quarta-feira, 20 de março de 2019

Teatro/CRÍTICA

"Maracanã"

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Pertinentes reflexões sobre a natureza humana




Lionel Fischer



Desde que entrei pela primeira vez em um teatro - era criança, fui levado por meus pais e esse teatro era O Tablado -, minha relação com o espetáculo sempre começou antes mesmo dele se iniciar. Interessava-me (como até hoje me interessa) olhar as pessoas, os refletores e se a cortina ainda estava fechada, ficava imaginando o que aconteceria quando a mesma fosse aberta. Ninguém me sugeriu que agisse assim, mas algo me dizia que deveria me desligar do mundo exterior e me concentrar no que viria a seguir - é claro que, com cinco ou seis anos de idade, não formulei isso desta forma.

No presente caso, assim que entrei na Sala Multiuso do Sesc, me dei conta de que havia um homem em cena. Este homem estava sentado em uma cadeira, imóvel, parcamente iluminado e olhava fixamente para a frente. Não olhava os espectadores que entravam, apenas olhava para algo que só ele via - ou talvez olhasse para si mesmo. E quando todos os espectadores já se haviam acomodado, esse homem ainda permaneceu um tempo imóvel. Depois, iniciou comedidos movimentos, que sugeriam uma certa inquietação, como se estivesse em dúvida se deveria permanecer sentado ou levantar-se. Finalmente, ele se levanta. Começa a andar pelo espaço, ainda sugerindo alguma indecisão. De repente, ele começa a falar. 

Estou me referindo a "Maracanã", primeiro texto teatral de Moacir Chaves, que mescla palavras suas com outras de Shakespeare (em especial "Macbeth"), Anton Tchecov, Padre Antonio Vieira e Manuel Bandeira. Ricardo Kosovski é o único ator em cena. E o que ele faz? 

De acordo com o release que me foi enviado, um homem sozinho no palco dá uma aula, ou conferência, sobre o texto Macbeth, de Shakespeare. Ele trata o assunto com muita paixão. Sua fala é atravessada pela lembrança de experiências vividas no estádio do Maracanã. A questão que virá à tona, para além do que se ouve, diz respeito à identidade desta figura: quem é esse homem? O que quer ele dizer, na verdade? De onde ele vem? O que ele terá feito? Teria ele cometido alguma atrocidade? Ou teria sido vítima de uma? Onde ele está? Onde estamos todos nós?

Bem, do meu ponto de vista - e sempre respeitando quem pensa o contrário -, todas as perguntas acima explicitadas não me parecem fundamentais, pois caso me empenhasse em respondê-las, poderia  chegar a uma conclusão sobre quem é esse homem, de onde vem, o que terá feito etc. E isso teoricamente me ajudaria a entender as questões que ele formula. 

No entanto, creio que isso constituiria um imenso engano, pois aí minha percepção estaria atrelada ao binômio causa/efeito, ou seja, fulano passou por determinadas situações e em função delas pensa e age dessa maneira. Posso estar enganado, naturalmente, mas para mim esse homem não existe, no sentido literal do termo. 

Em meu entendimento, ele apenas materializa reflexões do autor sobre momentos que viveu e sobre autores cujas palavras nos incitam a pensar, a grosso modo, em questões relativas ao bem e ao mal. E mais: sobre a aparentemente contraditória possibilidade de haver beleza na maldade e vice-versa. Vamos a um exemplo. 

Em um jogo entre Flamengo e Grêmio, no Maracanã, lá pelas tantas há um incidente que leva dezenas, talvez centenas de pessoas, a despencarem das arquibancadas. Em um primeiro momento, o Narrador (obviamente que Moacir Chaves) se mostra horrorizado. No entanto, quando as quedas se reduzem, praticamente se individualizam, ele as enxerga como gotas e a tragédia adquire contornos poéticos. 

Então, caberia a pergunta: seria o Narrador um homem mau e insensível, que ao invés de se compadecer com a desgraça alheia, nela conseguiu vislumbrar uma estética que o encantou? É óbvio que não. Ele apenas foi corajoso o suficiente para admitir que, independentemente do horror que sentiu, também foi tomado pela sensação de que o trágico não exclui a possibilidade da beleza.  

Outra questão intrigante diz respeito ao fato de que o presente texto prioriza reflexões sobre a peça "Macbeth", de Shakespeare, que, na opinião do crítico literário norte-americano Harold Blom, é o mais tenebroso dos dramas shakespearianos. Mas vamos nos ater apenas ao seu início. Os generais Macbeth e Banquo retornam vitoriosos de uma batalha. No caminho para casa, eles se deparam com três bruxas que fazem uma profecia: Macbeth se tornará barão e depois, rei. E os filhos de Banquo serão os próximos soberanos. 

Ora, eis aqui uma curiosa contradição: se Macbeth se tornará rei, o natural seria que seus filhos se tornassem os próximos soberanos. Mas não é isso que as bruxas vaticinam. E nesta brevíssima passagem, o gênio de Shakespeare instaura o germe da tragédia, cujos ingredientes, que mais tarde vão aflorando, podem ser resumidos a três: ganância, traição e culpa.

Até esse encontro com as bruxas, Macbeth era um homem bom, valente e totalmente fiel ao seu rei, Duncan. No entanto, o vaticínio das bruxas dispara nele um processo até então impensável, incompatível com sua irrepreensível conduta. E me parece que o texto de Moacir Chaves levanta questões semelhantes: somos o que somos ou o que aparentamos ser? Ou, melhor formulando: o que somos corresponde essencialmente à nossa natureza ou esta oculta aspectos obscuros que determinadas circunstâncias podem fazer aflorar? E caso tais aspectos obscuros aflorem, devemos nos sentir culpados? E se culpados formos, existiria alguma possibilidade de redenção? 

Enfim...poderia prosseguir com uma infinidade de indagações. Mas o essencial me parece destacar que Moacir Chaves escreveu uma obra que, em parceria com os gênios já mencionados, nos leva a pensar, bem mais do que a concluir. E isto se aplica ao homem que fala, ao lugar aonde está - seria o pátio de uma prisão, o canto remoto de um hospício? - e ao nosso papel, quem sabe o de alunos, quem sabe o de espectadores de uma conferência, ou ainda uma outra coisa que não me parece essencial definir. 

Valendo-se de uma dinâmica cênica impregnada de silêncios, movimentos muitas vezes desconexos e trabalhando o intérprete de forma a sugerir que ele tanto pode nos acolher como nos ameaçar, que ora nos despreza e logo adiante exibe simpatia e doçura, Chaves encontrou um parceiro perfeito em Ricardo Kosovski, intérprete cuja maior virtude (refiro-me à maior, dentre muitas outras) consiste em sua admirável coragem para encarar empreitadas sujeitas a todos os riscos, ao invés de se tornar uma espécie de parasita de suas próprias conquistas. Os demais parceiros desta instigante produção também contribuem decisivamente para seu êxito - Lídia Kosovski (figurino), Fernando Mello da Costa (cenografia) e Aurélio de Simoni (iluminação). 

MARACANÃ - Textos de Moacir Chaves, Shakespeare, Tchecov, Padre Antônio Vieira e Manuel Bandeira. Direção de Moacir Chaves. Com Ricardo Kosovski. Sala Multiuso do Sesc. Quinta a domingo, 18h.














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