segunda-feira, 22 de outubro de 2018

Teatro/CRÍTICA

"Memórias do esquecimento"


.....................................................................................
Dilacerante relato sobre os horrores do regime militar



Lionel Fischer



"O espetáculo conta em primeira pessoa a história do jornalista Flavio Tavares, cujo livro homônimo foi vencedor do Prêmio Jabuti de Literatura em 2.000. O livro é um retrato descarnado e cru sobre a prisão e a tortura após o golpe militar de 1964 no Brasil. Tavares foi preso três vezes entre 1964 e 1969. Passou por sessões de tortura e foi um dos presos trocados pelo embaixador americano Charles Elbrick, sequestrado em 1969, episódio que em 2019 completa 50 anos. Cabe também registrar que, uma vez exilado, Tavares esteve no México, na Argentina e, em 1977, ao viajar da Argentina para o Uruguai, foi sequestrado pela repressão uruguaia, sendo torturado e ficando desaparecido por quase 30 dias. Depois, passou mais seis meses em uma prisão nesse país".

Extraído (e levemente editado) do ótimo release que me foi enviado, o trecho acima sintetiza o contexto em que se dá "Memórias do esquecimento", em cartaz no Teatro Poeirinha. Daniela Pereira de Carvalho e Bruce Gomlevsky assinam a adaptação do texto, estando a direção e a interpretação a cargo de Gomlevsky, que está completando 25 anos de carreira.  

Aqueles que não viveram o período da ditadura militar, certamente o mais sombrio de nossa História, talvez não consigam entender como o país do samba, da cerveja e do futebol possa ter sido palco de tantos horrores, perpetrados por aqueles que, em nome de Deus, da Pátria e da Família, julgaram-se no direito de impor sua tirania sob o pretexto de que, assim agindo, estariam evitando que o comunismo aqui se instalasse. 

Tratou-se, evidentemente, de grotesca falácia, que só uns poucos ousaram contestar, posto que seguiam acreditando na utopia de uma sociedade que haveria de privilegiar a igualdade e a liberdade de expressão. Flavio Tavares estava entre esses sonhadores e por isso pagou um preço tão alto. Mas felizmente, ao contrário de tantos outros, Tavares não apenas sobreviveu como também foi capaz de nos brindar com um livro extraordinário, que explicita a medonha metodologia da tortura e as conseqüências físicas e psíquicas que assolaram aqueles que padeceram nos porões criados pelo abjeto regime militar.  

A ótima adaptação de Daniela Pereira de Carvalho e Bruce Gomlevsky sintetiza o essencial do livro, e sua transposição cênica materializa, de forma admirável, a angustiante atmosfera da narrativa. Isto se deve a alguns fatores, sendo um deles a expressiva iluminação de Russinho, em grande parte privilegiando focos fechados e de pouca intensidade luminística, o que contribui decisivamente para reforçar a solidão e o desespero do protagonista. Mas dois outros pontos merecem ser destacados. 

Ao optar por uma movimentação comedida, Gomlevsky prioriza a relação direta do personagem com a plateia, assim valorizando as palavras proferidas e as imagens que as mesmas suscitam. E o mesmo comedimento - jamais desprovido de potência - se faz presente em sua irretocável performance, exceção feita a algumas passagens nas quais seria literalmente impossível impedir o aflorar de emoções tão dilacerantes. 

Posso estar enganado, naturalmente, mas em muitos momentos tive a sensação de que Gomlevsky não estava apenas interpretando um personagem, mas materializando na cena uma história que poderia ter sido a sua. Um belo encontro, sob todos os pontos de vista, entre quem faz e quem assiste, e que merece ser prestigiado de forma incondicional.

No complemento da equipe técnica, Maria Duarte responde por um figurino sóbrio e em perfeita sintonia com o contexto e a personalidade retratada, sendo igualmente apropriada a despojada cenografia de Gomlevsky, composta por uma única cadeira. 

MEMÓRIAS DO ESQUECIMENTO - Texto de Flavio Tavares. Adaptação de Daniela Pereira de Carvalho e Bruce Gomlevsky. Direção e atuação de Gomlevsky. Teatro Poeirinha. Terça a sábado, 21h. Domingo, 19h.

   



Nenhum comentário:

Postar um comentário