quarta-feira, 1 de agosto de 2018

Teatro/CRÍTICA

"A invenção do Nordeste"



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Inesquecível encontro com o Grupo Carmin


Lionel Fischer




"Um diretor é contratado por uma grande produtora para realizar a missão de selecionar um ator nordestino que possa interpretar com maestria um personagem nordestino. Depois de vários testes e entrevistas, dois atores norte-riograndenses vão para a etapa decisiva, onde o diretor terá sete semanas para deixá-los prontos para o último teste. Durante o período de preparação, os atores refletem a respeito de sua identidade, cultura, história pessoal e descobrem que ser e viver um personagem nordestino não é tarefa simples. Afinal, existiria apenas uma identidade nordestina?"

Extraído do ótimo release que me foi enviado, o trecho acima sintetiza o enredo de "A Invenção do Nordeste", dramaturgia baseada na obra "A Invenção do Nordeste e Outras Artes", do professor Durval Muniz de Albuquerque Jr. A montagem, que esteve em cartaz até o último domingo no Sesc Copacabana (Mezanino), comemora os 10 anos de existência do Grupo Carmin, do Rio Grande do Norte. Henrique Fontes e Pablo Capistrano respondem pela dramaturgia, estando a direção a cargo de Quitéria Kelly. No elenco, Henrique Fontes, Mateus Cardoso e Robson Medeiros.

A pergunta que encerra o parágrafo inicial me parece determinante para o entendimento das múltiplas questões levantadas pelo texto. Ainda que existisse apenas uma identidade nordestina, qual seria ela? Um cearense é mais nordestino do que um pernambucano? É evidente que não. E como é que nós, que habitamos as regiões Sudeste e Sul do país - as mais abastadas e teoricamente as mais cultas - encaramos os que vivem da Bahia pra cima? Ainda que de forma dissimulada, com um certo desprezo. E qual seria a razão deste sentimento?

Talvez isto se deva à ignorância da maior parte dos que habitam as mencionadas regiões, posto que desconhecem a inestimável importância de escritores, dramaturgos, poetas, cineastas, pintores, compositores, escultores e músicos  nordestinos. É claro que artistas nordestinos que vieram para o Rio de Janeiro e São Paulo e aqui se consagraram, são encarados como exceções à regra. E qual seria essa regra? Tão simples quanto asquerosa: nordestino não passa de pau pra toda obra. Trata-se, evidentemente, de grotesca falácia. Mas já que falei em obra, vamos a uma breve constatação.  

Cidades como o Rio de Janeiro ou São Paulo existiriam sem a mão de obra nordestina? Em uma estimativa modesta, não hesito em afirmar que ao menos 90% dos operários que trabalharam (ou ainda trabalham) na construção civil vieram do Nordeste. Portanto, sem eles não teriam sido erguidos os portentosos prédios que abrigam multinacionais ou as não menos portentosas residências dos que detêm o monopólio financeiro. 

E o mesmo percentual se aplica aos porteiros dos prédios e aos garçons de bares e restaurantes, afora tantos outros que trabalham em feiras livres ou vendem produtos que fabricam em mercados populares. Ou seja: Rio e São Paulo devem muito ao Nordeste, em todos os níveis. Portanto, desprezar essa evidência revela ou a já mencionada ignorância ou total ausência de caráter. 

Com relação ao texto, este merece ser considerado de primeiríssima grandeza, pois consegue abordar questões da maior relevância sem jamais abdicar do humor - e por humor entenda-se a capacidade de Henrique Fontes e Pablo Capistrano de nos fazer rir não em função de piadas pueris, mas de reflexões críticas sobre os temas abordados. Bem escrito, contendo ótimos personagens e uma ação que cativa o espectador do início ao fim do espetáculo, "A Invenção do Nordeste" recebeu maravilhosa versão de Quitéria Kelly, que impõe à cena uma dinâmica que explora com total êxito múltiplas linguagens. A encenadora também responde pelos ótimos figurinos.

No tocante ao elenco, Henrique Fontes, Mateus Cardoso e Robson Medeiros exibem presença, carisma e irrepreensível técnica. Afora isto, é também evidente que estão vivenciando temas que consideram imprescindíveis e inadiáveis, o que confere às suas interpretações uma potência e uma autoridade admiráveis. Sem sombra de dúvida, estamos diante de três atores de excepcional talento, que a mim proporcionaram - e certamente a todos que assistiram o espetáculo - um encontro inesquecível.  

Com relação à equipe técnica, considero irrepreensíveis as contribuições de Pedro Fiuza (dramaturgia audiovisual e desenho de luz), Durval Muniz de Albuquerque Jr. (consultoria histórica e de roteiro), Mathieu Duvignaud (direção de arte e cenografia), Ana Claudia Albano Viana (preparação corporal), Gilmar Bedaque (preparação vocal), Gabriel Souto e Toni Gregório (trilha original), Juliano Barreto (edição de vídeo) e Daniele Avila Small, que interpreta em off uma diretora que não diz coisa com coisa, e o faz com delicioso e crítico humor.

A INVENÇÃO DO NORDESTE - Dramaturgia de Henrique Fontes e Pablo Capistrano. Direção de Quitéria Kelly. Com Henrique Fontes, Mateus Cardoso e Robson Medeiros. 




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