terça-feira, 13 de junho de 2017

Teatro/CRÍTICA

"Rita Formiga"

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Delicioso encontro com uma mulher inesquecível


Lionel Fischer



Domingos Oliveira morava em um apartamento no Bairro Peixoto. E todos os dias, invariavelmente, a atriz Maria Gladys o invadia e, das 16 às 18h, ocupava o telefone, justamente no horário em que o jovem autor mais gostava de escrever. No entanto, como Domingos sempre foi um gentleman, não vedava à amiga o acesso ao seu telefone. Mas os telefonemas, que inicialmente o atrapalhavam, aos poucos foram gerando interesse, até que um dia Domingos pediu permissão a Maria para gravar suas conversas. E então surgiu a peça "Rita Formiga".

Já encenado, o texto ganha agora uma nova versão, em comemoração aos 80 anos de Domingos Oliveira, completados em 2016. Em cartaz no Teatro Poeirinha, a montagem - que conta com vídeos em que Domingos aparece e com sua voz em off - leva a assinatura de Fernando Philbert, cabendo a interpretação do monólogo a Priscila Steinman.     

Para os que não tiveram o privilégio de viver no Rio de Janeiro nos anos 70, também incluindo o final dos 60, cumpre relembrar que foi uma época gloriosa. Quase que simultaneamente aportaram a mini-saia, os Beatles e os Roling Stones, a contracultura através do movimento hippie, o LSD e algumas outras drogas que, em nenhuma hipótese, geravam qualquer tipo de violência. 

E por aqui surgiram poetas, músicos, cineastas e dramaturgos de primeira grandeza, e o teatro conheceu encenadores que haveriam de promover uma verdadeira revolução cênica, tendo José Celso Martinez Corrêa como um de seus expoentes. Enfim...em meio à bárbara ditadura militar, muitos acreditavam que a paz, o amor e a fraternidade haveriam de prevalecer. E que só a Arte poderia nos livrar de todas as mazelas. 

É dentro deste contexto que se insere Rita Formiga. E por que essa mulher permanece tão atual? Porque queria ser independente, ganhar seu próprio dinheiro através de seu trabalho como atriz; porque não levava desaforo para casa; porque transava com quem lhe desse na telha; porque priorizava a sinceridade absoluta e abominava a hipocrisia. E, finalmente, porque acreditava no Amor e na Arte. Tais predicados me parecem suficientes para considerar Maria Gladys um exemplo de mulher, posto que, ainda que passando por múltiplos percalços, conseguiu manter-se totalmente íntegra, honesta consigo mesma e com os outros.

Na presente versão de "Rita Formiga", tudo começa com um engraçadíssimo vídeo em que Domingos Oliveira faz preciosas digressões sobre a burrice. E por que tais digressões estão aqui inseridas? Não sei exatamente por quê, mas é possível que possam ser encaradas como um alerta ao momento que vivemos, pois não resta a menor dúvida de que os burros e seus irmãos-gêmeos, os medíocres, tomaram o poder de assalto e só o império da inteligência pode nos salvar - ao contrário da burrice, como sustenta Domingos, a inteligência é generosa, amorosa e dispensa a inveja, que em minha opinião é a mais grave e letal dentre todas as moléstias infecto-contagiosas. 

Texto delicioso, "Rita Formiga" recebeu ótima versão cênica de Fernando Philbert, que, abstendo-se de inócuas firulas formais, priorizou o que de fato importa: a performance da atriz - minha única ressalva fica por conta de eventuais deficiências de algumas projeções. Quanto a Priscila Steinman, trata-se de uma atriz de grande e diversificado potencial expressivo. 

Na série "Questão de Família" (GNT), cuja terceira temporada acaba de se encerrar, Priscila vivia uma jovem desajustada em face de um passado aterrador e na maior parte de suas cenas prevalecia a dramaticidade - aliás, gostaria de registrar que tive o privilégio de contracenar com ela vivendo o médico que talvez pudesse curá-da das angústias que a afligiam, e pude sentir a força de sua presença e sua notável capacidade de entrega. 

No entanto, em "Rita Formiga" dá-se o oposto: ainda que o texto contenha algumas passagens dolorosas, é o humor que predomina. Mas não um humor raso e banal, mas fruto de pertinentes observações sobre questões fundamentais inerentes ao ato de existir. E Priscila Steinman consegue extrair todo o potencial humorístico do texto, cabendo ainda ressaltar seu ótimo trabalho corporal e o propositadamente exagerado sotaque carioca. Em resumo: uma excelente performance de uma jovem atriz que reúne todas as condições para obter sucesso absoluto em sua trajetória artística.

Na equipe técnica, Natália Lana assina uma cenografia correta e belíssimos figurinos. A mesma eficiência se faz presente na iluminação de Vilmar Olos, na direção musical de Maíra Freitas, na direção de movimento de Marina Salomon e na preparação vocal de Edi Montecchi.

RITA FORMIGA - Texto de Domingos Oliveira. Direção de Fernando Philbert. Com Priscila Steinman. Teatro Poeirinha. Quinta a sábado, 21h. Domingo, 19h.

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