quinta-feira, 18 de julho de 2019

Teatro/CRÍTICA

"Meninas e Meninos"


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Bela e dolorosa jornada




Lionel Fischer



"A protagonista do texto é uma mulher de idade não especificada, que conta ao público a história de sua vida. Abordando corajosamente (e com muito humor) questões delicadas como sexo, maternidade e machismo, a personagem vai desenhando um novo perfil feminino que, ao longo de séculos, tem lutado para se libertar das amarras patriarcais e experimentar um jeito completamente original de tornar-se mulher no mundo atual".

Extraído do release que me foi enviado, o trecho acima resume o enredo de "Meninas e Meninos", do dramaturgo inglês Dennis Kelly, em cartaz no Teatro Poeirinha. Kiko Mascarenhas e Daniel Chagas assinam a direção do espetáculo, que tem como única intérprete Maria Eduarda de Carvalho.

Como já disse algumas vezes, para mim um espetáculo começa quando entro no teatro e existe alguém em cena, mesmo que esteja imóvel ou não fazendo nada de especial, ainda que as luzes sejam as da plateia - tal postura, que considero essencial, contraria a de 99% dos espectadores, que em geral conversam ou permanecem grudados aos seus celulares até que seja dado o terceiro sinal.

No presente caso, quando os espectadores entram no espaço de representação do Poeirinha, Maria Eduarda de Carvalho já está em cena, totalmente visível, e sua personagem parece indecisa quanto à localização de vários caixotes e brinquedos infantis. Ela ignora a plateia enquanto organiza e reorganiza os objetos. Finalmente, começa a contar sua história, estabelecendo uma relação direta com os espectadores.

O enredo aborda, de forma não linear, a relação da personagem com seus filhos pequenos, a tentativa de obter um emprego, suas muitas e diversificadas experiências sexuais, seu envolvimento com o pai das crianças e sua ascensão profissional, afora outros momentos, cabendo destacar a hilária passagem da fila de embarque em um aeroporto. 

Mas ao mesmo tempo em que conta sua história, a personagem quase sempre se relaciona com outros, como se estes estivessem em cena, e só raramente interrompe sua relação com os objetos, como no início do espetáculo, só que a partir de um certo ponto os brinquedos vão sendo colocados nos caixotes e estes depositados em um canto do espaço, que no final se mostra inteiramente desocupado daquilo que antes o preenchia. Ou seja: estamos diante de uma belíssima metáfora, pois o que a personagem faz é progressiva e dolorosamente livrar-se do seu passado e assim criar a possibilidade de um novo presente. 

Com relação ao texto, este alterna momentos de grande humor com outros essencialmente trágicos, que opto por não explicitar pois isto privaria o espectador de usufruir impactantes e imprevistas revelações. Seja como for, há que se destacar a maestria do autor em sua abordagem de vários temas, em especial o do machismo, que nem sempre, como no presente caso, fica restrito ao predomínio da vontade masculina. 

Novamente sem entrar em maiores detalhes, aqui a inveja é a mola propulsora da tragédia que se materializa. Mas como detectá-la se a outra pessoa consegue camuflar este sentimento? E mais: como imaginar que este sentimento possa crescer a ponto de transformar alguém em sua própria antítese?    

Com relação ao espetáculo, cuja mais brilhante solução já mencionei, cabe destacar a expressiva, pulsante e diversificada dinâmica cênica, afora a contribuição de Kiko Mascarenhas e Daniel Chagas para que Maria Eduarda de Carvalho exiba uma das performances mais marcantes da presente temporada. 

Atriz de vastos recursos técnicos, grande carisma, fortíssima presença e inegável inteligência cênica, Maria Eduarda de Carvalho também nos brinda com comovente capacidade de entrega, o que lhe permite viver com total intensidade os múltiplos conflitos emocionais em jogo.  

Na equipe técnica, considero irrepreensíveis as preciosas colaborações de Vilmar Olos (iluminação/ambientação), Marcelo H (trilha sonora), Luciene Nicolino (direção de arte), Mauro Vicente Ferreira (cenografia) e Tereza Nabuco (figurino).

MENINAS E MENINOS - Texto de Dennis Kelly. Direção de Kiko Mascarenhas e Daniel Chagas. Com Maria Eduarda de Carvalho. Teatro Poeirinha.  Terças, quartas e quintas às 21h.




















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