quinta-feira, 22 de novembro de 2018

Teatro/ CRÍTICA

"As Brasas"

.........................................................
Dilacerante e inevitável embate



Lionel Fischer



"Ainda meninos, Henrik e Konrad se conheceram na escola militar, tornaram-se amigos inseparáveis e, ao longo dos anos, partilharam  descobertas e experiências. Eles não se veem há 41 anos, desde o dia em que Konrad desapareceu após uma caçada na floresta nos arredores do castelo de Henrik, em 1899, na Hungria.  Entre os dois, há um segredo que ronda o dia da caçada e as lembranças de Kriztina -  mulher de Henrik e amiga de  infância de Konrad. Após quatro décadas, Henrik, agora general, recebe uma carta do amigo informando estar de volta à cidade, levando-o a se preparar para esse tão aguardado confronto final".

Extraído (e levemente editado) do release que me foi enviado, o trecho acima resume o enredo de "As Brasas", baseado no romance homônimo do escritor húngaro Sándor Márai (1900-1989). Duca Rachid e Julio Fischer respondem pela dramaturgia, que teve a colaboração de Pedro Brício. Em  cartaz no Teatro das Artes, a montagem leva a assinatura de Brício, estando o elenco formado por Herson Capri, Genézio de Barros e Nana Carneiro da Cunha (violoncelista).

Costuma-se dizer que o tempo apaga tudo. E quando isso não chega a acontecer, ao menos teria o poder de minimizar lembranças dolorosas. No presente caso, deu-se exatamente o contrário: ao longo dos últimos 41 anos, Henrik fez absoluta questão de jamais  esquecer um momento ocorrido durante a caçada, para o qual não  encontrou uma explicação plausível. Ele se recorda de um fato, a seu ver incontestável, mas ignora as motivações que o geraram. E nisso reside seu tormento e seu obsessivo desejo de reencontrar o amigo - e aqui faço a opção de não entrar em maiores detalhes, pois isso privaria o leitor e possível espectador de surpreendentes revelações.  

Em meu entendimento, um dos muitos méritos do presente texto reside no fato de o autor ter criado - magnificamente, diga-se de passagem - um personagem duplamente trágico. Se Henrik jamais reencontrasse Konrad, sua vida já teria sido impregnada de tormentosas dúvidas. No entanto, caso se desse o oposto, ele correria um risco ainda maior, posto que o esclarecimento das mencionadas dúvidas poderia gerar um sofrimento ainda maior. E é exatamente o que acontece.

Outro mérito do autor diz respeito à sua capacidade de abordar, com extrema profundidade, temas como o amor, a amizade e a lealdade. Ainda assim, sua maior virtude, em meu entendimento, está centrada na forma como investiga o poder do tempo no que concerne à memória, que tanto pode ser mantida intacta quanto progressivamente distorcida. No presente caso, Henrik tem absoluta certeza de que algo muito estranho ocorreu na caçada e por isso jamais renunciou ao desejo de esclarecer tudo. Mas teria esse fato efetivamente ocorrido? Ou será que Henrik pode ter interpretado erroneamente o breve momento vivido com seu amigo?

Tais questões, evidentemente, eu as transfiro para os espectadores e cada um chegará à própria conclusão. Seja como for, estamos diante de um ótimo texto, estruturado basicamente em cima de dois personagens e cujos embates adquirem extrema relevância pela forma com que foram materializados na cena. 

Por tratar-se de um texto cuja eficácia está atrelada ao trabalho dos intérpretes, Pedro Brício renunciou a dispensáveis mirabolâncias formais e impôs à cena uma dinâmica simples, mas nem por isso isenta de expressividade. Esta adquire peculiar vigor pela constante alternância espacial entre os personagens, que ora se aproximam a ponto de sugerir um iminente embate físico, ora se afastam como a indicar que o objetivo do encontro jamais se consumará. Outro mérito do encenador diz respeito à sua atuação junto ao elenco, do qual extrai ótimas performances.

No tocante a Herson Capri, de há muito o considero um dos melhores atores deste país. E tal avaliação transcende seus admiráveis recursos expressivos - excelente voz, grande expressividade corporal, inegável carisma e fortíssima presença cênica - e se apoia fundamentalmente em sua visceral capacidade de entrega a todos os personagens que encarna. E aqui, e para mim de forma incontestável, Capri exibe uma das melhores atuações de sua brilhante carreira. 

Genézio de Barros é um parceiro à altura de Herson, valorizando com potência e sensibilidade todas as nuances de um caráter tão atormentado quanto o de Henrik, ainda que por razões diversas, e forte o bastante para não se escusar a um confronto que ele também julga inevitável - do contrário, jamais reapareceria. A violoncelista Nana Carneiro da Cunha executa com maestria a bela música original composta por Marcelo Alonso Neves (também responsável pela direção musical) e suas intervenções faladas são sempre firmes e acertadas.  

No complemento da ficha técnica, Bia Junqueira assina uma cenografia simultaneamente grandiosa e decadente, em total sintonia com o contexto. Igualmente irrepreensíveis são os figurinos de Marina Franco e a sombria e claustrofóbica iluminação de Renato machado. Cabe também registrar a importante colaboração de Gaspar Filho como instrutor de esgrima.

AS BRASAS - baseado no romance de Sándor Márai. Dramaturgia de Duca Rachid e Julio Fischer, com a colaboração de Pedro Brício. Direção de Brício. Com Herson Capri, Genézio de Barros e Nana Carneiro da Cunha. Teatro das Artes. Quarta e quinta, 20h. Sexta, 21h.

  




Nenhum comentário:

Postar um comentário