segunda-feira, 9 de março de 2009

ANTONIN ARTAUD:
2 textos raros

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O Teatro e a Anatomia

A última palavra sobre o homem ainda não foi pronunciada. Quero dizer que a questão que se coloca é de saber se o homem continuará a trazer seu nariz no meio do rosto ou se os dois buracos do nariz desse crânio humano, que nos olha sobre as portas da eternidade, não irão cansar-se de fungar e de expelir excrescências sem jamais poder sentir nem acreditar que contribuem para a marcha esotérica do pensamento, bem apoiada em dois artelhos.
O teatro jamais foi feito para nos descrever o homem e o que ele faz, mas para nos constituir um ser de homem que possa nos permitir avançar no caminho, vivendo sem supurar e sem feder. O homem moderno supura e fede porque sua natureza é má, e o sexo, em relação ao cérebro, está mal colocado na quadratura dos dois pés.
E o teatro é esse polichinelo desengonçado, que musica os troncos através de barbas metálicas de arame farpado, e nos mantém em estado de guerra contra o homem que nos espartilha. Os homicídios teatrais são reivindicações de esqueletos e de órgãos que a doença não mais atinge, e que mijam as paixões humanas pelos orifícios de seus narizes. O homem passa muito mal em Ésquilo, mas ele ainda se crê um pouco deus e não quer entrar na membrana, e em Eurípedes ele chafurda na membrana, esquecendo onde e quando foi deus.
Pois bem, sinto agora uma veneziana bater, uma aba pulmonar da muralha girar; e é certo que tudo vai muito bem e eu sinto apenas um velho fulminato que poderia ainda ter vontade de protestar. Esse fulminato se chama teatro: teatro é o lugar onde a gente se entrega com o coração alegre, conquanto nada do que se pode ver no teatro se chama ainda coração ou alegria.
E é aqui que me volta o meu delírio, meu delírio de reivindicador nato. Pois, a partir de 1918, quem - e não foi no teatro - foi que jogou uma sonda "em todos os baixios do acaso e da sorte", senão Hitler, o moldovalaco impuro da raça dos macacos congênitos. Quem se mostrou no palco com um ventre de tomates vermelhos, abarrotado de imundícies, e que a golpes de serras rotativas perfurou a antomia humana, porque lhe estava com um lugar reservado em todos os palcos de um teatro natimorto. Quem declarando que o teatro da crueldade é utópico, foi deixar que lhe serrassem as vértebras nas encenações dos arames farpados.
yon tan nornan
na sarapido
ya yan sapido
ara pido
Eu havia falado de crueldades reais no plano do diapasão, eu havia falado de crueldades manuais no plano da atitude-ação, eu havia falado da guerra molecular de átomos, de cavalos de frisa sobre todas as frontes, quero dizer, gotas de suor sobre a fronte, eu fui posto num asilo de alienados. Agora para quando será a nova guerra sórdida por dois vinténs de papel higiênico, contra a transpiração das mamas que não cessam de corroer minha fronte.
(Texto publicado em La Rue. 12/07/1946)

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O Teatro e a Ciência

O verdadeiro teatro sempre me pareceu o exercício de um ato perigoso e terrível, onde aliás a idéia de teatro e de espetáculo se elimina bem como a idéia de toda ciência, toda religião e toda arte. O ato de que eu falo visa à total transformação orgânica e física verdadeira do corpo humano. Por quê? Porque o teatro não é essa parada cênica onde se desenvolve virtual e simbolicamente um mito, mas esse cadinho de fogo e de verdadeira carne onde, anatomicamente, pela trituração de ossos, de membros e de sílabas os corpos se refundem, e se apresenta fisicamente e ao natural o ato mítico d fazer um corpo. Se bem me compreendem, ver-se-á nisso um ato verdadeiro de gênese que a todo mundo parecerá ricídulo e humorístico invocar o plano da vida real.
Pois ninguém, no momento que passa, pode acreditar que um corpo possa mudar a não ser através do tempo e na morte. Ora, eu repito que a morte é um estado inventado e que só vive graças aos feiticeiros, aos gurus do nada a quem ela traz proveito e que desde alguns séculos se nutrem dela e vivem dela em um estado chamado Bardo.
(Publicado em LÁrbalère - Marc Barbezat - nº 13, verão de 1948)
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