segunda-feira, 19 de outubro de 2009

O circo e o novo teatro

Brooks McNamara


Sempre existiu um fluorescente teatro em barracas de feira, casas de espetáculos burlescos e em picadeiros de circo. Mas, como formas de representação, o circo, o teatro de bonecos, o vaudeville, os "medicine shows" (onde se intercalam a oferta de remédios de pouco ou nenhum valor medicinal e pequenas demonstrações artísticas) e outros divertimentos populares, não têm sido levados a sério pela maioria das pessoas ligadas ao teatro.

Desde o final do século XIX, especialmente, o realismo tem dado forte ênfase a diferentes valores de representação - "scrips" com motivação estritamente lógica, representação orientada pelo personagem e cenários que apresentem pelo menos uma ilusão razoável da realidade. Sendo o realismo considerado padrão de teatro sério, foi fácil rejeitar as formas de divertimento populares tidas como exóticas e encantadoras, mas também como teatro fundamentalmente insignificante. Nos últimos anos, entretanto, tem-se tornado cada vez mais claro que as formas populares são baseadas em conceitos de representação vitais e importantes.

O circo é um caso em pauta. O circo moderno desenvolveu-se em fins do século XVIII, a partir de exibições de acrobacia em cavalos apresentadas por mestres de equitação que se tornaram "shomen". Pouco a pouco, acrobatas, funâmbulos, malabaristas, adestradores, palhaços e outros artistas procedentes das feiras populares uniram-se aos "shomen" da equitação, fazendo suas apresentações no picadeiro do circo. O resultado foi uma forma "sui generis" de show de variedades, mais simples na estrutura e menos dependente da linguagem do que o teatro, e enfatizando valores de representação bastante diferentes: a agilidade, a força, o talento e a perícia no manejo de animais e conjunto de acessórios circenses.

Basicamente, o circo é o teatro do povo, sem muitas pretensões artísticas e intelectuais comuns ao palco de teatro. Tem sempre adotado os pontos de vista de pessoas simples, no que se refere ao critério de julgamento do que é emocionante, cômico e belo e, na maioria das vezes, tem deixado as preocupações com a sutileza e o "bom gosto" convencional para outras formas de manifestação, preferindo, ao invés disso, enfatizar a parte física, a ação e a imaginação.

O circo tem dado pouca atenção a valores literários tradicionais. Um "script" de uma produção circense é um texto puramente técnico - uma narrativa ou um esquema da organização -, não sendo em si mesmo uma obra de arte consciente, como o é o "script" de uma peça teatral. O circo somente existe como produção, e a própria produção (diferente de muito do que tem sido feito em teatro no século XX) não depende de uma estrutura rígida de causa e efeito.

Uma representação circense é composta de atos essencialmente não relacionados entre si (por exemplo, um número de um palhaço é seguido de outro de malabarismo) e não interligados por um enredo coerente, mas através do equilíbrio, da tensão e da complexidade que cada um desses fatores adiciona à representação no seu todo. A organização está mais próxima de uma peça musical do que da peça tradicional bem elaborada.

Neste tipo de representação, a língua se torna rudimentar, servindo freqüentemente apenas para anunciar as seqüências dos números. O diálogo, no sentido teatral costumeiro, geralmente desaparece por completo. Talvez porque se faça tão pouco uso da língua, o circo tem permanecido inalterado, pouco sujeito a alterações modistas quanto ao modo de representar. Muito do que é feito no circo é pura atuação na qual não se faz qualquer tentativa de criar um personagem à parte, e distinto da personalidade do ator.

É uma proeza do próprio ator no trapézio ou mesmo na corda bamba, o que nos interessa e emociona. Quando a representação aparece no circo - como é o caso dos palhaços - tende a centralizar-se em personagens arquetípicos e sem complexidade, em cenas simples e altamente pantomímicas. É a representação teatral em sua forma mais antiga e tradicional.

Da mesma forma que a representação, o cenário circense tende a ser teatral e direto. O picadeiro do circo é constantemente transformado pelo jogo de luzes, pelo vestuário e por composições cênicas, mas permanece sempre como um espaço de trabalho totalmente prático. Ele contém acessórios puramente funcionais, tais como iluminação, cordas, jaulas etc., sem haver nenhuma tentativa real no sentido de ocultar suas funções ou "integrá-las" num esquema de cenário global.

Estes acessórios existem simplesmente porque precisam existir. Outros elementos cênicos são francamente gratuitos; estão presentes simplesmente em função do espetáculo. O efeito total - como o de um desfile de carnaval - é rigorosamente direto em termos de cor, formas e técnicas e, genuinamente, não possui sutilezas em termos de conteúdo. É uma evocação do fantástico que não depende do tipo de "bom gosto" próprio do teatro.

Finalmente, o circo cria um relacionamento com o público diferente daquele encontrado na maioria dos teatros. Ao invés de exigir profunda atenção e concentração do público, o circo permite considerável liberdade ao espectador - pode-se observar alguns números e outros não; conversar com os amigos durante o espetáculo ou mesmo sair um pouco, se alguém assim o quiser. Porque o circo é claro e direto, e possui uma organização simples, fazendo então pouca diferença se o espectador se envolve ou não com cada número. O público permanece ligado ao espetáculo global - um espetáculo que é tanto uma celebração ou um festival, quanto uma forma de teatro.
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Este artigo, aqui reduzido, foi extraído de Theatre Grafts, september, 1972, tradução de J. L. Pôrto de Magalhães. A íntegra do artigo está publicada na revista Cadernos de Teatro nº 75/1977, edição já esgotada.

Um comentário:

  1. obrigada por postar o texto de Brooks Mcnamara, pois é difícil encontrá-los traduzidos para a língua portuguesa. Aproveito para perguntar se vc conhece um texto onde ele fala sobre os vendedores ambulantes de rua.

    obrigada novamente
    Ester Sá (estersa.teatro@gmail.com)

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