terça-feira, 17 de janeiro de 2012

Teatro/CRÍTICA

"O bom canário"

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Vigoroso libelo contra a hipocrisia


Lionel Fischer


"A peça conta a história do casal Jack - escritor, romancista de grande futuro - e Annie, dona de casa e viciada em anfetaminas desde a adolescência. Apesar dos supostos problemas, o casal vive bem, se ama e é feliz. Charlie é um editor que trabalha na indústria literária pornográfica, e vê no romance de Jack a chance de realizar um grande projeto e ganhar dinheiro. Transitando entre o mundo das artes, a escrita, as drogas, o amor, a ambição, o texto fala sobre padrões, loucura, individualidade e tudo que nos torna humanos e complexos".

Extraído do release que me foi enviado, o trecho acima sintetiza os elementos essenciais da trama de "O bom canário", do norte-americano Zacharias Helm, que acaba de entrar em cartaz no Teatro Poeira. Mauro Lima assina tradução e adaptação, Rafaela Amado e Leonardo Netto dividem a direção (concepção de Netto) e Camilla Amado responde pela direção geral da montagem. No elenco, Flávia Zillo, Joelson Medeiros, Érico Brás, Leandro Castilho, Marcos Ácher, Roberto Lobo e Sara Freitas.

Como dito no parágrafo inicial, o texto aborda muitos temas. Mas um deles me parece essencial: a preservação da individualidade, da singularidade de cada um, num mundo em que cada vez mais as pessoas se parecem, agem da mesma forma, valem-se das mesmas tecnologias para permanecerem "antenadas" etc.

Annie é, sem dúvida, uma mulher problemática - sua dependência das drogas a torna um tanto intempestiva, imprevisível em seus humores, em certa medida antisocial. Mas não deixa de ser amorosa e, sobretudo, absolutamente autêntica. Ou seja: não entra no jogo das conveniências e sempre diz exatamente o que pensa, pouco se importando com as conseqüências. E tal postura, totalmente avessa à hipocrisia, a converte numa espécie de bomba-relógio, que pode explodir a qualquer momento.

E as explosões se sucedem, tanto no âmbito familiar - Jack tenta desesperadamente convencer a mulher a abandonar o vício - quanto no profissional - numa festa na casa de um grande editor, disposto a adiantar vultosa soma para que Jack escreva um próximo romance, Annie não consegue se conter e trava um inapropriado embate com um renomado crítico, cujas opiniões despreza por completo.

Tal atitude, evidentemente, faz com que o evento termine de forma lamentável e o projeto editorial ameaça naufragar. No entanto, já perto do desfecho, a trama exibe uma inesperada revelação, que, obviamente, não posso aqui detalhar, pois isso privaria a platéia de uma surpresa totalmente imprevista.

Bem escrito, contendo ótimos personagens, diálogos fluentes e temas mais do que pertinentes, "O bom canário" recebeu excelente versão cênica - e aqui atribuo tal mérito a Rafaela Amado, Leonardo Netto e Camilla Amado, já que, em função dos créditos, não consegui aferir com exatidão a contribuição pessoal de cada um. Mas isso é o que menos importa. O que cumpre ressaltar é a irrepreensível dinâmica cênica, a precisão dos tempos rítmicos e a expressividade das marcas, afora a capacidade do trio de diretores de extrair impecáveis atuações de todo o elenco.

Na pele de Annie, Flávia Zillo exibe performance irretocável, conseguindo materializar na cena todas as muitas e diversificadas facetas de uma mulher atormentada pelo vício mas, ainda assim, amorosa e parceira incondicional de seu marido. Este é vivido de forma exemplar por Joelson Medeiros, tanto nas passagens em que o personagem vale-se de ironias quanto naquelas em que se vê tomado pelo mais profundo desespero. Sem dúvida, um performance que comove pela total capacidade de entrega do ator.

Encarnando o abjeto e, ao mesmo tempo, engraçado Charlie, Érico Brás também exibe atuação irretocável, o mesmo aplicando-se a Leandro Castilho, que dá vida ao traficante Jeff. Quanto aos demais, em papéis de menores possibilidades, ainda assim Roberto Lobo (Stuart, editor), Marcos Ácher (Mulholand, crítico) e Sara Freitas (Sylvia, esposa de Stuart) valorizam ao máximo o que lhes cabe executar em cena.

Na equipe técnica, destaco com o mesmo entusiasmo a contribuição de todos os profissionais envolvidos nesta oportuna empreitada teatral - Mauro Lima (tradução), Luiz Paulo Nenen (iluminação), Ney Madeira, Dani Vidal e Pati Faedo (figurinos), Marcelo Lipiani e Lídia Kosovski (cenografia) e Leonardo Netto (trilha sonora).

O BOM CANÁRIO - Texto de Zacharias Helm. Tradução e adaptação de Mauro Lima. Direção de Rafaela Amado e Leonardo Netto. Direção geral de Camilla Amado. Com Flávia Zillo, Joelson Medeiros, Érico Brás, Leandro Castilho, Marcos Ácher, Roberto Lobo e Sara Freitas. Teatro Poeira. Quinta a sábado, 21h. Domingo, 19h.  

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