sexta-feira, 20 de julho de 2018

Teatro/CRÍTICA

"A peste"

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Obra-prima em belíssima versão



Lionel Fischer



Ambientado em Oran, pequena cidade da Argélia, o romance "A peste" retrata inicialmente o cotidiano monótono dos habitantes, sua meticulosa rotina. Inesperadamente, toda a normalidade sofre inexplicável abalo: ratos agonizam por toda a parte e depois de um tempo a morte também atinge os moradores. E à medida que cresce o número de vítimas, o que de início resumia-se a mera preocupação converte-se em horror generalizado.

Eis, em resumo, o enredo do romance de autoria do escritor, dramaturgo e filósofo franco-argelino Albert Camus (1913-1960).  Em cartaz no Teatro II do CCBB, a presente montagem tem adaptação assinada por Pedro Osório, que sintetizou a obra em cima da narrativa do médico Bernard Rieux. O personagem também é interpretado por Osório, estando a direção a cargo de Vera Holtz e Guilherme Leme Garcia, com a colaboração de Gustavo Rodrigues.  

Como a presente obra já mereceu verdadeiros tratados de filósofos, ensaístas e críticos literários infinitamente mais capazes do que eu, julgo pueril ter a pretensão de acrescentar algo ao que já foi dito. Ainda assim, e apenas visando o espectador que não tenha lido "A peste", informo que o romance costuma ser interpretado ora como uma alegoria ao nazismo - e, por extensão, a todos os regimes totalitários -, ora sob um viés filosófico-existencial. 

Mas creio que ambas as interpretações não são excludentes, posto que assim como os regimes totalitários produzem dor, medo e solidão, os mesmos sentimentos estão presentes ante a iminência da morte gerada por uma doença. A única diferença entre ambas as mazelas é que a doença nos coloca diante de algo que normalmente nos aterroriza: a consciência da própria finitude. No entanto, nada me impede de acreditar que a perspectiva da morte pode modificar a postura dos homens perante si mesmos e o mundo, redefinindo valores e talvez resgatando o que de mais essencial existe nas relações humanas.

A presente adaptação, ainda que centrada em um único personagem, que no romance é também o narrador da história, sintetiza de forma admirável as questões fundamentais da obra-prima escrita por Camus. E ainda que os aspectos políticos sejam mais evidentes, nem por isso os filosóficos foram desprezados. E isto me parece evidente tanto na encenação quanto no trabalho do intérprete.

Em quase toda a montagem, o ator Pedro Osório se dirige à plateia com um misto de indignação e revolta, como se pretendesse sacudir consciências adormecidas - em alguns momentos, é claro, tal ênfase é reduzida, em especial quando o personagem permite o aflorar de seu próprio desespero e fragilidade. Por outro lado, e numa clara alusão a outra obra de Camus, "O Mito de Sísifo", o personagem passa quase todo o tempo transferindo pedaços de carvão de uma enorme pilha para criar outra no lado oposto do palco, aparentemente sem a menor finalidade. 

Em "O Mito de Sísifo", o personagem da mitologia grega é condenado a repetir eternamente a tarefa de empurrar uma pedra até o topo de uma montanha. No entanto, sempre que está prestes a alcançar seu objetivo, a pedra rola novamente montanha abaixo até o ponto de partida, invalidando todo o enorme esforço despendido. E é aqui que Camus introduz sua filosofia do absurdo: o que deve fazer um homem que busca sentido, unidade e clareza em um mundo ininteligível, desprovido de Deus e de eternidade? A resposta parece óbvia: o suicídio. No entanto, Camus desconsidera a morte voluntária e propõe a Revolta.

Ou seja: a montagem cometeria um erro crasso se nos fizesse crer que Rieux havia se rendido a um destino inexorável, caso ele concluísse totalmente a segunda pilha de pedaços de carvão e iniciasse um processo de transferência da mesma para seu lugar de origem. Mas ele não o faz, não perpetua o inócuo e angustiante ciclo. E sua recusa está impregnada de lucidez e revolta. E também da consciência que possui de que valores como o amor, a solidariedade e a compaixão ainda não foram completamente banidos, e que, portanto, ainda podem ser resgatados.

Vera Holtz e Guilherme Leme Garcia (com a colaboração de Gustavo Rodrigues) criaram uma encenação áspera e angustiante, em total sintonia com os conteúdos essenciais da obra. E Pedro Osório materializa aqui uma das melhores performances de sua carreira, exibindo forte presença cênica e total consciência tanto dos aspectos políticos como dos filosóficos presentes neste que é um dos melhores romances escritos no século XX.

Na equipe técnica, cabe destacar a expressividade da cenografia criada pela equipe que compõe o espetáculo, a mesma expressividade presente na sombria e claustrofóbica iluminação de Adriana Ortiz, no figurino de Ana Roque, na direção de movimento de Toni Rodrigues e na trilha sonora de Marcello H - esta última contribui decisivamente para ressaltar, de forma admirável, as passagens mais trágicas da encenação. 

A PESTE - Texto de Alberrt Camus. Adaptação de Pedro Osório. Direção de Vera Holtz e Guilherme Garcia Leme, com a colaboração de Gustavo Rodrigues. Com Pedro Osório. Teatro II do CCBB. Quinta à segunda, 19h30. 

      







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