quarta-feira, 31 de outubro de 2018

Teatro/CRÍTICA

"Corpos opacos"

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Belíssima montagem no Sesc


Lionel Fischer



"As freiras coroadas da Colômbia, que até o século XIX experimentaram a clausura absoluta no mosteiro de Santa Clara, em Bogotá, foram fonte de inspiração para a presente peça. Fortemente marcada por imagens e pela performatividade, a peça investiga o repertório de retratos póstumos de las monjas coronadas, que mantiveram em vida seus corpos velados ao olhar do mundo exterior para, depois de mortas, serem retratadas por pintores.
As imagens dessas mulheres religiosas exemplares podem ser vistas até hoje em diversos museus na Colômbia: corpos opacos, adornados com coroas de flores e vestidos com mortalhas bordadas desde muito jovens pelas próprias freiras para o grande dia da consumação do seu cassamento místico com Cristo: o dia da morte".

Extraído (e levemente editado) do release que me foi enviado, o trecho acima sintetiza o contexto em que se dá "Corpos opacos", em cartaz no Teatro Sesc Copacabana (Sala Mezanino). Carolina  Virgüez e Sara Antunes respondem pela idealização, dramaturgia e atuação, cabendo a direção do espetáculo a Yara de Novaes.

Estamos diante de um contexto que possibilita várias reflexões. Se  as freiras eram mantidas em absoluta reclusão, o normal seria que ao morrerem fossem simplesmente sepultadas. No entanto, antes disso tinham seus rostos adornados com coroas de flores e eram retratadas por pintores. Ou seja: nasciam para o mundo no momento em que o abandonavam. Mas qual o sentido de se perpetuar a imagem de alguém que não manteve nenhum contato com o mundo exterior? 

Outra questão intrigante, que a mim se afigura um tanto mórbida, diz respeito ao fato de que as próprias freiras teciam, ao longo de suas vidas, suas próprias mortalhas. Como presumo que o faziam voluntariamente, que pensamentos lhes ocorria durante esse processo? Será que acreditavam piamente que um dia haveriam de materializar um místico casamento com Deus? E ainda que acreditassem, conseguiriam reprimir impulsos afetivos inerentes ao ser humano ou eventualmente a eles sucumbiam? E caso isso acontecesse e viesse à tona, que tipo de punição estaria reservada àquelas que transgredissem as rígidas normas do mosteiro? Enfim...paro por aqui pois do contrário acabaria enfadando o leitor com uma infinidade de interrogações. Vamos ao texto e ao espetáculo.

Este se inicia com uma breve e divertida exposição do contexto - a diversão fica por conta da proposital falta de sincronia entre as narradoras, que mais adiante assumem as personagens que realmente importam. No tocante às palavras proferidas, todas contribuem para aprofundar nosso conhecimento a respeito de existências tão singulares. Mas são as imagens o grande trunfo da montagem. E aqui escolho a que me pareceu mais potente e reveladora.

Em dado momento, as duas freiras executam a mesma tarefa: limpar o chão com um pano. Uma delas está de cócoras e não sai do lugar. A outra percorre o espaço lentamente, impulsionando o pano com os pés. Ambas agem mecanicamente, como que  desprovidas de qualquer humanidade. No entanto, de repente começa a se escutar a canção "Cuando calienta el sol", cuja letra é impregnada de paixão. Então, pouco a pouco, o movimento de ambas se acelera e finalmente elas dançam loucamente, exibindo aquele tipo de furiosa alegria que toma conta de todo aquele que, ao menos por um momento, consegue se libertar das amarras - físicas e mentais - que o aprisionam. Esta passagem, tão imprevista como maravilhosamente executada, contagia de forma inequívoca toda a plateia - no meu caso, cheguei a cantar baixinho a letra e por muito pouco não me pus a bailar...

Esta bela montagem exibe mais uma vez a capacidade de Yara de Novaes de impor à cena uma dinâmica expressiva e jamais previsível, repleta de imagens poderosas e impecável no tocante aos tempos rítmicos. Afora isso, cabe ressaltar a altíssima qualidade das performances de Carolina Virgüez e Sara Antunes, tanto em termos vocais como corporais, afora a capacidade de ambas de se entregarem visceralmente a todas as emoções em jogo. Sob todos os aspectos, duas atuações que se inserem entre as melhores da atual temporada.

Com relação à equipe técnica, parabenizo com o mesmo entusiasmo as preciosas colaborações de Márcio Medina (direção de arte), Wagner Antônio (iluminação), Natalia Mallo (direção musical), Ana Paula Lopez e Yara de Novaes (direção de movimento), Mary Kunha (preparação corporal) e a colaboração artística de Marco André Nunes e Pedro Kosovski.

CORPOS OPACOS - Idealização, dramaturgia e atuação de Carolina Virgüez e Sara Antunes. Direção de Yara de Novaes. Teatro Sesc Copacabana (Sala Mezanino). Quarta a domingo, 20h.



























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