataques racistas de Violet. Essa contratação, aparentemente bem intencionada, e sem deixar de sê-lo, na verdade oculta o que dispara a trama: Beverly desaparece e nunca mais retorna - acaba sendo descoberta uma carta sua revelando que vai se suicidar.
Em vista desse desaparecimento, a família se reúne. Violet e Beverly tem três filhas. Barbara está em processo de divórcio com Bill, e tem um relacionamento conturbado com a filha adolescente Jean; Karen está noiva daquele que será seu terceiro marido, Steve; Ivy, que ainda vive na casa dos pais, esconde um relacionamento com o primo Charles, que mais tarde se descobrirá que é mais do que seu primo.
Caso estivéssemos diante de uma família normal, o desaparecimento de Beverly geraria uma inevitável angústia. Mas como não existem famílias normais, o sumiço do patriarca e a posterior constatação de que se suicidara (ainda que seu corpo nunca tenha sido encontrado), faz aflorar uma série de graves conflitos, alguns previsíveis, mas outros totalmente inesperados.
Eis, em resumo, o enredo de "Agosto", peça do norte-americano Tracy Letts que ganhou os prêmios Tony (melhor texto) e Pulitzer (melhor drama) e que foi levado às telas com o título "Álbum de Família", tendo como protagonistas Meryl Streep (Violet) e Julia Roberts (Barbara).
Em cartaz no Oi Futuro Flamengo, a montagem conta com adaptação e direção de André Paes Leme, estando o elenco formado por Guida Vianna (Violet), Letícia Isnard (Barbara), Alexandre Dantas (Steve), Claudia Ventura (Karen), Claudio Mendes (Charlie), Eliane Costa (MettieFae), Guilherme Siman (Charlie Júnior), Isaac Bernat (Beverly/Bill), Julia Schaeffer (Johnna), Lorena Comparato (Jean) e Marianna Mac Niven (Ivy).
Como não conhecia o texto (e tampouco vi o filme), não tenho como avaliar a adaptação feita por André Paes Leme. Seja como for, e antes de mais nada, quero manifestar minha enorme satisfação por ter entrado em contato com uma obra contemporânea de grande densidade, plena de conflitos exasperantes e viscerais, sendo os mesmos materializados por personagens magnificamente construídos e que contracenam através de diálogos da mais alta teatralidade.
E mais: a peça em questão, ao contrário de tantas que se inserem na chamada Moderna Dramaturgia (não tenho nada contra a dita Moderna Dramaturgia, desde que de qualidade), não impõe ao espectador hercúleos esforços de compreensão, não o coloca diante de contextos que podem ter infinitos significados, cabendo a cada um escolher o seu - esta é uma das principais características das chamadas Obras Abertas, que, muitas vezes, são tão abertas que acabam não querendo dizer nada, pelo simples fato de que o autor também não sabia exatamente o que pretendia. Isto posto, e imaginando já ter enaltecido suficientemente o texto, vamos ao espetáculo.
Como a ação se passa em vários cômodos da casa, e sendo impossível materializá-la em um palco de pequenas dimensões, André Paes Leme fez duas opções. A primeira: inicialmente a personagem Johnna atua como narradora, especificando a geografia local. A segunda: algumas cenas, que acontecem em espaços diferentes, são exibidas ao mesmo tempo, sem que isso acarrete nenhum transtorno no tocante à compreensão. Afora isso, cabe ressaltar a expressividade das marcações, a precisão dos tempos rítmicos e a capacidade do encenador de extrair ótimas atuações de todo o elenco.
Na pele de Violet, Guida Vianna, que está completando 40 anos de carreira, exibe performance magnífica encarnando uma personagem dificílima, pois além do drama que a acomete (o câncer) e dos remédios que têm que tomar, Violet sugere uma mulher em vias de enlouquecer, e que portanto demanda cuidados especiais. No entanto, a partir de um certo ponto, se percebe que ela é a mais lúcida da família, e que se cuidados especiais se fazem necessários, estes dizem respeito muito mais aos outros do que a ela própria. Sob todos os aspectos, um trabalho memorável e inesquecível.
A mesma eficiência se faz presente na performance de Letícia Isnard, atriz cujo imenso talento lhe permite transitar com o mesmo brilho tanto pela comédia como pelo drama. Aqui, evidentemente, o drama predomina, e Letícia extrai tudo que é possível de uma mulher que afronta permanentemente o ex-marido, ainda que o ame, e não hesita em exercer sua liderança com uma agressividade que sugere alguém capaz de chegar a atos extremados - ainda assim, a atriz também consegue valorizar toda a fragilidade e desamparo que a personagem se empenha tanto em ocultar.
Alexandre Dantas explora com propriedade a canalhice inerente a Steve, que mesmo diante do grave contexto não hesita em assediar a adolescente Jean. Claudia Ventura está irrepreensível como Karen, mulher que, em função de um próximo casamento, aceita toda a já mencionada canalhice de Steve, além de valorizar ao máximo a passagem em que questiona os afetos familiares. Claudio Mendes faz com total segurança o apaziguador Charlie, cabendo a Eliane Costa defender com vigor uma personagem de intolerável capacidade desagregadora. Guilherme Siman valoriza com sensibilidade o tímido Charlie.
Como de hábito, Isaac Bernat demonstra seu grande talento, seja na breve participação como Beverly, seja vivendo Bill, personagem que passa grande parte da peça tentando sofrear a agressividade da ex-esposa Barbara e empreendendo comoventes esforços para ao menos amenizar a gravidade do contexto. Julia Schaeffer exibe impecável atuação como Johnna, materializando tanto a doçura quanto a firmeza da personagem. Lorena Comparato faz muito bem a revoltada e agressiva adolescente Jean, a mesma eficiência presente na performance de Marianna Mac Niven (Ivy) - só me permito sugerir à atriz que se empenhe ao máximo em conferir maior potência e alcance para sua voz, o que certamente lhe permitirá trabalhar seus textos com maiores nuances.
No tocante à equipe técnica, considero irrepreensíveis as colaborações de todos os profissionais envolvidos nesta mais do que oportuna empreitada teatral - Carlos Alberto Nunes (cenografia), Patrícia Muniz (figurino), Renato Machado (iluminação), Ricco Vianna (música) e Guilherme Siman (tradução).
AGOSTO - Texto de Tracy Letts. Direção e adaptação de André Paes Leme. Com Guida Vianna, Letícia Isnard, Alexandre Dantas, Claudia Ventura, Claudio Mendes, Eliane Costa, Guilherme Siman, Isaac Bernat, Julia Schaeffer, Lorena Comparato e Marianna Mac Niven. Oi Futuro Flamengo. Quinta a domingo, 20h.
terça-feira, 8 de agosto de 2017
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