Teatro/CRÍTICA
"Gravidades"
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Apaixonada declaração de amor ao tempo
Lionel Fischer
Quando criança, Sofia participou de uma excursão à Serra do Caraça, cujo objetivo era observar o lobo Guará, que na ocasião não apareceu. Passados alguns anos, convida seus amigos Julia e André para acampar na mencionada serra, ao que parece movida pela certeza de que dessa vez o lobo se fará presente - o grupo leva, inclusive, uma posta de carne para atrair o animal.
O clima é de festa. E logo somos informados de que Sofia pretende fazer um filme registrando a viagem. No entanto, enquanto Julia e André armam a barraca e Sofia prepara seu equipamento de filmagem, sua voz em off sugere que algo de muito grave se passa com ela. O que seria?
Eis, em resumo, o contexto em que se dá "Gravidades", que estreou ontem no Teatro Eva Herz. Julia Stockler e Laura de Araujo assinam a direção e a dramaturgia, sendo que esta última contou com a colaboração do Coletivo Dupla de Três. No elenco, Isis Pessino (Sofia), Julianna Firme (Julia) e Rodrigo Trindade (André).
Em sua camada mais epidérmica, a peça em questão pode ser lida como uma história que tinha tudo para ser feliz e que subitamente sofre uma trágica reviravolta - em dado momento, Julia e André ficam sabendo que Sofia padece de uma doença incurável, daí seu desejo de filmar aquela que provavelmente é sua última viagem.
No entanto, e sem invalidar o que acaba de ser dito, creio que também podemos apreender o texto como uma apaixonada declaração de amor ao tempo, esta misteriosa entidade sobre a qual não exercemos o menor controle. E quando o tempo se afigura curto, com prazo de validade prestes a se esgotar, podemos nos entregar ao mais profundo desespero. Mas também é possível valorizar tudo que vivemos e encontrar uma forma menos dolorosa de lidar com o inevitável.
No presente caso, Sofia pretende filmar sua última viagem com seus amigos tão queridos, o que configura uma espécie de singular testamento, pois se por um lado exclui bens materiais, por outro prioriza de forma vigorosa e poética a importância dos afetos. E quando manifesta seu desejo de queimar todos os exames que trouxe consigo e que constituem sua sentença de morte, é como se nos dissesse que mesmo assim a vida ainda pode ser encarada como uma dádiva.
Bem escrito, contendo ótimos personagens e impregnado de pertinentes reflexões sobre os temas abordados, "Gavidades" recebeu ótima versão cênica de Julia Stockler e Laura Araujo, não apenas no que concerne à criatividade das marcações, mas sobretudo pela forma com que preenchem de significados as passagens em que o silêncio predomina. Além disso, conseguiram extrair irrepreensíveis atuações do elenco, o que me leva a afirmar que Isis Pessino, Julianna Firme e Rodrigo Trindade - todos na faixa dos 20 anos - reúnem todas as condições para materializar uma bela trajetória profissional.
Com relação à equipe técnica, considero de excelente nível as contribuições de todos os profissionais envolvidos nesta mais do que oportuna empreitada teatral - Aline Portugal (consultoria de dramaturgia), Pedro Nêgo (direção musical) e Rodrigo Belay (iluminação). Os figurinos, cuja autoria não consta do programa, também estão em perfeita sintonia com as personalidades retratadas.
GRAVIDADES - Texto e direção de Julia Stockler e Laura Araujo. Com Isis Pessino, Julianna Firme e Rodrigo Trindade. Teatro Eva Herz. Terça e quarta, 19h.
quarta-feira, 12 de setembro de 2018
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