terça-feira, 24 de julho de 2018

Teatro/CRÍTICA

"As mil e uma noites"

.................................................................................
O contundente e mágico poder das palavras



Lionel Fischer



Pensando nos leitores que desconhecem a origem e o contexto de "As mil e uma noites", passo a uma breve exposição. Trata-se de uma coleção de histórias e contos populares originárias do Médio Oriente e do sul da Ásia e compiladas em língua árabe a partir do século IX. No mundo moderno ocidental, a obra passou a ser amplamente conhecida a partir de uma tradução para o francês realizada em 1704 pelo orientalista Antoine Galland, transformando-se num clássico da literatura mundial.

As histórias que compõem "As mil e uma noites" têm várias origens, incluindo o folclore indiano, persa e árabe. Não existe uma versão definida da obra, uma vez que os antigos manuscritos árabes diferem no número e no conjunto dos contos. O que é invariável nas distintas versões é que os contos estão organizados como uma série de histórias narradas por Xerazade, esposa do rei Xariar.

Este rei, louco por haver sido traído por sua primeira esposa, desposa uma noiva diferente todas as noites, mandando matá-las na manhã seguinte. Xerazade consegue escapar a esse destino contando maravilhosas histórias sobre diversos temas que captam a curiosidade do rei. Ao amanhecer, Xerazade interrompe cada conto para continuá-lo na noite seguinte, o que a mentém viva ao longo de várias noites - as mil e uma do título - ao fim das quais o rei já se arrependeu de seu comportamento e desistiu de executá-la.

Uma pequena parte do acima exposto é comunicada ao público no início do espetáculo, mas este revela muitas surpresas, sendo a principal o entrelaçamento de uma das histórias do livro original - ao longo da temporada, 33 histórias serão contadas - com relatos atuais de refugiados árabes que vivem no Rio de Janeiro. A cada noite uma das atrizes interpreta Xerazade, conduzindo a narrativa e também atuando como uma espécie de diretora de cena, dando o texto (que está em suas mãos) em voz baixa para os demais intérpretes e orientando suas entradas e saídas de cena, assim como sua disposição no palco. 

Eis, em resumo, o contexto em que se dá a mais recente produção da Cia. Teatro Voador Não Identificado, em cartaz no Oi Futuro Flamengo. Leandro Romano responde pela concepção e direção do espetáculo, estando a dramaturgia e adaptação a cargo de Gabriela Giffoni  e Luiz Antonio Ribeiro. No elenco, Adassa Martins, Bernardo Marinho, Clarice Zarvos, Elsa Romero, Gabriel Vaz, João Rodrigo Ostrower, Julia Bernat, Larissa Siqueira, Pedro Henrique Müller e Romulo Galvão. 

Partindo da premissa de que todas as histórias que compõem "As mil e uma noite" são fascinantes, não vou me deter na que foi apresentada na noite em que assisti o espetáculo, priorizando duas questões: a dupla função da atriz que interpreta Xerazade e o já mencionado entrelaçamento das histórias com relatos atuais de refugiados árabes.

A primeira ideia é excelente, dentre outras razões porque coloca o espectador em um estado de permanente escuta, fato  raríssimo hoje em dia graças às redes sociais e suas múltiplas variantes, que têm como principal virtude a patética volúpia de quem fala e seu total desinteresse pela fala do outro - neste sentido, e mesmo arriscando-me a ser apedrejado como a adúltera da Bíblia, ouso afirmar que a internet deu voz a incontáveis legiões de imbecis.

A segunda questão, referente à inserção dos depoimentos de refugiados árabes, pode ser interpretada de várias maneiras. Opto pela que se segue. O que é um refugiado? É alguém que, por variadas razões, foi forçado a deixar sua pátria e tentar seguir sua vida em outro país. Mas para que isso seja viável, antes de mais nada ele tem que aprender a falar o idioma local, posto que do contrário não será entendido e jamais conseguirá trabalho. 

Tudo, portanto, está basicamente atrelado à palavra. E foram as palavras que prolongaram a vida de Xerazade e, mais do que isso, demoveram o rei de seus propósitos homicidas. Assim, julgo totalmente pertinente o entrelaçamento das palavras ficcionais com as verdadeiras, afora o fato de que as últimas possibilitam ao espectador entrar em contato com realidades não raro impregnadas de amargura e de uma profunda dor.    

Quanto ao espetáculo, Leandro Romano impõe à cena uma dinâmica encantadora, quando a ficção predomina, e extremamente  contundente quando o foco recai sobre os relatos, posto que nesses momentos os intérpretes não incorporam nenhum personagem, apenas dão seus depoimentos, olhando os espectadores nos olhos. E esta permanente alternância, que em princípio poderia gerar alguma dispersão, só contribui para enfatizar o poder das palavras, e sua inegável capacidade de se fazer fecunda no coração daqueles que ainda acreditam que ninguém detém o monopólio de verdade alguma. 

E se é verdade que pelo fato de pensar eu existo, tenho que considerar que o outro também pensa, e que também existe. Então, será que não é possível pensarmos e existirmos juntos, mesmo que nossos pensamentos nem sempre coincidam e nossas existências sejam diversificadas? Eu, particularmente, acredito que sim. E, salvo monumental engano de minha parte, acredito que a equipe do presente espetáculo comunga da mesma crença.

Com relação ao elenco, na noite em que assisti o espetáculo Adassa Martins encarnava Xerazade. E mais uma vez me vi totalmente fascinado por sua forte presença, enorme carisma e uma segurança que a fez contornar, com absoluta serenidade, um pequeno problema com um dos microfones. Trata-se, sem a menor dúvida, de uma das mais brilhantes atrizes de sua geração. Quanto aos demais intérpretes, todos contribuem de forma decisiva para o êxito de um dos melhores espetáculos da atual temporada.

Na equipe técnica, parabenizo com o mesmo entusiasmo as preciosas colaborações de Elsa Romero (cenografia), Gaia Catta (iluminação), Lia Maia (figurinos) e Felipe Ventura e Gabriel Vaz (trilha sonora original).

AS MIL E UMA NOITES - Concepção e direção de Leandro Romano. Dramaturgia e adaptação de Gabriela Giffoni e Luiz Antonio Ribeiro. Com Adassa Martins, Bernardo Marinho, Clarice Zarvos, Elsa Romero, Gabriel Vaz, João Rodrigo Ostrower, Julia Bernat, Larissa Siqueira, Pedro Henrique Müller e Romulo Galvão. Oi Futuro Flamengo. Sexta a domingo, 20h.




Nenhum comentário:

Postar um comentário