terça-feira, 24 de março de 2009

Apresentamos agora uma seqüência de 20 Textos para Estudo. Ao final de cada texto, indicamos uma sugestão – dentre muitas possíveis – de como interpretá-lo.

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Romeu e Julieta

Shakespeare. Ato I, cena II, Jardim dos Capuleto.

Romeu - Ri das chagas quem jamais foi ferido! (Aparece Julieta, em cima, numa janela). Mas, silêncio! Que luz brilha através daquela janela! É o Oriente e Julieta é o Sol! Surge, claro sol, e mata a invejosa lua, já doente e pálida de desgosto, vendo que tu, sua serva, és bem mais linda do que ela! Não a sirvas, porque é invejosa! Seu traje de vestal é doentio e verde, e só os bufões o usam. Rejeita-o! É minha dama! Oh! ela é o meu amor! Oh! se ela o soubera! Fala, entretanto, nada diz; mas que importa! Falam seus olhos; vou responder-lhes!...Sou muito atrevido. Não está falando comigo. Duas das mais resplandecentes estrelas de todo o céu, tendo alguma ocupação, suplicaram aos olhos dela que brilhassem em suas esferas até que elas voltassem. Que aconteceria se os olhos dela estivessem no firmamento e as estrelas na cabeça? O fulgor de suas faces envergonharia aquelas estrelas, como a luz do dia a de uma lâmpada! Seus olhos lançariam da abóbada celeste raios tão claros através da região etérea que cantariam as aves acreditando chegada a aurora!...Olhai como apóia o rosto na mão! Oh! fosse eu uma luva sobre aquela mão para que pudesse tocar naquele rosto!

Sugestão para estudo

O monólogo de Romeu antecede à célebre Cena do Balcão, provavelmente a mais bela passagem já escrita sobre o despertar de uma paixão. E a paixão, obviamente, está na essência do texto, e ela deve ser explicitada num crescendo, à medida que o personagem tece considerações sobre o objeto amado. É preciso atentar para o fato de que Romeu está fazendo uma descoberta maravilhosa naquele momento. Portanto, as palavras não podem sair de forma a sugerir que já estavam decoradas. O ator deve trabalhar o tempo da descoberta, que não precisa obviamente ser arrastado.

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O Interrogatório

Testemunha 8 -
Quando me tiraram da barra, Boger disse: “Agora você está preparado para uma feliz viagem ao céu”. Fui levado para uma cela do bloco 111, onde fiquei esperando horas e horas a minha execução.

Não sei quantos dias fiquei ali. Meus testículos arroxeados brutalmente. Na maior parte do tempo permaneci em estado de coma. Depois, fui conduzido para a sala das duchas, junto com outros presos e nos fizeram tirar as roupas.

Marcaram nossos números no peito com tinta azul. Eu sabia que isso era a condenação à morte.
Depois que estávamos nus e em fila, o chefe do setor de Informações perguntou quantos mortos devia contabilizar.
Assim que ele saiu fizeram uma recontagem e perceberam que havia um a mais. Eu tinha aprendido a me colocar sempre no último lugar da fila. Fui separado dos outros com um pontapé e me devolveram as roupas. Eu deveria voltar para a cela e aguardar a próxima fornada, mas alguém me levou para a enfermaria.
Também acontecia, que um ou outro, tivesse o destino de sobreviver.
Eu fui um desses.

Sugestão para estudo

O trecho foi extraído da peça O Interrogatório, de Peter Weiss, e encerra o Canto 3. Neste texto, o autor alemão reconstitui - de forma fantasiosa e não esquemática - um tribunal onde estão sendo julgados criminosos nazistas. A testemunha relata como conseguiu escapar e o citado médico Boger está presente. Já se passaram alguns anos, mas é evidente que as lembranças atrozes permanecem.
A maior dificuldade de se interpretar um texto como este consiste na busca do equilíbrio entre emoção e objetividade. Se o ator narrar friamente os fatos, pode sugerir que já superou o trauma ou que se encontra num estado emocional em que nada mais pode atingi-lo. Se, por outro lado, optar pela emotividade, sua contribuição será menos contundente, pois todos os envolvidos - juiz, promotor, advogados etc. - precisam da maior clareza possível para avaliar o grau de culpabilidade dos réus e assim determinar sua justa punição.

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Cartões Sem Resposta

Luis Fernando Veríssimo


Essas datas inaugurais - do nascimento de Cristo, do nascimento do ano, do seu nascimento - são para isto mesmo, para você ficar solene e sentimental e parar para pensar na vida. Pensa-se pouco na vida quando se está ocupado vivendo-a, é bom ter esses dias certos para reflexão e recapitulação, planificação e um pouco de pieguice também. Com o tempo a gente vai readquirindo alguns sentimentos perdidos e eu pretendo terminar meus dias acreditando de novo na regeneração humana, na irmandade entre os povos e no Papai Noel. Vão ter que me convencer do coelhinho da Páscoa mas eu já não acho a idéia tão absurda quanto há alguns anos. E tenho certeza que chegarei ao meu fim acreditando que a gente não morre, a cegonha vem nos pegar e leva de volta.
Deve-se aproveitar esses dias de introspecção e bons impulsos para fazer um levantamento de dívidas afetivas e tentar saldá-las, ainda mais com os juros do jeito que estão. Como se sabe, o pior amigo é o que manda cartão. Ele nunca recebe um cartão de volta, pelo menos não de mim, e no entanto todos os anos manda seu cartão, nos desejando felicidade e nos arrasando de remorso.
A todos os amigos , portanto, mas principalmente aos insensíveis que mandam cartão sabendo que só vão aumentar nossa culpa por não retribuir, aqui vai meu desejo que o ano 2000 não seja nada do que andam dizendo. E juro que entre as coisas que farei em 2000, além de ler os suplementos literários acumulados há dezessete anos e os duzentos livros empilhados na minha cabeceira, está responder aos cartões de fim de ano de vocês. Vou começar agora e se você não receber seu cartão de feliz 2000 até o próximo dezembro é porque o caráter foi mais forte do que a resolução - ou a cegonha veio mais cedo. Em todo caso, obrigado.

Sugestão para estudo

Este texto do Veríssimo não exigirá do aluno maiores dificuldades: é leve, bem-humorado, contendo doses equivalentes de cinismo, ternura e ironia. Se for dito para uma platéia, o ideal é estabelecer com ela uma atmosfera de cumplicidade, como se todos partilhassem de opiniões parecidas. E a forma de contar esta pequena história deve ser a mais natural possível, dispensando-se maiores ênfases, que só contribuiriam para comprometer o indispensável tom coloquial.

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Por uma tarde fria

Ana Amélia
Carneiro de Mendonça


Há dias, ao passar por uma rua, encontrei por acaso uma mulher.
Uma infeliz qualquer levando pela mão uma criança nua.
Eu andava sem pressa, vagamente, por essa tarde fria.
Tinha um vestido quente, luvas espessas,
E trazia por sobre os ombros, negligente,
Desnecessária, por vaidade, enfim,
Uma pele forrada de cetim.
Vendo esse estranho grupo de miséria, a mãe esfarrapada,
Tendo no olhar de transparência etérea todo um romance de desgraça,
E a criancinha delicada que, na rude nudez, só ganha em graça, mas que treme de frio,
Senti um íntimo arrepio, uma vergonha singular de não ter frio,
Por essa tarde fria de cortar.


Sugestão para estudo

Uma das maiores dificuldades encontradas pelo estudante de teatro diz respeito à interpretação de poemas. E a dificuldade se agrava ainda mais quando há rimas muito marcadas, pois então aumenta o risco de se enveredar por um caminho declamatório, com resultados quase sempre artificiais.
Como aqui tratamos de teatro - e um poema não deixa de ser um texto dito por alguém para outra pessoa -, julgamos que o aluno deve estabelecer as mesmas premissas que faria no caso de um “texto comum”:

- Quem eu sou.
- Aonde estou.
- O que estou fazendo.

Ou seja: na medida do possível, criar um personagem que poderia estar dizendo aquelas palavras; em seguida, situá-lo em algum contexto; e finalmente, estabelecer uma razão para ele estar falando aquele poema ou poesia.
Tais “cuidados” podem sem dúvida dar maior segurança ao aluno, que também jamais deve se esquecer de que uma história está sendo contada, ainda que em versos de rima rigorosa.


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No momento não estou

Elisa Lucinda


Olhando a cara dos dias, vejo como é sórdida tua secretária eletrônica: Ela mente pra mim na mesma tônica: doublé de seu medo...Vou te contar um segredo: Eles venceram.
Venceu a mesquinharia, a pequeneza, a teoria rasa, a safadeza...
No meio da luta, você preferiu ser o nêgo filho da puta da história que escreveram pra você encenar, da promessa que fizeram pra você cumprir, pra você pagar.
Essa noite, sua covardia repete o açoite: aceita a mesma escravidão pra te enganar.
Ai, como é mórbida tua secretária eletrônica, roubou meu batom e no mesmo tom me diz que você não está. Como uma armadilha de sonora trilha, pede um recado após o sinal...Não dou!
Antes disso terá um longo curto-circuito entre as pernas, essa tua secretária calhorda, essa tua secretária moderna, tão sonsa, tão palerma. Ligada por ti pra te sacanear!
Acionada por ti pra te carear os dentes da alma e depois te pede pra sorrir pra sua própria demência. Uma ridícula dona de casa chamada Ausência!

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Sugestão para estudo

Talvez seja correto afirmar que Elisa Lucinda escreve poesias para serem ouvidas, tamanha é a teatralidade nelas contida - isto não significa, bem entendido, que não possam ser apreciadas quando apenas lidas. Assim, quase todas elas oferecem excelentes oportunidades para um ótimo trabalho de interpretação. A que selecionamos focaliza com sensibilidade uma série de queixas amorosas e, de quebra, investe contra esse abominável aparelho denominado secretária eletrônica, permanente fonte de desgostos e frustrações.
Vamos, portanto, fazer com que a poesia aconteça, imaginando quem seria a mulher que se lamenta e acusa; em seguida, uma circunstância que confira credibilidade ao desabafo - a personagem está sozinha, fala na secretária eletrônica, está escrevendo uma carta?. E finalmente, trabalhar as idéias e sentimentos com a maior carga possível de verdade e emoção. Quem sabe a pessoa do outro lado desliga a secretária e atende?

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Aprendiz de feiticeiro

Maria Clara Machado


Uranus (Ao telefone) - Alô? Sim, pode fazer a ligação! O que terá acontecido? Será que rejeitaram de novo? Barnard? Como vai passando, amigo? Yes. O que? Bem, acabei de aperfeiçoar minha nova fórmula de crescimento das laranjas. Não, melancias, meu caro! Do tamanho de melancias! Agora vou partir para as euforbiáceas. Necessidade nacional. Yes, nós temos bananas. Também estou cuidando. Não, não quero saber mais de transplantes. Deixo isto para vocês. Bem, ainda tenho a técnica de transplante da massa cinzenta. Não, desanimei. Há muita rejeição. Experimentei num burro e para te confessar humildemente a verdade, ele ficou ainda mais burro. Empacou e depois empacotou. Fiquei com fastio de transplante. Você sabe, o burro era de estimação. Pelo contrário, Barnard, a fórmula pode tornar-se muito perigosa, porque, se de um lado acentua as qualidades, por outro acentua também os defeitos. Se o paciente tem tendência a burro ficará ainda mais burro. Rejeição da massa cinzenta é coisa corriqueira, você sabe, o hipotálamo tem suas exigências. Bem. O que? Hoje? Oh! Meu deus! Está bem. Sei. Bem, Barnard, tomarei o próximo avião. Recomendações à senhora Barnardina. Sim, sim, levarei. Good By!

Sugestão para estudo

O Dr. Uranus é um sábio dedicado ao estudo de fórmulas capazes de fazer crescer os alimentos. Quando parece estar quase chegando à equação perfeita, recebe o telefonema de Christian Barnard, médico sul-africano pioneiro nos transplantes de coração. É claro que a autora aproveita o recente (na época) avanço da medicina para fazer uma hilariante brincadeira. Assim, é importante transmitir tanto a paixão de Uranus pela ciência como seu humor, em especial no tocante à burrice. Sem esquecer, naturalmente, de que o personagem está falando ao telefone, o que pressupõe pausas a serem preenchidas com variadas reações.

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O Mambembe

Arthur Azevedo

Frazão - E levo esta vida há trinta anos! Pedindo hoje, pagando amanhã, tornando a pagar, sacando sobre o futuro com a hipoteca do ganho, com as alternativas da fortuna, sempre de boa fé e sempre receoso que duvidem de mim, porque sou cômico, e ser cômico, vem de longe. Mas por que persisto? Por que não fujo à tentação de andar com o meu mambembe às costas? Perguntem às mariposas porque se queimam na luz...Perguntem aos cães porque não fogem quando avistam de longe a carrocinha da Prefeitura! Mas não perguntem a um artista de teatro porque não é outra coisa senão artista de teatro...Isto é uma fatalidade que nos condena o nosso próprio temperamento. O jogador é infeliz porque joga? O fraco bebedor porque bebe? Também isto é um vício terrível porque ninguém considera vício e, portanto, é confessável, não é uma vergonha, é uma profissão que absorve toda a atividade, toda a energia, todas as forças. E para quê? Qual o resultado de todo esse afã? Chegar desamparado e paupérrimo a uma velhice cansada! Aí está o que é ser artista no Brasil!

Sugestão para estudo

O trecho selecionado constitui uma das análises mais dramáticas, lúcidas e líricas do que seja a paixão de representar. Aqui, o que importa é tentar viver, com o máximo de verdade, os sentimentos implícitos nesta reflexão. Sem pressa. Descobrindo uma a uma as frases, como se estas ocorressem no momento de serem enunciadas. E dirigindo-as a um interlocutor imaginário, como se o personagem estivesse respondendo a uma pergunta. O texto, no fundo, não deixa de ser uma confissão. E isto pressupõe um ouvinte.

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Lucrécia, o veneno dos Bórgia

Paulo César Coutinho


(O monólogo que se segue constitui o prólogo. Maquiavel faz uma reverência e apresenta-se ao público)

Maquiavel - Nicolau Maquiavel, escritor, dramaturgo, filósofo, historiador. Mas, nos dias que correm, prestígio não enche barriga. Tive mesmo é que me empregar como secretário particular de César Bórgia. Nenhum problema, estava em boa companhia. Sob o mesmo teto havia empregados como Michelangelo. Além do salário, o emprego trazia vantagens adicionais para um cronista da época. Viagens aos cenários de guerras. Acesso à intimidade do poder, testemunhando as intrigas palacianas, no palco mesmo das decisões. A confiança de personagens-chave, abrindo o precioso cofre de suas confidências. O registro de acordos e documentos, na hora em que eram feitos e desfeitos. Enfim, espectador privilegiado, e ator nos bastidores desse espetáculo, que é a História. Pois, como todos sabem, a política é a arte de enganar os outros, sem que eles percebam, e sem deixar vestígios. Meu patrão, César Bórgia, era uma eterna fonte de inspiração e sua irmã, de permanente fascínio. Eu conheci Lucrécia Bórgia! Hoje, se falam horrores dessa dama. Posso garantir que tudo que se diz dela...ainda é pouco. Lucrécia era excessiva, uma pérola cultivada. Exerceu como poucos a virtude do vício, não sendo desprovida de talentos e sentimentos contraditórios. Naquele tempo, não importavam os meios, quando os fins eram o poder, a riqueza e a glória. Talvez os senhores achem difícil de compreender, vivendo numa época tão diferente. Os Bórgia tinham a ambição como um refinamento do espírito. A família era muito unida...O papa adorava seus filhos, sobretudo Lucrécia...

Sugestão para estudo

O texto define em linhas gerais o caráter do personagem e seus principais objetivos, assim como situa a platéia no contexto da narrativa. A fala é dita para o público, e o aluno deve evitar maiores atropelos e tentar valorizar todas as informações. Algumas delas, como se percebe, repletas de ironia.

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Versos íntimos

Augusto dos Anjos

Vês! Ninguém assistiu ao formidável
Enterro de tua última quimera.
Somente a Ingratidão - esta pantera -
Foi tua companheira inseparável!

Acostuma-te à lama que te espera!
O Homem, que, nesta terra miserável,
Mora, entre feras, sente inevitável
Necessidade de também ser fera.

Toma um fósforo. Acende teu cigarro!
O beijo, amigo, é a véspera do escarro,
A mão que afaga é a mesma que apedreja.

Se a alguém causa inda pena a tua chaga,
Apedreja essa mão vil que te afaga,
Escarra nessa boca que te beija!

Sugestão para estudo

Versos íntimos tem como tema central a ingratidão. Seu tom é amargo, sombrio, ainda que se perceba uma certa ironia, ainda que desesperada. Como o texto nos leva a crer que uma pessoa se dirija a outra, talvez seja interessante para o aluno criar um contexto, ou seja, imaginar um personagem que fale com alguém. Ou quem sabe o próprio, falando consigo mesmo, diante de um espelho. Mas o fundamental é trabalhar cuidadosamente cada intenção, de preferência de forma lenta, a fim de valorizar todos os conteúdos propostos.

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Briga no beco

Adélia Prado

Encontrei meu marido às três horas da tarde
com uma loura oxidada.
Tomavam guaraná e riam, os desavergonhados.
Ataquei-os por trás com mão e palavras
que nunca suspeitei conhecesse.
Voaram três dentes e gritei, esmurrei-os e gritei,
gritei meu urro, a torrente de impropérios.
Ajuntou gente, escureceu o sol,
a poeira adensou como cortina.
Ele me pegava nos braços, nas pernas, na cintura,
sem me reter, peixe-piranha, bicho pior, fêmea-ofendida,
uivava.
Gritei, gritei, gritei, até a cratera exaurir-se.
Quando não pude mais fiquei rígida,
as mãos na garganta dele, nós dois petrificados,
eu sem tocar o chão. Quando abri os olhos,
as mulheres abriam alas, me tocando, me pedindo graças.
Desde então faço milagres.

Sugestão para estudo

O poema tem como sentimento primordial a indignação. Mas deve-se ter cuidado para não imprimir à narrativa um ritmo muito acelerado, pois aí corre-se o risco de não valorizar suficientemente as poderosas imagens criadas por Adélia Prado.

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O guardador de rebanhos
(XLVIII)

Fernando Pessoa


Da mais alta janela da minha casa
Com um lenço branco digo adeus
Aos meus versos que partem para a Humanidade
E não estou alegre nem triste.
Esse é o destino dos versos.
Escrevi-os e devo mostrá-los a todos.
Porque não posso fazer o contrário
Como a flor não pode esconder a cor,
Nem o rio esconder que corre,
Nem a árvore esconder que dá fruto.
Ei-los que vão já longe como que na diligência
E eu sem querer sinto pena
Como uma dor no corpo.
Quem sabe quem os lerá?
Quem sabe a que mãos irão?
Flor, colheu-me o meu destino para os olhos.
Árvore, arrancaram-me os frutos para as bocas.
Rio, o destino da minha água era não ficar em mim.
Submeto-me e sinto-me quase alegre,
Quase alegre como quem se cansa de estar triste.
Ide, ide de mim!
Passa a árvore e fica dispersa pela Natureza.
Murcha a flor e o seu pó dura sempre.
Corre o rio e entra no mar e a sua água é sempre a que foi sua.
Passo e fico, como o Universo.

Sugestão para estudo

O poema, escrito por Alberto Caeiro (um dos heterônimos de Fernando Pessoa) exibe uma espécie de alegria melancólica, algo resignada. Portanto, deve ser dito sem maiores arroubos, num tom calmo, mas nem por isso isento de emoção.

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Excesso de companhia

Carlos Drummond de Andrade

Os anjos cercavam Marilda, um de cada lado, porque Marilda ao nascer ganhou dois anjos da guarda.
Em vez de ajudar, atrapalhou. Um anjo queria levar Marilda a festas, o outro à natureza. Brigavam entre si, e a moça não sabia a qual deles obedecer. Queria agradar aos dois, e acabava se indispondo com ambos.
Tocou-os de casa. Ficou sozinha, sem apoio espiritual mas também sem confusão. Os dois vieram procurá-la, arrependidos, pedindo desculpas.
- Só aceito um de cada vez. Passa uns tempos comigo, depois mando embora, e o outro fica no lugar. Dois anjos ao mesmo tempo é demais.
Agora Marilda é o anjo da guarda dos seus anjos, um de cada vez.

Sugestão para estudo

Este delicioso texto, extraído do livro infantil Vó caiu na piscina, tem na singeleza e no humor suas principais características. O aluno deve trabalhá-lo como se fosse contá-lo a uma criança, ou seja, sem pressa e valorizando cada novo dado que surge.

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À margem da vida

Tennesse Williams

Amanda

Como você sabe, esta tarde eu ia ser empossada no meu posto nas Filhas da Revolução Americana. Mas resolvi dar um pulo na Escola Comercial Rubicam para avisar que você estava resfriada e perguntar se você estava progredindo. Fui falar com a professora de datilografia e me apresentei como sua mãe. Ela nem sabia quem você era. “Wingfield?”, ela repetiu. “Não temos nenhuma aluna com esse nome”. Eu assegurei que sim, que você freqüentava as aulas desde janeiro. “Será - disse ela - que a senhora está falando de uma mocinha tremendamente tímida, que deixou o curso depois de freqüentar só uns dias?” Não, respondi, minha filha Laura tem ido à escola todos os dias durante as últimas seis semanas! Então ela consultou o livro de frequência e lá estava o seu nome, com todas as datas em que você estivera ausente, até que decidiram que você tinha abandonado o curso. Como eu insistisse que deveria haver um engano, ela disse: “Agora eu me lembro dela. Suas mãos tremiam tanto que nem podia bater nas teclas certas. A primeira vez que fizemos uma prova de velocidade ela ficou enjoada e teve que ser carregada para o banheiro! Depois, nunca mais apareceu!” (Tempo) Eu me senti tão fraca que mal podia me manter de pé...Tive que me sentar, enquanto me traziam um copo d’água. (Tempo) A matrícula de 50 dólares, todos os nossos planos, minhas ambições e esperanças para o seu futuro...tudo fora por água abaixo, sem mais nem menos...(Tempo) Laura: onde você esteve todo esse tempo que fingia sair para freqüentar a escola?

Sugestão para estudo

O trecho, extraído de uma das peças mais representadas do autor norte-americano, permite à estudante trabalhar uma das passagens mais dramáticas do texto, pela revelação que contém e seus possíveis desdobramentos. O monólogo deve ser feito sem pressa, já que a personalidade melodramática da protagonista a leva a valorizar cada detalhe de sua narrativa, o que contribui para exasperar ainda mais sua tímida filha.

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Martha Medeiros

foram exatos treze segundos
mais do que dura um orgasmo
menos que um comercial de tevê
“Não posso mais viver com você
me apaixonei por outra mulher”
você disse pausado, com a voz embargada
e levou treze segundos
pra dizer duas frases
tivesse mais pressa ou menos remorso
teria sido mais rápido
mas você estava angustiado
e levou treze segundos
pra desocupar meu lugar
como quem desfaz um negócio
tivesse escrito uma carta
haveria de ser mais sutil
tivesse telefonado
seria obrigado a um olá e a um adeus
mas olhando nos olhos
e sem divórcio ou fiasco
mudaste em treze segundos meu estado civil
desarrumando a vida
que eu tinha inventado


Sugestão para estudo

Extraída do volume De cara lavada, cuja leitura recomendamos com entusiasmo, esta poesia (sem título, como todas as demais que integram o livro) tem um tom ao mesmo tempo amargo e irônico, sendo que a ironia funciona como uma espécie de analgésico contra a dor da separação. Ao trabalhar a poesia, há que se levar em conta também o fator tempo, que sem dúvida tem o poder de amenizar o peso de recordações penosas.

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O jardim das cerejeiras

Anton Tchecov


Lopakhin

Sim, fui eu. Um minuto, esperem um pouco, estou com a cabeça tonta, nem posso falar direito. (Ri) Quando chegamos para o leilão, o Deriganov já estava lá. Leonid Andreievitch só tinha 15 mil rublos, o Deriganov foi logo oferecendo 30 mil, além das dívidas. Vendo isso, me atraquei com ele, ofereci 40; ele, 45; eu, 55. Ele ia subindo 5 mil de cada vez e eu subia 10 mil. E acabou. Dei 90 mil, além das dívidas, o martelo bateu pra mim! O jardim das cerejeiras é meu agora! Meu! (Ri às gargalhadas) Santo Deus! Vocês podem dizer que eu estou bêbado, maluco, que estou sonhando. (Bate com os pés) Mas não riam de mim! Se meu pai e meu avô saíssem da cova para ver tudo isso que aconteceu, para ver como seu Iermolai, que levou tantas surras, que andava descalço na neve, como um miserável, analfabeto Iermolai comprou a fazenda mais linda que há neste mundo! Comprei a fazenda onde meu pai e meu avô foram servos, não podiam entrar na cozinha! Vai ver que estou dormindo, sonhando, só pode ser mesmo um sonho! (Ouve-se a orquestra afinando os instrumentos) Toquem, maestros, eu quero ouvir! Venham todos ver como Iermolai Lopakhin vai sentar o machado nas cerejeiras, venham ver as árvores caindo! Vamos construir casas aqui. E nossos netos e bisnetos hão de ver surgir uma vida nova! Música! Vamos!

Sugestão para estudo

Esta cena, que ocorre no final do 3º ato, é a mais dramática desta obra-prima de Tchecov. Filho e neto de servos, e atualmente rico comerciante, Yermolai Lopakhin acaba adquirindo a fazenda de Liubov Andreievna, após tê-la advertido várias vezes de que vender a propriedade era a única saída para saldar suas dívidas. A grande dificuldade desta passagem, aqui um pouco reduzida, reside na dualidade de emoções do personagem. Se por um lado ele está orgulhoso de seu feito, por outro sabe o que ele representa para aquela família, a enorme dor de ter que se desfazer da fazenda, símbolo de uma aristocracia decadente que será irremediavelmente substituída pela burguesia ascendente. O ator, ao representar este monólogo, deve imaginar que está rodeado pelos membros da família, que acompanham atônitos os fatos que ele narra.
(Para entender melhor o contexto, recomendamos a leitura da peça, à disposição no nº 163 dos Cadernos de Teatro)

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HAMLET (ato III, cena I)

Shakespeare

Hamlet

Ser ou não ser, eis a questão. O que é mais nobre, suportar os golpes e as flechadas do destino cruel ou lutar contra um mar de sofrimentos e enfrentando-os dar-lhes um fim? Morrer, dormir, nada mais. E com esse sono terminar com todas as aflições do coração e as fraquezas a que a carne está sujeita. Morrer, dormir, dormir...Talvez sonhar. É esse o obstáculo. E depois de ter escapado ao tumulto da vida, com o sono da morte vem os sonhos. É isso que nos faz hesitar. É isso que impõe uma tão longa vida ao nosso desespero. Quem suportaria as chibatadas e as injúrias do destino, a tortura dos tiranos, a humilhação dos arrogantes, o amor rejeitado, as injustiças da lei, a insolência do poder, o desprezo que os homens de valor recebem dos medíocres, quem suportaria tudo isso se pudesse encontrar a paz na ponta de um punhal? Quem agüentaria gemendo e suando o fardo de uma vida inglória, se não fosse o receio de alguma coisa após a morte, esse país desconhecido do qual viajante algum jamais voltou? É isso que faz de nós todos covardes e transforma as cores vivas da resolução na sombra pálida do pensamento. E os nossos grande projetos desviam-se do seu rumo e não se transformam em ação.

Sugestão para estudo

O mais belo solilóquio já escrito dispensa apresentações, naturalmente. E embora o amigo leitor já o tenha visto interpretado, no teatro ou no cinema, por alguns dos maiores atores do mundo, não deve se deixar influenciar por suas atuações e sim buscar uma forma particular de dar vida a esta profunda reflexão sobre o ato de viver. De preferência, evitando um tom impostado, como se os pensamentos pudessem ser seus, e estivessem acontecendo agora.

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18 de julho

Wilhelm, o que seria de nosso coração num mundo sem amor? O mesmo que uma lanterna mágica sem luz! Mal você coloca a lâmpada lá dentro, aparecem as imagens multicoloridas em sua parede branca! E mesmo que isso não passe de uma ilusão passageira, continuará fazendo a nossa felicidade, sempre que estivermos diante dela, como jovens inocentes, encantados com as maravilhosas aparições. Hoje não pude ir à casa de Lotte, impedido por uma reunião inevitável. Que fazer? Mandei o meu criado até lá, só para ter alguém ao meu lado que tivesse estado perto dela hoje. Com que impaciência o esperei, com que alegria o vi chegar! Teria agarrado-o pela cabeça e beijado-o, se a vergonha não tivesse me impedido.
Dizem que a pedra de Bolonha, quando exposta ao sol, absorve os seus raios e depois brilha algum tempo durante a noite. Foi isso que aconteceu com o rapaz. A sensação de que os olhos dela haviam pousado em seu rosto, nas suas faces, nos seus botões e na gola de seu sobretudo, tornava-o, para mim, tão sagrado, tão precioso! Nesse momento, não teria vendido o rapaz nem por mil táleres. Senti-me tão bem em sua presença. Deus queira que você não ria disso. Wilhelm, é ilusão quando nos sentimos felizes?

Sugestão para estudo

O trecho acima foi extraído de Os sofrimentos do jovem Werter, de Johann Wolfgang Goethe, considerado o mais famoso romance da literatura alemã. Escrita em forma de cartas, a obra gira em torno de uma grande paixão, cujo limite é a própria morte. Aqui, o protagonista escreve a um amigo tentando transmitir seu estado de absoluta felicidade, motivada pela paixão que sente por Lotte. Portanto, o que importa é tentar ao máximo transmitir o arrebatamento do personagem, expresso de forma ao mesmo tempo simples e magistral pelo gênio alemão.

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O jardim das cerejeiras

Anton Tchecov

LIUBOV - É um telegrama de Paris. Chegam todos os dias. Aquele doido está doente outra vez, pede perdão, implora que eu vá - e eu devia mesmo ir cuidar dele. (pausa). Estou vendo em seu rosto que você me censura, Pétia. Mas, que hei de fazer? Ele está sozinho, infeliz! Quem vai cuidar dele, quem vai impedi-lo de fazer loucuras, quem vai lhe dar o remédio na hora certa? (Pausa) E por que esconder? Por que não declarar? Eu gosto dele, gosto! É evidente! Esse amor é uma pedra amarrada ao pescoço, me arrastando para o fundo. Mas eu gosto da pedra, não posso viver sem ela! (pausa) Não me julgue mal, Pétia, não diga nada. Não fale...

Sugestão para estudo

O texto acima é parte de um diálogo travado por Libov Andreiévna e Trofímov, no 3º ato. Nele a protagonista tenta, inicialmente, convencer o amigo de que possuiria razões lógicas e até humanitárias para ceder às súplicas do amante. Logo, no entanto, e sem qualquer reserva, expõe toda a sua paixão pelo homem que a arruinou, exibindo total lucidez quanto ao contexto da relação. Assim, a aluna que trabalhar este monólogo deverá prestar bastante atenção às duas partes, valorizando-as em igual medida, sobretudo a última, que define bem seu caráter arrebatado.

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Enleio

Carlos Drummond de Andrade


Que é que vou dizer a você?
Não estudei ainda o código de amor.
Inventar, não posso.
Falar, não sei.
Balbuciar, não ouso.
Fico de olhos baixos espiando,
no chão, a formiga.
Você sentada na cadeira de palhinha.
Se ao menos você ficasse aí nessa posição,
perfeitamente imóvel, como está,
uns quinze anos (só isso)...
Então, eu diria:
Eu te amo.
Por enquanto sou apenas o menino
Diante da mulher que não percebe nada.
Será que você não entende?
Será que você é burra?

Sugestão para estudo

Esta singela e deliciosa poesia pode ser trabalhada a partir de duas premissas: humor e timidez. É o que o “personagem” transmite, basicamente. Como, aliás, o transmitia o próprio Drummond.
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A lua cheia deu na cara dela

Elisa Lucinda

Hoje perdi a palavra
O contato com ela
O amor calou- me a boca.
O amor boicotou de mim
minha própria informação
Os planos se espatifaram
contra os móveis de minha própria casa
A ação, derretida manteiga, mela o tapete
(não deve ser nada sério)
apenas tenho impotentes vontades como
a de quebrar essa merda desse telefone
que está sendo pago pra alvoroçar meu coração.
Pago por mim.
Eu financio essa tortura
de não ser nunca tua voz do outro lado da linha.
Que linha móvel indecifrável me pendura
e compromete meu ser ao I Ching infame da Telerj?
Hoje perdi a palavra. A língua me renuncia.
O amor me empanturrou a fala
mas eu não vou me comover.
Há um ladrão que me saqueou a alma
afanou- me o senso
atordoou- me a calma
mas eu não vou denunciar
(não deve ser nada sério)
apenas dormi acordada
e abri as portas quando estavam sendo arrombadas.
Os danos estão à mostra
e o ladrão diz que não houve nada.
Apenas a lua me fura os olhos e eu sou derramada
Hoje perdi a palavra.
Hoje perdi o som de minha própria caligrafia,
o barulho sensual de minhas consoantes
Adiante perdi a estrada que ia dar
na minha própria cozinha
Na minha, estou calada.
(não deve ser nada sério)
Apenas o amor chegou na hora inesperada
e deparou com máscaras gelatinosas na minha cara
bobs nos cabelos
tranquilizantes sobre a saga.

(Hoje é peixes e afogamentos e, dizem, março, 14, 1987)

Sugestão para estudo

O presente poema trata, evidentemente, de amor. De um amor não mais correspondido, mesmo que aquele que tenha sofrido a perda ainda alimente alguma esperança – como a de ouvir a voz amada ao telefone. Portanto, a abordagem deste belo texto pressupõe paixão, arrebatamento e, obviamente, muita dor e revolta.
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