sábado, 26 de dezembro de 2009

Arte e Medicina

Maria Regina Borges Garibaldi


Desde a antiguidade se fala na Medicina como uma arte e mesmo Hipócrates já se sereferia à "arte de curar". Dentro dessa compreensão nós, médicos, deveríamos ser um pouco como os artistas, pessoas com uma sensibilidade mais aguçada, e verdadeiramente interessados no mistério e no conhecimento do outro. E para conseguir esse objetivo até nos formamos em escolas para adquirir as ferramentas necessárias para o exercício da profissão. Entre as ferramentas uma das mais úteis é a escuta: escutar o que o corpo fala e interpretar o que ele diz!


E não é por acaso que ao falarmos de medicina é possível usar palavras ligadas às artes. É até pertinente associar a consulta médica ao teatro. No palco o artista estabelece uma comunicação com o público e quer passar uma mensagem, e gratificado estará se puder causar alguma transfomação. É preciso que haja uma disponibilidade dos dois lados e se a entrega acontece, pronto: é mágica!

Nós, médicos, nos deparamos com o paciente (que é o nosso público) nesse estado de disponibilidade. Despertamos nele um estado de admiração e até de um certo encantamento. O paciente está entregue, a despeito de suas inibições e medos e se despe, literalmente até, acatando as nossas solicitações. É preciso ter muito respeito por esse gesto de entrega. Ele quer saber o que acontece com ele, acabar com suas inquietações e dores e pede compreensão e afeto! E é nesse palco que se torna necessário acontecer a verdadeira escuta porque senão o encontro dança. Não há relação interpessoal e a transformação não será possível. Ou seja, sem sensibilidade é impossível fazer medicina.

Muitos médicos, por terem dificuldades em relação às suas emoções, se fecham durante o ato da consulta. São frios e impessoais. Não se envolvem com os aspectos emocionais das doenças. E fazem uma medicina voltada para a doença e não para a pessoa.

Quem é o pesonagem da doença?
Como está a vida dele?
Como ele lida com suas emoções e sua saúde?

E o que dizer da criança, do paciente que não fala e que muitas vezes é falado de uma maneira equivocada. Interpretar a criança é um desafio! Até porque ela ainda está ligada na sua fantasia pessoal, ela não desistiu ainda de criar suas próprias explicações para o que está acontecendo com ela.

A criança é um ser especial. Passa por transformações físicas e psicológicas que são marcos fundamentais para o seu desenvolvimento. Cada fase é única e cheia de peculiaridades. E a criança de hoje não é mais a mesma criança de ontem. Hoje ela é a criança da violência, da perda da inocência, da informação e da informática, da AIDS, dos condomínios e shoppings, dos pais "não tão presentes".

Quem é essa criança que se preocupoa com o saldo bancário dos pais, que questiona a morte dos meninos da sua idade na Candelária, que cobra afeto e atenção em um ritmo que não é possível saciar, que tem gastrite, sinusite, alergias mil e mais uma série de doenças antigamente privilégios do mundo adulto? Quem é essa criança que tem medo não do monstro ou da bruxa, mas do assaltante do sinal, do sequestro e do desemprego dos pais?

É necessário fazermos uma nova medicina para essa nova criança. Adaptar a Pediatria existente a um novo modelo de paciente, mais exigente e mais problematizado. Amplificar a nossa escuta e ausculta a níveis bem mais altos e ouvir o que a criança pensa, sente, quais são suas dúvidas e inseguranças. Pegá-la pela mão, explicar o que está acontecendo com o seu corpo, ajudá-la a entender o processo de sua doença e confirmar a capacidade infinita de recuperação que nós, os teimosos do mundo, temos para sobreviver.
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Artigo extraído do jornal Boca de Cena nº 7. A autora é pediatra.

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