terça-feira, 5 de novembro de 2019

Teatro/CRÍTICA

"Os impostores"

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Bela metáfora de um mundo em decomposição



Lionel Fischer




"Num futuro próximo, o Brasil é devastado por uma hecatombe ecológica. Movimentos de placas tectônicas parecem formar uma nova Pangéia. A força das águas inunda, destrói, arrasa tudo. Uma tradicional e rica família brasileira sobrevive ao caos, confinada num suntuoso bunker debaixo da terra há anos (ou seriam décadas, quem sabe séculos?). Os membros dessa família estão tocando a vida - ou o que sobrou dela, entre taças de champanhe Cristal e latas de caviar Beluga - salvos do caos externo, até que recebem uma visita inesperada, que, a exemplo do que acontece lá fora, irá mexer com as estruturas dessa família e colocar em xeque a aparente harmonia em que viviam até então".

Extraído do ótimo release que me foi enviado pelo assessor de imprensa Ney Motta, o trecho acima explicita o contexto em que se dá "Os impostores", de Gustavo Pinheiro e Rodrigo Portella, que contaram com a colaboração dramatúrgica dos intérpretes e de Mariah Valeiras. Em cartaz no Teatro Sesc Ginástico, a montagem tem direção assinada por Portella, estando o elenco formado por Carolina Pismel, Guilherme Piva, Murilo Sampaio, Pri Helena, Suzana Nascimento e Tairone Vale.

Embora famílias ricas, em especial norte-americanas, já possuam seus bunkers, tais construções foram feitas - e continuam a ser feitas -  por temor de uma guerra nuclear. E evidentemente suas dimensões, até onde eu sei, atendem apenas a necessidades básicas de sobrevivência. Aqui, no entanto, estamos diante de um quadro apocalíptico - o mundo lá fora praticamente deixou de existir - e a referida família vive em um bunker faraônico, cuja dimensão equivale ao próprio refinamento. E, como explicitado no parágrafo inicial, pode estar ali há décadas ou séculos, o que evidencia o caráter metafórico do texto.  

Com a chegada do Hóspede, tudo começa a se modificar. Tal tema - um estranho que surge inesperadamente em determinado contexto e altera o que parecia fadado a se perpetuar - já foi muitas vezes explorado, tanto na literatura como no cinema e no teatro. Mas isso não constitui nenhum entrave, pois o que confere valor a uma obra não é seu ineditismo temático, mas a forma como as ações e conflitos são trabalhos.

No presente caso, a harmonia entre os membros da família era apenas aparente, o que facilita a tarefa do Hóspede de promover devastadoras transformações. Mas quem é esse homem que chega? De início não fica muito claro, mas aos poucos torna-se evidente que, além de renomado crápula, vale-se de valores religiosos para manipular a todos de acordo com suas conveniências - e aqui opto por não explicitá-las para que meus eventuais leitores possam usufruir o impacto de muitas e imprevistas surpresas. 

Seja como for, o fato é que podemos estabelecer uma espécie de paralelo entre as duas hecatombes - a do mundo real e a deste mundo subterrâneo. E se neste último não são placas tectônicas que se movem e se chocam, os movimentos e choques também se dão, posto que todas as carências, ressentimentos, ódios e desejos vem à tona, inviabilizando qualquer tentativa de se manter intacta a máscara da própria hipocrisia.

Bem escrito, contendo ótimos diálogos, personagens muito bem estruturados e uma ação que prende a atenção do espectador do início ao fim, cabe ainda ressaltar a capacidade de Gustavo Pinheiro e Rodrigo Portella (e seus colaboradores) de mesclar, com a mesma eficiência, passagens dramáticas e humorísticas. E no quesito humor, não há como não fazer menção ao hilariante texto do Hóspede ao descrever o mundo acima, que fica ainda mais engraçado pela seriedade com que é proferido.

Com relação ao espetáculo, Rodrigo Portella impõe à cena uma dinâmica em total sintonia com o material dramatúrgico. Não existem marcas previsíveis e todas são muito expressivas, cabendo destacar a cena, ao mesmo tempo hilária e erótica, em que Glória é depilada por Ivani. Os tempos rítmicos extrapolam o real, o que confere grande potência a todos os conflitos. E o encenador exibe, mais uma vez, sua notável capacidade de extrair ótimas performances do elenco.

Na pele do Hóspede, Guilherme Piva exibe a melhor performance de sua carreira, explorando ao máximo todo o potencial de um personagem que, essencialmente maquiavélico, não hesita em promover sucessivas destruições para atingir seus objetivos. A mesma eficiência se faz presente na atuação de Carolina Pismel vivendo Glória, mulher despótica, arrogante e possuidora de um furor uterino capaz de superar o de Messalina. Murilo Sampaio (Amado) valoriza toda a carência, ironia e necessidade de amar do personagem. Pri Helena, que interpreta a jovem Camile, confere grande credibilidade a única pessoa da família que ainda acredita ser possível salvar o mundo. Suzana Nascimento, que encarna a criada Ivani, demonstra uma vez mais seu imenso talento, tanto nas passagens mais dramáticas quanto naquelas em que o humor predomina. Finalmente, Tairone Vale está impecável na pele de Neto Junior Filho, inicialmente o macho alfa do contexto e mais adiante um joguete nas mãos do Hóspede.

No tocante à equipe técnica, considero irrepreensíveis as colaborações de todos os profissionais envolvidos nesta surpreendente empreitada teatral - Julia Deccache (cenografia), Marcelo Alonso Neves (direção musical), Tiago Ribeiro (figurinos), Vítor Martinez (visagismo) e Toni Rodrigues (preparação corporal). Como se vê, deixei por último a responsável pela belíssima e expressiva iluminação, sempre decisiva para o fortalecimento dos múltiplos climas emocionais em jogo. Estou falando de Ana Luzia Molinari de Simoni, que aqui assina um trabalho do qual seu pai, o maravilhoso Aurélio de Simoni, certamente está muito orgulhoso.

OS IMPOSTORES - Texto de Gustavo Pinheiro e Rodrigo Portella, com a colaboração do elenco e de Mariah Valeiras. Direção de Rodrigo Portella. Com Carolina Pismel, Guilherme Piva, Murilo Sampaio, Pri Helena, Suzana Nascimento e Tairone Vale. Teatro Sesc Ginástico. Quinta a sábado, 19h. Domingo, 18h.











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