quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

Um ato de devoção



de Deborah Tannen


Tradução:
Renata Cantanhede Amarante




Personagens:


Pai - 85 anos


Filha - quase 50 anos


Cenário: um quarto de hotel em Varsóvia, no fim de uma tarde de verão.


(Pai e Filha entram. Ele não caminha com segurança. Tentando ser discreta, ela o vigia de perto, pronta a segurá-lo, no caso de ele cair. A Filha solta alguns pacotes no chão)


Filha - Nossa, que canseira.


Pai - Está cansada mesmo? Pensei que você só tinha voltado porque acha que eu não sou mais capaz de ir a lugar nenhum sozinho. Você não preferia continuar fazendo compras com sua mãe e o David?


Filha - Não, eu também queria voltar. Não agüento ficar tanto tempo fazendo compras.


Pai - E o David? Ele gosta mesmo de fazer compras, ou só está fazendo companhia para sua mãe?


Filha - Não acho que ele se importe, mas ele deve estar lá mais para fazer companhia a ela.


Pai - É um bom sujeito, o seu David. Nunca tenho paciência para fazer compras tanto tempo quanto a sua mãe.


Filha - Nem eu. E ele provavelmente também queria me dar algum tempo para ficar sozinha com o senhor.


Pai - Que gentileza você dizer isso. A maioria das filhas não consegue ficar perto de seus velhos pais.


Filha - Não se os pais forem como o senhor. A gente não teria feito essa viagem se eu não gostasse da sua companhia. Vai se deitar para descansar?


Pai - Não, vou me sentar aqui para ler. (Pega o jornal que está sobre a poltrona e senta-se)


Quer ler o jornal?


Filha - Não, obrigada. Se o senhor vai ler, eu vou ficar escrevendo. Eu quero anotar algumas coisas desde o primeiro dia. A viagem já está quase no fim e eu ainda não tive chance de escrever nada.


(Senta-se na cama, encostada na cabeceira, e pega um caderno no qual começa a escrever. À medida que o faz, ouve-se sua voz recitando o que escreve; rapidamente a voz muda para um tom de fala normal e não de ditado, mas entende-se que a platéia ainda ouve o que está sendo escrito. Enquanto ela fala, o Pai adormece, e o jornal cai em seu colo. Quando termina a primeira fala da Filha, o Pai está dormindo. Com as luzes esmaecidas, ele se levanta, não mais se movendo como um velho, e fala com a voz de suas lembranças, uma versão mais jovem de si mesmo. O diálogo de ambos está repleto de não-ditos e ironia sutil, sem uma entonação judaica estereotipada ou exagerada)


Filha - A primeira coisa que fizemos depois de chegar ao hotel em Varsóvia foi tomar um táxi até o lugar em que meu pai morava quando criança. A rua ainda estava lá, com a placa indicando Twarda (pronuncia-se “tvarda”), mas no lugar do prédio de apartamentos em que ele morava havia um prédio cinzento sinistro com um muro de cimento coberto de pichações obscenas feitas com spray - um rato grande inserindo alegremente um falo enorme na traseira de um rato menor. Eu fiquei assombrada com a idéia de estar de pé na rua sobre a qual tinha ouvido meu pai falar a vida toda.


Pai - Paramos embaixo da placa, Twarda Ulica (pronuncia-se “tvarda ulitsa”). Tudo estava tão desolado e quieto, os prédios construídos depois da guerra pareciam tão sem expressão e opacos. Quando eu era criança, a vizinhança estava sempre agitada e cheia de vida. Havia lojas de ambos os lados da rua, e as calçadas fervilhavam de gente...judeus com suas longas barbas, botas pretas e as franjas rituais dos xales de oração aparecendo por baixo dos coletes. Trabalhadores, mulheres fazendo compras, homens entrando e saindo da sinagoga. Havia tragers - carregadores - homens contratados por pessoas que eram pobres demais para alugar uma carroça, e que carregavam cargas espantosas nas costas - uma mesa, uma cama. Epiléticos caíam e tinham convulsões no meio da rua. Ninguém parava para olhar, porque era comum. E mendigos, mendigos esfarrapados por toda parte. Alguns usavam roupas feitas de sacos, outros tinham trapos enrolados nos pés em vez de sapatos. Muitos mendigos eram aleijados. Quando eu fui para a América, sempre me perguntava: onde estão os mendigos?


Filha - No segundo dia, fomos ao Museu Histórico Nacional, onde tínhamos ouvido falar que havia um filme sobre a destruição de Varsóvia durante a Segunda Guerra. O narrador contava como os habitantes da cidade foram deportados para outra parte do país à medida que os alemães demoliam sistematicamente a cidade. Quando a guerra acabou, os habitantes voltaram. Havia cenas documentais emocionantes dos poloneses passando pedras de mão em mão durante a reconstrução de Varsóvia... mas nada sobre a morte de 30% da população da cidade: toda a população judaica. Havia algumas tomadas rápidas de judeus sendo deportados, enquanto o narrador dizia: “Os judeus foram os primeiros a partir.” Ele deixou de mencionar que eles não voltaram.


Pai - Na rua havia droshkis (pronunciado como se escreve) - carruagens puxadas por cavalos que levavam passageiros, e carroças abertas para o comércio. Os condutores iam batendo nos animais e gritando com eles, e gritando para os pedestres saírem da frente. Às vezes uma kareta passava por ali - uma carruagem elegante de gente rica. Aquilo causava sensação, e as pessoas se perguntavam se uma pessoa rica iria descer ali, e o que poderia estar querendo. Bondes passavam em ambas as direções, com os sinos tocando. Os trilhos corriam pelo meio da rua, por isso as pessoas esperavam na calçada e caminhavam para o bonde quando ele parava. Um dia um velho judeu desceu do meio-fio no momento em que um automóvel passou correndo no espaço entre o bonde e a calçada, e a roda passou por cima do seu pé. Enquanto o homem gritava de dor, o motorista parou, desceu do carro, correu para ele, e começou a censurá-lo em voz alta por atrapalhar seu caminho. Logo depois que eu cheguei na América, vi um motorista de táxi e seu passageiro discutindo, de pé, ao lado do carro. Fiquei impressionado com o contraste. Na Polônia, se você era rico o bastante para ter um automóvel, tinha o direito de gritar com qualquer um. Na América, um motorista de táxi, com seu boné de trabalho, estava gritando com um homem rico de cartola de seda.


Filha - Fomos ao cemitério judaico onde estava enterrada a avó do meu pai. Ele nos contou como foi o enterro, quando ele tinha 11 anos, pouco antes de partir para a América. Ele caminhara atrás do carro fúnebre puxado por cavalos, com o avô e os tios Joshua e Boruch Zishe (Pronunciado rapidamente, soa como “Buczicha”), enquanto os outros vinham atrás em carruagens. Ele estava orgulhoso de estar andando entre os homens, até sua mãe mandar uma amiga ir buscá-lo para que ele se sentasse na carruagem com ela. Quando chegaram ao cemitério, ele se agarrou ao seu tio Boruch Zishe, e o seguiu até o aposento em que o corpo seria lavado de forma ritual antes do enterro. Ele disse que o enterro da avó estava tão vivo em sua lembrança que ele sentia que poderia andar direto até o túmulo, mas não pôde, porque o cemitério que ele tinha conhecido em criança tinha sido destruído durante a guerra. Lápides tinham sido despedaçadas por vândalos ou arrancadas pelas árvores que tinham crescido; os caminhos estavam cobertos de mato. Foi a primeira vez que eu ouvi meu pai usar o nome iídiche, Boruch Zishe, para falar do homem simples e quieto que eu conheci a vida inteira como tio Bob.


Pai - Nosso prédio tinha sido construído em volta de um pátio pavimentado de pedra. A entrada era um grande arco com um portão de madeira que era trancado de noite. No térreo havia lojas dando para o pátio. Uma delas era uma casa que preparava e vendia frios. Nós não tínhamos dinheiro para comprar nada, mas eu sempre adorei o cheiro. Durante o dia, mascates entravam no pátio, apregoando sua mercadoria. Mendigos vinham bater de porta em porta, pedindo um copeque ou um pedaço de pão, que guardavam num saco. Cantores e violinistas também vinham. Algumas pessoas enrolavam moedas em pedaços de jornal e as atiravam para baixo. Nós dizíamos, brincando, que não era possível saber se as moedas eram esmolas ou pagamento para parar a terrível música.


Filha - Fomos ao memorial do levante do gueto de Varsóvia. Um longo caminho leva ao monumento, uma estátua vigorosa que se projeta de uma parede de pedra: jovens musculosos empunhando armas, que escolheram morrer lutando em vez de obedecer à ordem de deportação. No outro dia, uma polonesa, amiga de um amigo, nos levou até lá de novo, David e eu, para ver a parte de trás do monumento: um friso mostrando uma multidão caminhando para a morte: um rabino carregando a torá, famílias com crianças que pareciam encolhidas entre as pernas ao redor. Esta, ela nos disse, era a representação mais verdadeira. Havia sessenta mil pessoas no gueto quando houve o levante. Trezentos mil habitantes tinham sido mortos em Treblinka nos meses anteriores. Nós não vimos essa parte do monumento na nossa primeira visita. Não tivemos a idéia de dar a volta e ver a parte de trás.


Pai - Mascates entravam no pátio, apregoando o que tinham para vender. Um homem tinha uma roda de amolar; as pessoas traziam facas e tesouras para afiar. Outro empurrava um carrinho de mão até o pátio e começava a trabalhar. Pegava panelas de ferro que tinham ficado enegrecidas com o uso e devolvia brilhando como novas. Uma vez minha avó mandou seu filho mais novo, meu tio Boruch Zishe, descer com algumas panelas, mas quando ele voltou com elas, uma estava feita só pela metade, então ela o mandou de volta, e ele começou uma barulhenta discussão com o homem. Uma platéia se reuniu para assistir à vitória do meu tio, mas eu estava preso em casa porque estava doente. Tive que me esforçar para ver o que podia da sacada tão pequena. Eu não me conformava com a injustiça - todos os meus amigos aproveitando o espetáculo, e eu perdendo - e era o meu tio!


Filha - No monumento ao gueto, meu pai começou a conversar com uma jovem dinamarquesa que trazia um livreto para turistas. Quando ele se afastou, eu contei a ela que ele tinha crescido em Varsóvia, e que outros membros da família e pessoas com quem ele cresceu tinham morrido ali, ou vivido ali e morrido nos campos. Usei essa informação como um emblema de honra, como se isso me desse um direito maior de estar visitando o memorial. Também achei que isso ia tornar a visita dela mais memorável. Eu sempre tive esse impulso de ajudar os outros.


Pai - Nosso apartamento no terceiro andar pertencia ao meu avô. Eu nasci lá e a minha mãe também. Eu morei lá até os sete anos. Minha mãe era uma das mais velhas entre dezesseis irmãos. O mais novo era só seis anos mais velho do que eu, por isso era como se eu fosse o irmão mais novo e meu avô foi a coisa mais parecida com um pai que eu tive.


Filha - No caminho para o monumento, alguns vendedores ambulantes tinham armado mesas vendendo bugigangas e livros. David comprou um livro sobre o gueto de Varsóvia.


Pai - Durante anos eu achei que o nome do meu avô era zahzogit, porque era assim que a minha avó o chamava: “Zahzogit, podia puxar aquela cadeira?”, “Zahzogit, preciso de dinheiro para comprar comida.” Depois eu descobri que zahzogit queria dizer “seja tão bom”. Quando ela falava com ele, começava assim para demonstrar respeito pelo marido. Os filhos tinham medo dele, porque era severo e autoritário, mas comigo sempre foi bom e gentil. Uma vez ele me levou pela mão até o mikvah, o banho ritual. No caminho, perguntei a ele por que o dinheiro de papel tinha valor, mas os outros papéis não tinham. No mikvah, ele me ensinou pacientemente como cobria os orifícios do rosto enquanto mergulhava na água: polegares nas orelhas, indicadores sobre os olhos, dedos médios nas narinas e anulares na boca. Acho que os mindinhos ficavam sobre o queixo. (À medida que fala, ele vai colocando os dedos dessa forma) Eu me lembro que fiquei muito espantado de ver meu avô sem roupa!


Filha - Quando eu tinha sete ou oito anos, escrevi a minha primeira história. Era sobre o meu pai quando era criança. A história se passava na escadaria do prédio dele em Varsóvia. Era uma história que ele tinha me contado: quando era muito pequeno, a mãe pôs nele roupas que não cabiam mais na irmã mais velha, em vez de gastar dinheiro comprando roupas de menino. Ele ficou envergonhado demais para sair e brincar vestido daquele jeito, por isso ficou sentado na escada o dia inteiro, chorando.


Pai - Uma vez eu decidi jejuar no Yom Kippur, porque era o que os adultos faziam. Quando a minha mãe não conseguiu me fazer comer, pediu ajuda ao pai dela para me convencer. Ele me explicou que eu não tinha que jejuar porque eu ainda não tinha feito o bar-mitzvah. Se eu jejuasse, não estaria agradando a Deus, só estaria desagrando a minha mãe.


Filha - Eu não tinha idéia de como era o prédio em que meu pai vivia quando era criança, por isso imaginei a história no vestíbulo do prédio que ficava em frente da nossa casa no Brooklyn, com degraus de mármore, corrimão de ferro batido e piso de pequenos ladrilhos pretos e brancos. Eu o imaginei com a mesma idade que eu tinha quando escrevi a história, mas ele provavelmente tinha só três anos.


Pai - Minha mãe se casou aos dezoito anos com um homem que não conhecia, e jamais gostou dele. Ela se livrou dele quando eu tinha dois anos. Ela nunca me disse diretamente que eu era feio, mas sempre que falava do meu pai, dizia como detestava a aparência dele, especialmente o nariz grande e curvo. E sempre que falava sobre mim, dizia que eu era muito parecido com ele. Quando eu fazia uma coisa de que ela não gostava, o que era quase tudo o que eu fazia, ela dizia “Igualzinho ao seu pai.” Se eu dormia até tarde, “Igualzinho ao seu pai.”; se ia dormir tarde, “Igualzinho ao seu pai.” O jeito que eu comia, o que eu comia, a que horas eu comia, como eu me vestia, se eu gastava dinheiro, quanto era e com quê - era sempre a coisa errada, do jeito errado, e sempre “igualzinho ao seu pai.” Foi só quando eu me tornei adulto e conversei com gente que conhecia o meu pai que eu descobri que ele tinha sido um homem maravilhoso. Diziam que ele era bom, gentil, inteligente e generoso. Todos gostavam dele. Todos, menos a minha mãe.


Filha - Meu pai falava tanto da infância dele que parecia que tinha acontecido comigo. Mas não tinha. Eu achava que nada que tivesse acontecido comigo poderia ser tão importante como o que ele tinha sofrido. Que direito eu tinha de ser infeliz? Mas eu era.


Pai - Meu pai não era bom com os negócios, e não era um homem prático. Ele abriu uma loja de artigos de couro com o dote da minha mãe, e perdeu tudo. Ela costumava contar revoltada como levava para ele a comida nutritiva que tinha preparado e o encontrava comendo salmão defumado e chocolate. De uma certa forma isso representava tudo o que ela desprezava nele.


Filha - Na minha lembrança, minha infância é uma sucessão sem fim de dias passados com a minha mãe, sentindo falta do meu pai. Ele saía de casa antes que eu acordasse de manhã, e freqüentemente trabalhava até tarde, por isso voltava para casa depois que eu tinha ido dormir. Meu objeto preferido na casa era uma velha máquina de escrever preta, com teclas amarelas de bordas prateadas. Eu passava horas batendo cartas para o meu pai, contando o que tinha me acontecido durante o dia e despejando minhas reclamações contra minha mãe. Eu não podia ter nenhuma reclamação do meu pai, porque ele não estava lá.


Pai - Meu pai tinha tuberculose. Minha mãe dizia às pessoas que era por isso que tinha se separado - para que ele não contaminasse a minha irmã e eu. E ela dizia que nunca tinha se casado de novo porque não queria que seus filhos crescessem com um padrasto. Talvez fosse verdade. Mas eu sempre acreditei que ela preferia viver sozinha. Não era o tipo de mulher que quer passar a vida servindo um homem.


Filha - Quando eu era criança, meu pai costumava dizer: “Temos tanta sorte de ter a sua mãe. Se fosse por mim, eu estaria viajando pelo país em uma motocicleta. Graças à sua mãe, nós moramos nesta casa bonita e limpa, e temos todas as refeições”. Mas eu achava que viajar pelo país de moto com o meu pai parecia fantástico!


Pai - Eu e minha mãe e minha irmã dividíamos um quarto na casa do meu avô. Uma noite minha mãe me acordou de um sono profundo, e eu vi que meu pai estava lá; ele devia ter vindo discutir alguma coisa com ela. Ela tinha feito frankfurters - salchichas de carne bovina - para ele, e me acordou para me dar um pedaço. Ela sabia que eu adorava aquilo, e era tão raro durante a guerra. Acho que eu ainda estava dormindo, porque quando tentei engolir, o pedaço entalou na minha garganta. Não sei se me lembro disso porque foi uma das poucas vezes na vida em que vi o meu pai, ou porque eu quase sufoquei.


Filha - Nos dias em que ele ia chegar em casa a tempo para o jantar, eu esperava ele voltar do trabalho. Eu e a minha irmã ficávamos olhando na direção da estação do metrô. Quando víamos ele chegando, corríamos para ele, e ele nos levantava e nos envolvia em seus braços. Depois nos punha no chão e andava conosco até em casa, segurando nossas mãos. Eu adorava a sensação daquela enorme mão calosa envolvendo a minha.


Pai - Nas outras duas lembranças que tenho do meu pai, ele está conversando com a minha mãe. Na mais antiga, eu estou de pé ao lado dela, segurando sua mão, no enorme arco que levava ao nosso pátio. Meu pai está do outro lado dela - um homem alto, ruivo, dizendo coisas que eu não entendo. Na outra lembrança, ele está doente de cama em um quarto pequeno, e a minha mãe está do lado da cama falando com ele. Eu também estava no quarto, mas não podia me aproximar. Minha mãe me fez ficar na porta, por causa da doença dele.


Filha - Às vezes, quando ele estava em casa na nossa hora de dormir, meu pai nos contava histórias que ele mesmo inventava - longas e elaboradas histórias de dragões e águias nas quais nós éramos os heróis. Nós pedíamos especialmente “histórias de ação”. Nós ficávamos deitadas na cama, enquanto ele se movia pelo quarto, interpretando todos os papéis, correndo de repente em direção a nossos rostos risonhos, deliciados, fingindo que estávamos assustadas. Depois, quando era hora de dormir, ele se deitava conosco e nos aconchegávamos nele com a cabeça em seu ombro. Eu sempre dormia assim.


Pai - A única outra vez que eu me lembro de ver o meu pai também é a única lembrança em que ele falou comigo. Eu estava andando com ele pelo campo e chegamos a um riacho. Ele queria que eu atravessasse com ele, mas eu estava com medo. Eu estava convencido de que o fundo era de areia movediça e ia me engolir. Ele pegou uma grande pinha e atirou na água, para me mostrar que não afundava. Por algum motivo, aquilo me deu confiança, e eu cruzei o riacho com ele. Mais tarde chegamos a um campo de trigo. Ainda me lembro disso como uma das coisas mais bonitas que já vi: o trigo dourado curvado pela brisa até onde a minha vista alcançava. Perguntei ao meu pai se o campo de trigo ia até o fim do mundo.


Filha - Quando eu era adolescente, tinha orgulho da minha irreverência. Gostava de chocar as pessoas dizendo: “Se o meu pai tivesse ficado na Polônia, ele teria virado um abajur.”


Pai - Quando eu tinha seis anos, meu pai morreu. Ele tinha trinta e sete anos. Como eu não o conhecia, não fiquei triste; achei que era uma novidade interessante. Encontrei uma vizinha na escada, e contei vantagem, dizendo que sabia uma coisa que ela não sabia. “O quê?”, perguntou ela, “que o seu pai morreu?”. Vi pelo jeito dela que minha excitação não era a emoção certa para o momento. “Não”, eu menti, “não é isso.” Mas não disse a ela o que era.


Filha - Quando eu ligo para casa, eu falo com a minha mãe. Sempre foi assim. Quando eu era mais nova, era ela que ligava para mim. Algumas vezes, depois que eu tinha falado com a minha mãe por muito tempo, ela dizia que meu pai queria falar comigo. Eu me sentia empolgada, como se tivesse ficado importante - meu pai queria falar comigo! Era como receber uma ligação daquele garoto por quem você é apaixonada. Mas quando ele chegava no telefone, dizia “Então, foi bom falar com você.” “Espere aí”, eu dizia, “você ainda não falou comigo.” “A gente conversa quando se encontrar”, ele dizia. “Não temos que dar dinheiro para a companhia telefônica.” Ele tinha pegado o telefone só para me fazer desligar.


Pai - Embora eu não conhecesse o meu pai, com certeza eu conhecia o meu avô. Eu não tinha nenhuma dúvida de que ele era o homem mais poderoso e mais altivo do mundo, e eu tinha certeza de que todo mundo sabia disso também. Mas um dia, depois que a Primeira Guerra finalmente acabou, ele me levou em uma visita à casa de alguém que lhe devia dinheiro. Eu fiquei chocado de ver a atitude que ele assumiu naquela casa, quando tirou o chapéu em respeito. Eu não podia acreditar no que via: meu avô tirando o chapéu para alguém!


Filha - Anos atrás eu tive um sonho. É minha festa de aniversário. Meu pai está lá, mas está suspenso a uns sessenta centímetros do chão, com a cabeça perto do teto. Não sei o que ele está fazendo lá; ele não parece estar fazendo nada, apenas flutuando em seu próprio mundo. Não consigo alcançá-lo, e ele não me ouve nem me vê. Tento desesperadamente fazer contato com ele, mas ele está preso ali e eu não consigo fazer com que ele desça.


Pai - Quando estávamos prestes a partir para a América, meu avô me chamou e me pôs no colo. As lágrimas corriam por baixo de seus óculos de aro de ouro, sobre sua face, pela sua barba. Ele sabia que nunca mais me veria. Com seu braço sobre meus ombros, ele disse: “Nunca se esqueça de que você é um judeu.”


Filha - Eu sempre soube que o avô do meu pai morreu no gueto de Varsóvia, mas de algum jeito eu pensava que ele tinha morrido de velhice, e o gueto era apenas o lugar onde ele vivia quando sua hora chegou. Na minha cabeça, o gueto era apenas uma parte arruinada da cidade onde os judeus eram forçados a viver. Mas quando eu li o livro que David comprou, percebi o quanto eu não sabia - que os judeus de toda a cidade e do país tinham sido socados no gueto; que cem mil pessoas morreram ali, de fome, e de epidemias que se alastravam, causadas pela superpopulação e pelas condições insalubres. Corpos nus jaziam nas ruas - corpos nas ruas, porque as pessoas tinham que pagar uma taxa para enterrar os mortos e não tinham dinheiro; nus, porque cada farrapo de roupa tinha que ser recuperado e aproveitado. As mulheres amamentavam as crianças nas ruas, mas não tinham peito, nenhum alimento para dar a seus bebês moribundos. Soldados alemães passavam pelo gueto a caminho para algum outro lugar e atiravam nas pessoas por diversão. Eu achava que sabia sobre o gueto de Varsóvia, mas eu realmente não sabia nada de nada.


Pai - Aquelas foram as últimas palavras do meu avô para mim: “Nunca se esqueça que você é um judeu.” Ele acreditava que quando os judeus iam para a América, deixavam de ser judeus, porque deixavam de ser hassidim. Será que eu o traí? O que as minhas filhas sabem de sua herança judaica? O que ser judeu pode significar para elas, que cresceram na América? Só uma delas se casou com um judeu - e que diferença isso faz, se ela não teve filhos?


Filha - Fomos até Unschlagplatz, onde a cada dia milhares de judeus eram reunidos para ser enviados a Treblinka, onde seriam mortos por gás. Hoje é um parque verde com um monumento, uma série de muros de pedra. Um deles é uma laje de pedra branca e brilhante com nomes judaicos, representando as trezentas mil pessoas que foram enviadas dessa praça para serem mortas. Mordechai, Moishe, Shmuel, Abraham, Rachel, Rebecca, Naomi, Leah, Sarah, Miriam, Deborah. Outra laje traz as palavras de um poema. Ficamos todos de frente para essa parede, e pedimos ao meu pai para traduzir o texto em polonês gravado na pedra. (Enquanto fala essas linhas, a Filha caminha até o Pai, e fica de pé do lado dele, enquanto ambos representam a cena que ela descreve) Ele começou a ler, mas sua voz hesitou, e ele parou. Eu me virei e vi que seu corpo estava tremendo. Ele ergueu a mão direita sobre a face esquerda, com a palma para fora, fazendo uma barreira entre nossos olhos, para que eu não pudesse ver seu rosto enquanto ele chorava. Eu o abracei. Ele se recompôs e começou novamente a ler. Mas novamente ele parou. Novamente ele ergueu a mão até o rosto, como um escudo contra o meu olhar. Na terceira tentativa ele leu:


Pai - “Terra, não cubra o meu sangue; vento, não silencie meus gritos...”


Filha - Enquanto íamos embora, minha mãe sussurrou para mim que, em sessenta anos de casamento, ela nunca tinha visto meu pai tão abalado. Dias depois, ele contou ao David que o que o afetou daquela maneira foi uma imagem em sua mente de seu avô e seu tio Joshua, o único filho que tinha ficado ao lado do velho, e a mulher de Joshua e os cinco filhos. Era quase certo que eles tinham sido enviados para a morte daquele lugar onde estávamos. E ele não parava de pensar: “O que foi que eles fizeram para merecer esse destino? Eles nunca fizeram nada que magoasse alguém.” Fiquei com inveja porque o meu pai contou isso ao David e não a mim.


Pai - Eu parei sob a placa da rua, Twarda Ulica. No meu coração, ainda estava tudo lá: os pátios movimentados, as pessoas gritando das janelas, os bondes rangendo, os condutores berrando, meu avô indo ao shul. Mas por fora não havia nada. Nenhum sinal do mundo onde eu cresci. No lugar do prédio de três andares com o pátio havia agora um prédio utilitário cinzento coberto de pichações obscenas. Depois que eu me for, quem vai se lembrar? Se ninguém se lembrar, o que terá restado?


Filha - Meu pai queria tirar fotos do cemitério judaico, mas ele detesta tirar fotos sem ninguém nelas, por isso pediu que David e eu ficássemos diante de uma parede erguida com pedaços das lápides quebradas durante a guerra. David posou para as fotos, mas eu não. Não consegui resolver se era uma profanação posar para fotos, como turistas, em um lugar daqueles, ou se era um ato de devoção, tentar lembrar.


(Durante a última fala da Filha, o Pai voltou a seu lugar na cadeira, adormecido, com o jornal no colo. O telefone toca; ambos pulam. A Filha apanha o fone, que está em uma mesinha de cabeceira ao lado da cama)


Filha - Oi, mamãe. Estamos bem. Papai dormiu, e eu estou escrevendo. Não tem problema, não se apresse. Até logo. (Desliga o telefone)


Pai - Sobre o que estava escrevendo?


Filha - Sobre você.


Pai - Sobre mim? Fico orgulhoso, mas o que é que você pode escrever sobre mim? Eu não sou interessante.


Filha - Eu estava tentando escrever as histórias que você me contou, mas só consegui me lembrar de algumas. Quero escrever todas.


Pai - Posso lhe contar mais, se você tiver tempo. Mas você anda ocupada e eu não sei quando tempo ainda me resta. (Ela se levanta e anda até ele, do outro lado do quarto, e lhe dá um beijo)


Filha - Paizinho, o senhor não pode morrer antes que eu escreva tudo. Promete que não vai.


Pai (Ri) - Não estou planejando ir já. Sempre lamentei ter perdido a virada do século. Eu nasci com oito anos de atraso. Pretendo ficar por aqui para ver o ano 2000. Eu detestaria...


Filha - Detestaria o quê, papai?


Pai - Detestaria perder isso de novo.


FIM
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* Um ato de devoção foi encomendada pelo McCarter Theatre, em Princeton, e produzida pelo Horizons Theatre, em Washington, DC. É a primeira peça de Deborah Tannen, conhecida mundialmente pelos quinze livros que já publicou. O mais recente, You just don’t understand: women and men in conversation, esteve na lista dos mais vendidos do New York Times por quatro anos, e foi o número um por oito meses. Foi traduzido para 18 línguas e vendeu mais de um milhão e meio de cópias.


* Um novo livro, Talking from 9 to 5, foi publicado recentemente pela Morrow. Tannen também já publicou contos, poemas, e mais de setenta artigos em grandes jornais e revistas ao redor do mundo.


* A doutora Tannen está entre os três únicos University Professors de Georgetown, onde pertence ao corpo docente do Departamento de Lingüística, e já apresentou conferências em escolas e universidades de todo o mundo. Já apareceu em muitos programas de TV e rádio do país, e tem sido porta-voz de organizações civis, profissionais e governamentais.


* Deborah Tannen nasceu no Brooklyn e estudou em Nova York e Michigan. Fez seu doutorado na Universidade da Califórnia, em Berkeley. É casada e vive em Washington, DC.





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