segunda-feira, 23 de janeiro de 2017

Teatro/CRÍTICA

"Ocupação Rio diversidade"

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Imperdível empreitada teatral


Lionel Fischer


Não sei as razões que levaram Marcia Zanelatto, idealizadora deste projeto, a titulá-lo desta forma. Mas arrisco a seguinte suposição: o termo "ocupação" pressupõe o preenchimento de algo até então vazio e portanto não ocupado. E que espaço seria este? O de espetáculos e narrativas protagonizados por personagens não necessariamente heterossexuais. Quanto à diversidade, me parece evidente que se trata da sexual e de gênero - caso esteja enganado, peço que esta breve digressão seja esquecida e se possível perdoada.

Em cartaz no Teatro Sesi, "Ocupação Rio diversidade" é composta de quatro monólogos, todos com duração de 20 minutos: "Genderless - um corpo fora da lei" (autoria de Marcia Zanelatto, direção de Guilherme Leme Garcia e atuação de Larissa Bracher), "Como deixar de ser" (autoria de Daniela Pereira de Carvalho, direção de Renato Carrera e atuação de Kelzy Ecard), "A noite em claro" (autoria de Joaquim Vicente, direção de Cesar Augusto e atuação de Thadeu Matos) e "Flor carnívora" (autoria de Jô Bilac, direção e trilha sonora de Ivan Sugahara e atuação de Gabriela Carneiro da Cunha). O evento conta ainda com a participação da drag queen Magenta Dawning, que faz intervenções com textos de sua autoria.

"Genderless - um corpo fora da lei"

Em 2010, após travar ferrenha luta contra o Estado da Austrália, Norrie May-Welby se tornou a primeira pessoa do mundo a ser reconhecida como "sem gênero específico". A partir dessa história real, Marcia Zanelatto empreende oportunas e contundentes reflexões sobre gêneros, identidades sexuais e estruturas sociais. Valendo-se, como de hábito, de uma escrita cuja poética lucidez nos atinge tanto em nossa razão como em nossa alma, a autora encontrou dois excelentes parceiros em Guilherme Leme Garcia e Larissa Bracher. O encenador estrutura seu trabalho valendo-se apenas de uma cadeira e de um tablet, que a atriz manipula de forma a enfatizar os múltiplos conteúdos em causa - cabe ressaltar a expressividade desta opção minimalista. Quanto a Larissa Bracher, a atriz materializa aqui uma das melhores performances de sua carreira. Valorizando de forma notável tanto as palavras quanto os silêncios, Larissa também exibe um trabalho corporal de apaixonada riqueza de detalhes. Sob todos os pontos de vista, uma atuação absolutamente irrepreensível.  

"Como deixar de ser"

Após perder a mãe há 87 dias, uma mulher de meia idade está confinada em uma espécie de "armário-sala", símbolo de sua prisão interna. Tal prisão, como logo fica claro, é sua condição homossexual jamais assumida. Ela desconta sua ira e sua frustração em um gato imaginário, na plateia e sobretudo em si mesma. Ao mesmo tempo, tece apaixonadas considerações sobre uma relação que poderia ter tido com uma colega professora. Essa alternância de estados e sentimentos é muito bem trabalhada por Daniela Pereira de Carvalho, autora que ratifica aqui seu mais do que reconhecido talento. Com relação à dinâmica cênica, Renato Carrera exibe o mérito principal de haver extraído ótima performance de Kelzy Ecard. Possuidora de excelente voz e forte presença cênica, a atriz extrai o máximo de sua amargurada e intempestiva personagem, além de encerrar sua participação cantando de forma belíssima uma canção cujo título agora me escapa. 

"A noite em claro"

Baseado no bárbaro assassinato do diretor teatral Luiz Antonio Martinez Correa nos anos 1980, e também inspirado em um episódio real que quase chega ao mesmo e trágico desfecho, o autor Joaquim Vicente coloca em cena um garoto de programa que, ao mesmo tempo em que revive o assassinato do diretor, tece abjetas considerações que supõe capazes de legitimar o horror que perpetrou. Ainda que contundente, o texto peca por não nos oferecer nenhuma visão mais original sobre as questões abordadas, ou seja, o que Joaquim Vicente diz é mais ou menos o que todos diríamos a respeito do psicopata em questão e daquilo que ele fez. Com relação à dinâmica cênica, Cesar Augusto lança mão de um ipad, que o ator manipula, através do qual sombras ameaçadoras são projetadas em uma tela, assim como em dados momentos o intérprete é filmado. Sem dúvida, um conjunto brilhante de soluções, exploradas com vigor e sensibilidade por Thadeu Matos. 

"A flor carnívora"

Como se sabe, nosso país evidencia algumas singularidades, dentre elas a obsessão de empresários e políticos de dar golpes, sempre objetivando o monopólio de todas as benesses. Mas será que o mesmo poderia ocorrer no universo vegetal? Para o autor Jô Bilac sim, e por isso criou uma circunstância cênica muito engraçada: revoltada com a pretensão da soja de dar um golpe monocultural, uma planta carnívora afirma o "hermafroditismo das plantas, sua indefinição de gênero, sua intersexualidade e sua revolta contra a colonização organizadora do homem". Impregnado de reflexões bem humoradas e pertinentes, o texto de Bilac recebeu irretocável direção de Ivan Sugahara, que materializa com o mesmo êxito as passagens que ocorrem no palco e outras fora dele, que não especifico para não privar o espectador de deliciosas surpresas. Quanto a Gabriela Carneiro da Cunha, a atriz se mostra totalmente à vontade em uma personagem que pressupõe uma intérprete possuidora de forte presença, humor e infinita graça.

Finalmente, Magenta Dawning é uma notável mestre de cerimônias. Sedutora, simpática, possuidora de ótima voz e grande expressividade corporal, a drag queen exibe os méritos suplementares de jamais enveredar para a caricatura, assim como o de ter escrito belas, sensíveis e oportunas palavras. A ela dedico minha mais sincera admiração e o desejo, igualmente sincero, de que jamais se afaste dos palcos.

Na equipe técnica, parabenizo com o mesmo entusiasmo as colaborações de todos os profissionais envolvidos nesta imperdível empreitada teatral - Daniel de Jesus (cenário e design gráfico), Daniela Sanchez e Tiago Mantovani (iluminação), Marcio Mello (visagismo), Diogo Fujimura (vídeo) e Raquel Diniz (edição de vídeo).

OCUPAÇÃO RIO DIVERSIDADE - Idealização de Marcia Zanelatto. Textos de Marcia Zanelatto, Daniela Pereira de Carvalho, Joaquim Vicente e Jô Bilac. Direção a cargo de Guilherme Leme Garcia, Renato Carrera, Cesar Augusto e Ivan Sugahara. Com Larissa Bracher, Kelzi Ecard, Thadeu Matos e Gabriela Carneiro da Cunha. Teatro Sesi. Quinta e sexta, 19h30; sábado, 19h. 

2 comentários:

  1. Belíssimo olhar sobre esta coletânea maravilhosa de textos, interpretações, direções e olhares.
    Magenta... exuberantemente especial, linda, forte, contundente!

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    1. Donabiologia,

      te agradeço as palavras tão gentis.

      Beijos,

      Eu

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