sexta-feira, 8 de junho de 2018

Teatro/CRÍTICA

"Ouvi dizer que a vida é boa"

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Belíssima reflexão sobre a passagem do tempo



Lionel Fischer



"Há alguns anos atrás, num  jornal de domingo, uma das entrevistadas numa matéria sobre terceira idade era uma senhora, moradora do Rio de Janeiro, que afirmava que um grande sonho que nunca havia realizado era ver o mar. Indagada sobre as razões de nunca ter visto o mar tendo morado tão perto dele durante praticamente toda a vida, ela respondeu: "Ah, uma hora é uma coisa, outra hora é outra, o tempo vai passando".

Extraído do programa oferecido ao público, o trecho acima motivou a criação de "Ouvi dizer que a vida é boa", em cartaz no Espaço SESC - Arena. João Batista Leite assina o texto e a direção do espetáculo, que marca os 24 anos de existência da Cia. Dramática de Comédia. No elenco, Ana Moura, Carol Machado, Cleiton Rasga, Giselda Mauler, Lucas Miranda, Luciano Moreira e Sonia Praça. 

Não são poucos aqueles que sustentam, não raro com grande veemência, que uma peça de teatro importante tem que necessariamente partir de uma boa ideia. Embora não despreze essa premissa, penso de forma radicalmente oposta e sempre que instado a explicitar o porquê de tal pensamento, cito como exemplo aquela que é considerada uma das melhores peças já escritas:  "Hamlet", de Shakespeare.

Como se origina a citada obra-prima? Um jovem príncipe é informado pelo fantasma de seu pai que foi assassinado pelo irmão, amante da rainha, e pede ao filho que o vingue. Pois bem: o que há de extraordinário nesta premissa? Absolutamente nada. O que confere deslumbrante grandeza ao texto é a forma como Shakespeare, ao longo de cinco atos, mergulha profundamente em aspectos essenciais da natureza humana, para tanto valendo-se de uma ação avassaladora e de personagens magnificamente construídos. 

No presente caso, estamos diante de uma mulher que se ressente de nunca ter visto o mar, apesar de morar não muito distante dele. Ora, isto em si não constitui nada de extraordinário. No entanto, me parece que tal fato não deva ser encarado em seu sentido literal e sim metafórico. Posso estar enganado, naturalmente, mas penso que o autor objetivou demonstrar que não ver o mar é muito menos relevante do que não ver a vida, ou seja, limitar-se a uma postura passiva e conformada, sempre adiando sonhos e renunciando aos próprios desejos.  

Neste sentido, e ainda que estruturando sua obra em um contexto habitado por personagens cuja simplicidade é a tônica, não hesito em afirmar que João Batista Leite nos brinda com um texto maravilhoso, posto que aborda com extrema sensibilidade temas da maior relevância, tais como a renúncia do indivíduo em ser agente de sua própria história e, em especial, a passagem do tempo.

Todos nós sabemos que o tempo passa. Mas como passa o tempo de cada um de nós? Será que lutamos bravamente pela materialização de nossos sonhos? Será que só desistimos deles, ou ao menos de alguns, quando atingimos o limite de nossas forças? Ou será que, como faz a protagonista da peça, aos poucos nos acomodamos e passamos a cumprir exigências de um contexto que jamais ambicionamos? 

Outro ponto de extrema relevância diz respeito à estrutura da escrita. De uma maneira geral, o autor trabalha com formulações que, embora simples, jamais são respondidas. Todos os desejos são inevitavelmente protelados, sem que se saiba exatamente por que. Tudo está atrelado a possibilidades futuras, que jamais se concretizam, esvaziando por completo o tempo presente. Assim, a passagem do tempo adquire contornos cada vez mais amargos, ainda que o autor minimize tal amargura com passagens impregnadas de irresistível humor. Ou seja: o trágico e o risível convivem irmanados, o que certamente contribui para o total envolvimento da plateia com a trama que lhe é apresentada.

Bem escrito, contendo ótimos personagens e uma ação que nos toca profundamente, o texto recebeu excelente versão do autor. Valendo-se de marcações imprevistas e criativas, e trabalhando os tempos rítmicos de forma irrepreensível, afora isso João Batista Leite extraiu ótimas atuações de todo o elenco, a começar pela da protagonista, Carol Machado.

Vivendo Ela, a atriz exibe uma vez mais alguns de seus reconhecidos predicados, tais como ótima voz, expressividade corporal, inteligência cênica e inegável carisma, cabendo também ressaltar a impecável forma como a intérprete desenha toda a trajetória da personagem, da infância à maturidade. Sob todos os aspectos, estamos diante de um dos melhores desempenhos da atual temporada. Quanto ao restante do elenco, a todos parabenizo com o mesmo entusiasmo, posto que defendem com a mesma competência os muitos personagens que interpretam - cabe também registrar que todos cantam muito bem e tocam vários instrumentos de forma irrepreensível.  

No tocante à equipe técnica, Renato Machado ilumina a cena com grande sensibilidade, contribuindo de forma decisiva para realçar os múltiplos climas emocionais em jogo, cabendo destacar alguns momentos em que focos são acionados em sequência, no sentido contrário ao do relógio, como a sugerir que o tempo da realização dos desejos está passando e nada acontece. Mauro Leite Teixeira responde por figurinos altamente sugestivos, posto que remetem, em alguma medida, à ingenuidade de festas juninas. Também de excelente nível são a preparação vocal de Paula Bentes Leal, a despojada e funcional cenografia de Dóris Rollemberg Cruz, e a trilha sonora original e direção musical de Marcelo Alonso Neves - com relação às canções, gostaria de confessar que algumas me geraram uma tal angústia que chego a supor que, se estivesse sozinho no teatro, provavelmente haveria de carpir como uma lavadeira grega.

OUVI DIZER QUE A VIDA É BOA - Texto e direção de João Batista Leite. Uma realização da Cia. Dramática de Comédia. Com Ana Moura, Carol Machado, Cleiton Rasga, Giselda Mauler, Lucas Miranda, Luciano Moreira e Sonia Praça. Espaço SESC - Arena. Quinta a sábado, 20h30. Domingo, 19h.  


2 comentários:

  1. Assisti. Linda peça. Difícil sair do teatro sem questionar pq adiamos tantos projetos no decorrer de nossas vidade como nos acomodamos confortavelmente.

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  2. Tem razão, amiga.
    e o tempo passa tão rápido...

    beijos,

    eu

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