quinta-feira, 12 de março de 2009

Teatro da natureza

Ricardo Kosovski

“Acaso la naturaleza está limitada a lo que cortésmente llamamos ‘ cumplimiento de las funciones naturales?’ Se halla el ‘teatro’ tan sólo allí donde vemos el edificio para él consagrado y el letrero luminoso que proclama su nombre? No existe el ‘teatro’ en la naturaleza?”. Nicolas Evreinov

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Mise en scène
Traça-se em geral uma linha divisória estabelecendo uma separação em teatro e natureza. Estaria por acaso a natureza limitada ao cumprimento de seus atos naturais, onde o aspecto funcional dos eventos biológicos, vegetais, meteorológicos, geológicos e etc, estariam subordinados a um comando natural, ou a uma ordem divina? Poder-se-ia imaginar uma mise en scène da natureza? Existe teatralidade na natureza?
Estabeleçamos algumas referências : percebe-se sobre o tronco de uma árvore uma pequena mancha e tocando-a com a ponta dos dedos ela surpreendentemente desprega-se do tronco e eis que surge um inseto colorido com asas esvoaçantes, abrigado dentro de um casulo com tons de coloração similares aos do tronco. São inumeráveis os exemplos deste instinto de transfiguração tanto no reino animal, quanto no reino vegetal.
Nicolas Evreinov, teatrólogo russo que viveu a virada do século XIX para o século XX, desenvolveu vários estudos e ensaios que buscaram refletir os relacionamentos entre o teatro e a vida em geral. Evreinov preocupou-se em estabelecer critérios, que qualificassem as diferenças conceituais entre teatro e natureza. O contexto de seus estudos evidentemente coincidem com o surgimento do Naturalismo nas artes, e portanto todas as questões que tal movimento artístico apontava como função das artes cênicas, como por exemplo, a cena teatral a serviço de uma reprodução quase científica da própria natureza, evidentemente influenciou substancialmente sua produção intelectual. Exerceram da mesma forma fortes influências sobre o seu trabalho, as pesquisas de Darwin sobre a evolução humana. Assim, Evreinov refere-se às transmutações que ocorrem na flora e na fauna, deste modo: “La naturraleza recurre a mucho arte y sacrificio para preservar a sus criaturas de los peligros que las rodean por todas partes”
O autor sugere a idéia da natureza tornando-se arte, como defesa natural. Em um certo sentido, a natureza torna-se Bela, a partir do olhar de quem contempla, elevando os fenômenos naturais à uma categorização estética.

Pôr-do-sol
Consideremos o pôr-do-sol, como exemplo: seu aspecto de repetição, junto às infinitas conformações que pode adquirir, do ponto de vista de sua expressão, poder-se-ia estabelecer uma singularidade de cada evento deste, em função das características específicas que cada crepúsculo proporciona em particular. Mas encontraremos nos sucessivos atos de pôr-do-sol, aspectos comuns que os ligam.
Da mesma forma, na representação teatral, existem a singularidade e a efemeridade de cada apresentação, mas é no conjunto das seguidas representações do mesmo espetáculo, que se constitui a unidade específica da obra. Não seria portanto tão absurdo, nos referirmos ao pôr–do–sol como um Teatro da Natureza, cuja dramaturgia seria justamente a resultante emocional que a Beleza do evento provocaria em seu espectador, gerando por sua vez, uma inserção estética deste acontecimento natural.

Antagonismo
Quando se fala em arte, refere-se à construção; neste caso a construção seria uma predisposição àquilo que chamamos de natureza, de se manifestar com teatralidade. Vários estudiosos e pesquisadores antagonizam os conceitos de Natureza e Realidade por um lado, e de Teatro e Teatralidade por outro, como se fossem instâncias divergentes ou excludentes. Seria legítima esta distinção tão rigorosa? Seria a Natureza algo regenciado por procedimentos estritamente naturais?
Existem diversas situações onde se contrapõe a idéia de natural pela de teatral. Comumente utilizamos o conceito de naturalidade como algo que insurge espontaneamente no comportamento da natureza humana. Seguramente, no desenvolvimento de nosso tese (notadamente no Cap 3), encontraremos campos de teatralidade na naturalidade, assim como campos de naturalidade na teatralidade.

Transfiguração
Retornando a alguns aspectos de transfiguração na natureza, gostaríamos de apresentar um caso citado por J. Rendel Harris e Agnes Smith Lewis in The Story of Ahikar, onde relatam acerca de tipos de vegetação e de minerais encontrados nos desertos da África Meridional. Citam especificamente um tipo de cactus, conhecido como kurkánkon, que tem uma cor amarelo-areia com formas extremamente similares às pedras encontradas nestes desertos. Junto a esta espécie vegetal, existem formas animais que se alimentam basicamente de vegetais encontrados neste habitat e que se nutrem de diversas espécies de cactus, que também são ali encontradas, diferentes do kurkánkon.
É árdua a batalha pela sobrevivência na natureza. Levantando-se estas “plantas-pedras”, percebe-se que a aparência mineral é apenas um revestimento estratégico de sua superfície visível, revelando-se a sua parte posterior, como um farto vegetal constituído de pequenas folhas duras, amareladas. O que mais indiferencia as rochas a este estranho vegetal é a sua idêntica coloração e textura . Os animais raramente suspeitam da verdadeira natureza destas “plantas-pedras” e passam diante dela sem notar nada.

Defesa
Existem infinitos exemplos similares a este, no reino animal e vegetal, como mecanismos de defesa. É como se fosse uma dissimulação natural, com fins de auto-preservação. É um enmascaramento, onde primitivamente poderíamos reconhecer como sendo uma representação de um papel. É a criação de um outro. É o instinto da natureza, incontrolável e natural, de iludir aquele que ameaça uma espécie. É uma representação precisa, e o kurkánkon, aparentemente indefeso como presa de animais rasteiros, faz o seu “personagem-pedra” o melhor que pode. É um drama-imóvel. Da excelência de sua atuação, coloca-se em jogo a própria existência do “ator” que representa.
Pantomimas são frequentes na grande “tragicomédia” da natureza: cada jardim, cada campo, cada floresta, carrega graus de disfarces ocultos a nossos olhos. Podemos encontrar na natureza variados exemplos deste instinto de teatralidade-mímica. Existem plantas que se disfarçam em outra espécie de vegetal; plantas que se disfarçam em insetos; insetos que se disfarçam em plantas etc. Assim como “plantas-atrizes” que simulam estarem mortas, quando estão vivam, ou fecham-se ao serem tocadas, ou ainda de serem estéreis quando são fecundas, ou ainda ausentes quando estão presentes. Ínfimos e silenciosos, esses “atores” revelam-se plenos de sentido de uma teatralidade pulsional, constituindo-se de aparências diferentes daquelas que revelam a sua verdadeira identidade.

Requintes
Passemos agora a algumas referências do reino animal, que talvez apresente casos ainda mais curiosos e significativos, capazes de ilustrar verdadeiros requintes de teatralidade. Existe um teatro entre os animais? Herbert Spencer e James y Groos, zoólogos, pesquisadores do comportamento animal, admitem que o princípio da mymesys na espécie humana e em diversas espécies de outros mamíferos tem fundamentos similares. Tomemos como objeto de investigação a curiosa “dança das abelhas”, que é um modelo sofisticado de comunicação, onde uma parte do enxame que explorou a região em volta da colméia, aponta para a comunidade, através de uma “dança”, o local exato onde está o pólen. Como explicar esta capacidade de expressão e comunicação destes pequenos insetos? Comunicar é expressar. Expressar, por sua vez, envolve esforço formal e conteudístico, que são fundamentos designantes de teatralidade; sendo que no caso das abelhas, existe ainda a forma de uma “dança”, portanto de movimento no espaço.
Expressar também é representar, e isto pode consistir simplesmente na exibição pura e simples de qualquer fato, desde que haja o conceito de público. Tomemos como exemplo o pavão, que exibe com todo o vigor de sua natureza o esplendor de sua plumagem, onde o aspecto essencial é a exibição de um fenômeno invulgar destinado a provocar admiração. Se a ave acompanha essa exibição com alguns passos de dança, passamos a ter um espetáculo, uma passagem da realidade vulgar para um plano mais elevado. Nada sabemos daquilo que o animal sente durante estes atos, mas certamente como espectadores humanos, podemos imaginar que o resultado destas representações são altamente formalizadas do ponto de vista de sua expressão estética. É notável que pássaros, filogeneticamente tão distantes dos seres humanos, possuam diversos elementos em comum. Os faisões silvestres executam danças, os corvos realizam competições de vôo, certas aves ornamentam os ninhos e outras emitem melodias. Todas esses elementos são funções expressivas de competição, exibição, divertimento e fundamentalmente de teatralidade.
No caso dos animais, estes atos não procedem da cultura, mas pelo contrário, precedem-na. E este aspecto é interessantemente abordado por Edgar Morin, que justamente propõe a comunidade dos primatas como constituinte do arcabouço cultural do homo sapiens sapiens:
“É preciso ter consciência que a cultura não assenta no vazio, mas sim sobre uma primeira complexidade pré-cultural que é a da sociedade dos primatas e que foi desenvolvida pela sociedade dos hominídios”

Curiosidades
Com relação à observação de certas atitudes do cachorro doméstico, cuja psicologia nos resulta mais acessível por estar ligado à nossa vida cotidiana, encontramos fatos curiosos: pode passar horas olhando para certos pontos, estabelece relações de tempo-espaço, reconhece amigos e inimigos e principalmente revela-se um ótimo “ator” como fruto dos ensinamentos recebidos por seu dono ou adestrador. Contempla tudo a seu redor, sendo esta maneira de fixar sua atenção no desfile de acontecimentos, um fato bastante sugestivo. Sua atitude frente às cenas cotidianas, a atenção à chegada do dono em casa, a resposta imediata ao ouvir o barulho da sua coleira para o passeio, o horário da refeição e etc., contempla-o com um lugar de espectador diferente e muito particular, do funcionamento de uma casa.
Ademais, pode-se afirmar sem exagero que os cachorros, por vezes, colocam em cena autênticos dramas, com temas bastante definidos . O cão-de-caça quando em função de seus atributos, age dramaticamente com toda a teatralidade que o jogo da caça propõe, contracenando com seus pares, sua presa e com seu dono, de forma bastante convincente.
A psicologia e a fisiologia procuram observar, descrever e explicar o jogo dos animais e há uma extraordinária divergência entre as numerosas tentativas de definição da função biológica do jogo. Umas definem as origens e fundamento deste comportamento teatralizado, entre os animais, como satisfação de um instinto de imitação.
Mas reconhecer o jogo é forçosamente reconhecer o espírito, pois a teatralidade resultante deste, seja qual for sua essência, ultrapassa mesmo no mundo animal ou vegetal, os limites da realidade física. Johan Huizinga comenta o seguinte sobre o tema:

“Se os animais são capazes de brincar, é porque são alguma coisa mais que simples seres mecânicos. Se brincamos e jogamos, e temos consciência disso, é porque somos mais do que simples seres racionais, pois o jogo é irracional”
O poder de fascinação que o exercício de teatralidade impõe, se visto na perspectiva do jogo, não pode ser explicado de forma redutivista, exclusivamente através de análises biológicas; e é exatamente nesta capacidade de excitação que reside a sua própria essência e característica primordial. Em outra passagem, Huizinga afirma que:

“O mais simples raciocínio nos indica que a natureza poderia igualmente ter oferecido a suas criaturas todas essas úteis funções de descarga de energia excessiva, de distensão após um esforço, de preparação para as exigências da vida, de compensação de desejos insatisfeitos etc., sob a forma de exercícios e reações puramente mecânicos. Mas não, ela nos deu a tensão, a alegria e o divertimento do jogo”
Se por suposição imaginarmos existir um Teatro dos Animais, e que a natureza os dotou de uma série de predicados que permitam o surgimento de dramaturgias trágicas ou comédias divertidas, o que estamos considerando em última instância é um exercício de ampliação do próprio conceito de teatralidade, buscando-se conjecturar e encontrar vestígios estéticos e de representação, embutidos por detrás da irracionalidade. Apresentamos este campo de suposição como possibilidade imaginária desta manifestação expressiva que circunda o teatro enquanto espaço comunicacional.

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Ricardo Kosovski é ator, diretor e professor no Tablado e na Uni-Rio.

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