quarta-feira, 7 de junho de 2017

Teatro/CRÍTICA

"Ivanov"

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Ótima versão de um texto pouco encenado



Lionel Fischer



"Nicolai Ivanov é um homem ensimesmado com seus conflitos interiores, sufocado pelas pressões sociais e econômicas do mundo em que vive. Oprimido pelo amor de Anna, sua esposa doente, a quem não ama mais, e assustado com a paixão fulminante e envolvente da jovem Sacha, Ivanov, inerte e sem fé, não consegue escolher uma direção a seguir. Mais tarde, viúvo e prestes a se casar com Sacha, compreende que se deixou levar mais uma vez pelos acontecimentos, e decide dar um basta".

Extraído do excelente release que me foi enviado, o trecho acima sintetiza o enredo de "Ivanov", primeiro texto longo de Anton Tchecov (1860-1904), raramente encenado por razões que desconheço. Em cartaz no Teatro Ipanema, a montagem leva a assinatura de Ary Coslov, também responsável pela adaptação. No elenco, Isio Guelman, Marcelo Aquino, Marcio Vito, Mario Borges, Mayara Travassos e Sheron Menezzes. 

A maior parte dos críticos, ensaístas e literatos do século passado considera que Tchecov escreveu apenas três obras-primas: "Tio Vânia", "As três irmãs" e "A gaivota". No entanto, esta última, quando de sua estreia, em 1896, foi detonada tanto pelos que se julgam especialistas quanto pelo público, que brindou o autor com impiedosa vaia. Curiosamente, quando voltou a ser encenada dois anos depois, tanto os especialistas (não sei se todos) quanto o público (disto estou certo) adoraram a peça. O que terá ocorrido? A segunda montagem seria tão melhor do que a primeira? Ou será que tanto o público como os especialistas renderam-se a méritos já existentes e que por um desses mistérios insondáveis não foram percebidos?

Com esta breve digressão pretendo dizer o seguinte: no tocante à arte, tanto as opiniões supostamente mais abalizadas quanto as mais singelas devem ser encaradas com cautela, já que podem mudar em função de inúmeros fatores. E mais: embora também considere magistrais "Tio Vânia", "As três irmãs" e "A gaivota", não vejo por quê encarar como menos relevantes "O jardim das cerejeiras" e "Ivanov", posto que em ambas também se faz presente a genialidade do autor russo. 

Quem é Ivanov? Um homem atordoado com questões inerentes apenas ao final do século XIX? É óbvio que não: as angústias de Ivanov, suas frustrações, suas indecisões amorosas, a consciência que possui de que o tempo passa muito rápido, sua exasperação pelo que acredita que ainda possa realizar e não realiza em face da própria inércia, a sensação de vazio que sente e que não consegue explicar, dentre muitas outras características, o convertem em um homem atemporal, que poderia ter vivido em qualquer época. E ainda que a presente adaptação priorize as questões do protagonista, nem por isso desprezou as que envolvem os demais personagens, por sinal também maravilhosamente construídos.   

Com relação ao espetáculo, Ary Coslov deixa claro que estamos em um teatro e diante de atores que irão representar um texto - há uma espécie de aquecimento inicial, breves passagens são ensaiadas sem que se escute o que os intérpretes dizem, estes permanecem visíveis nas coxias quando não estão em cena e no centro desta há um tablado, onde ocorrem as principais cenas. Qual a razão desta opção? Talvez o objetivo do encenador tenha sido o de evitar que a plateia se identificasse com os personagens, envolvendo-se com eles e com a trama a ponto de relegar a um plano secundário as indispensáveis reflexões sobre as questões abordadas.  

Seja como for, não hesito em afirmar que Ary Coslov criou uma excelente versão de "Ivanov". A começar pela trilha sonora, também de sua responsabilidade, que mescla temas populares russos, Chet Baker, Nina Simone, um chorinho de Paulinho da Viola e especialmente trechos da angustiante e melancólica "Balada em Sol Menor", opus 23, de Chopin. 

Quanto à dinâmica cênica, o diretor explora com grande sensibilidade a despojada e expressiva cenografia de Marcos Flaksman, composta pelo já mencionado tablado e por três tapadeiras que indicam que a trama acontece no campo. Além disso, Coslov se mostra, como de hábito, um mestre no tocante ao tempo, seja o de uma cena, seja o tempo interior dos personagens. E, também como de hábito, consegue extrair ótimas atuações do elenco.

Na pele de Ivanov, Isio Guelman (o ator mais elegante do teatro brasileiro) exibe aqui uma das melhores performances de sua carreira, tanto nas passagens mais explosivas quanto naquelas em que o desespero como que o petrifica - quando imóvel e em silêncio, Isio materializa toda a devastação causada por angústias que nenhuma palavra é capaz de ao menos minimizar.  Marcelo Aquino, que vive o médico Lvov, explora de forma convincente o caráter de um homem indignado com a frieza do protagonista com relação à esposa. Marcio Vito (Lebedev) está irretocável vivendo um personagem totalmente dominado pela mulher (que aqui não aparece) e incapaz de tomar decisões. Mario Borges está exuberante encarnando o prolixo, divertido e não raro embriagado Borkine. Mayara Travassos vive a apaixonada Sacha com a pulsão que caracteriza aqueles que se mostram dispostos a tudo por amor. Finalmente, Sheron Menezzes valoriza ao extremo o caráter de uma mulher que se vê obrigada a lidar com a morte que se avizinha, o desprezo do marido e a traição que ele perpetra com Sacha. 

No complemento da ficha técnica, Beth Filipecki responde por figurinos em total sintonia com o contexto e as personalidades retratadas, cabendo também ressaltar a expressividade da iluminação de Aurélio de Simoni, que, como de hábito e sempre sutilmente, consegue valorizar ao extremo todos os climas emocionais em jogo.

IVANOV - Texto de Tchecov. Direção e adaptação de Ary Coslov. Com Isio Guelman, Marcelo Aquino, Marcio Vito, Mario Borges, Mayara Travassos e Sheron Menezzes. Teatro Ipanema. Sábado e segunda às 21h. Domingo, 20h. 














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