quarta-feira, 27 de março de 2019

Teatro/CRÍTICA

"O preço"

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Obra-prima em belíssima versão



Lionel Fischer



"Dezesseis anos após a morte do pai, dois irmãos voltam a se encontrar com o objetivo de desocuparem a casa que deixaram intacta ao longo de todos aqueles anos. Um velho antiquário vem dar-lhes um preço pelos móveis e objetos dos quais querem se desfazer. Mas a transação não é tão simples: todas aquelas coisas fazem parte da história da família, estão repletas de memórias e os obrigam a se confrontarem com o passado e as escolhas que fizeram na vida".

Extraído do release que me foi enviado, o trecho acima resume o enredo de "O preço", de autoria do dramaturgo norte-americano Arthur Miller (1915-2005). Em cartaz até domingo na Arena do Espaço Sesc, a mais recente montagem da Cia. Teatro Epigenia leva a assinatura de Gustavo Paso, estando o elenco formado por Romulo Estrela (Vítor, policial), Erom Cordeiro (Válter, médico), Luciana Fávero (Ester, esposa de Vítor) e Gláucio Gomes, (Salomon, antiquário).

Um dos aspectos mais brilhantes da presente obra reside no fato de Miller ter se valido de um acontecimento aparentemente banal - a venda de móveis que já não têm mais a menor utilidade - para empreender uma profunda e exasperante investigação sobre vários temas, dentre eles afetos mal resolvidos, mágoas, frustrações, silêncios que poderiam ter sido evitados e confissões que deveriam ter sido feitas. 

E graças à genialidade de Miller, o que poderia resumir-se a um ajuste de contas entre dois irmãos ganha imensa amplitude, pois fica implícita uma crítica à sociedade contemporânea (a peça se passa em 1968, mas de lá para cá nada parece ter mudado), que sustenta que o sucesso pessoal depende muito mais de uma ferrenha ambição do que de bons sentimentos, solidariedade e compaixão - Vítor ficou tomando conta do pai e talvez pretendesse algo mais do que tornar-se policial, enquanto Válter se afastou por completo e se tornou um cirurgião renomado. Quanto a Ester, esta discorda do preço que Vítor pretende aceitar, valendo-se de argumentos muito mais voltados para a suposta ausência de ambições do marido do que pelo valor material da transação.

Contendo personagens magnificamente estruturados, diálogos da mais alta teatralidade e notável imersão em temas de grande pertinência, "O preço" recebeu excelente versão cênica de Gustavo Paso. Sem renunciar a marcações expressivas e exibindo sensível domínio no tocante aos tempos rítmicos, o diretor teve a sabedoria de perceber que um texto desta natureza dispensa quaisquer mirabolâncias formais e seu sucesso está atrelado à performance dos atores, que têm que ser capazes de materializar as conturbadas relações entre os personagens. Neste sentido, Gustavo Paso merece todos os aplausos.

Na pele de Vítor, Romulo Estrela exibe presença e grande capacidade de entrega, conseguindo valorizar as principais características de um personagem atormentado, tanto pelo que é quanto por aquilo que talvez pudesse ter sido - só me permito sugerir ao ator que tente fazer maiores gradações vocais, tarefa um tanto complexa já que seu personagem transita em uma chave que basicamente se estrutura em cima de um estado quase sempre exasperado. Luciana Fávero exibe atuação convincente vivendo Ester, personagem igualmente difícil posto que impregnada de frustrações e ambições mal resolvidas, e em função disto como que aprisionada em um estado de permanente lamentação - e aqui também me permito sugerir à atriz que tente um descontrole ainda maior nas passagens em que suas expectativas parece que jamais se materializarão. 

Defendendo um papel com eventuais aspectos cômicos, sem que isso minimize as premissas essenciais de um profissional que sempre busca obter vantagens, sobretudo quando o contexto evidencia claras fragilidades, Glaucio Gomes exibe aqui a melhor performance de sua carreira. Quanto a Erom Cordeiro, o excelente profissional valoriza ao máximo todas nuances de uma personalidade complexa e atormentada, ainda que procure camuflar seus tormentos com um cinismo que chega a ser repulsivo, mas que aos poucos vai desmoronando e assim permitindo ao espectador perceber que existe humanidade neste homem aparentemente insensível, arrogante e debochado. Sem dúvida, uma das melhores atuações da presente temporada.

Na equipe técnica, Luciana Fávero responde por figurinos em total sintonia com o contexto e as personalidades retratadas. Igualmente irrepreensível a cenografia de Gustavo Paso, tanto pela organização dos móveis e objetos quanto pela simbologia a eles inerente, em especial a cadeira de balanço do pai - esta me gerou uma angústia que até agora não consigo explicar, já que meu pai, há muito falecido, jamais se valeu de uma. Bernardo Lorga ilumina a cena com grande sensibilidade, conseguindo valorizar com sutileza todos os climas emocionais em jogo. São também irrepreensíveis a direção musical de André Poyart e a tradução de Thiago Russo e Gustavo Paso.

O PREÇO - Texto de Arthur Miller. Direção de Gustavo Paso. Com Romulo Estrela, Erom Cordeiro, Glaucio Gomes e Luciana Fávero. Arena Sesc Copacabana. Quinta a adomingo, 19h.








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