Teatro/CRÍTICA
"Cara de Cavalo"
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Violência e arte em questão
Lionel Fischer
Logo após a criação do Serviço de Diligências Especiais (SDE), o então Secretário de Segurança da Guanabara, Luis França, escolheu doze policiais da sua força de elite e a eles delegou poderes praticamente ilimitados. O objetivo era "limpar" definitivamente a cidade. O grupo ficaria conhecido como "Os Homens de Ouro". Integrante deste grupo, o detetive Le Cocq teria sido assassinado, em 1964, por um bandido inexpressivo chamado Cara de Cavalo, fato que converteu este último em inimigo público nº 1 da cidade e desencadeu a maior caçada já promovida até então contra um marginal - ele acabaria morto, em Cabo Frio, com mais de cem tiros.
Em função do acima exposto, pode-se ficar com a impressão de que o presente texto limita-se a ilustrar a implacável perseguição contra um bandido sem a menor importância. Assim, dois esclarecimentos se impõem. O primeiro: escrevi o parágrafo inicial visando sobretudo os espectadores mais jovens, que talvez nem tenham ouvido falar de Cara de Cavalo. O segundo: ressaltar que não estamos diante de uma peça-documentário e sim de uma fábula que mescla ficção e realidade, e cujo objetivo maior talvez tenha sido o de empreender uma reflexão sobre a possível relação entre a violência e a arte.
Mais recente produção da Aquela Companhia de Teatro, "Cara de Cavalo" (Espaço Sesc) leva a assinatura de Pedro Kosovski e chega à cena com direção de Marcos André Nunes. No elenco, Ricardo Kosovski (O Entrevistado), Saulo Rodrigues (Delegado Cunha), Oscar Saraiva (Amado Ribeiro), Carolina Chalita (Mangueirinha), Raquel Villar (A Entrevistadora), Remo Trajano (Cara de Cavalo) e Álvaro Diniz (Detetive Galo).
"A trama se passa em quatro planos: o Morro do Esqueleto, comunidade onde se forja Cara de Cavalo - um bandido sem maiores ambições, que vive da exploração de putas e de bancas do bicho; os bastidores da polícia na condução do caso, após o assassinato do investigador LeCoq (o nosso Detetive Galo); a gravação de uma entrevista com o último dos Homens de Ouro, conduzida em 2012 pela âncora de um programa semanal de telejornalismo; e projeções em vídeo que misturam ficção e realidade".
Extraído do ótimo release que me foi enviado pela assessora de imprensa Angela de Almeida, o trecho acima expõe os quatro planos da ação, que a todo momento se intercalam. Mas ainda que os momentos finais da trajetória de Cara de Cavalo estejam explicitados na cena, o maior foco de interesse do texto recai sobre as reflexões empreendidas pelo Entrevistado. Este é um remanescente dos "Homens de Ouro", que na prática constituíam um grupo de extermínio.
Assim sendo, me parece pouco provável que tivesse a cultura e o poder de articular pensamentos tão agudos como "Eu não glamorizo o crime. Eu não glamorizo a arte! Mas em todo crime há uma busca desesperada pela felicidade. Assim como no arte", ou ainda "O que nos separa dos piores atos? A moral? O bem do próximo? Não. Basta um sopro que invade o corpo, traz a tempestade e faz a alma dançar."
No entanto, e levando-se em conta que estamos diante de uma fábula, tudo me leva a crer que o autor Pedro Kosovski escolheu propositadamente um personagem que mata - ou matou, em seu passado como policial - para ser o porta-voz de reflexões sobre possíveis relações entre arte e crime. E minha impressão se deve ao fato, dentre outros, de que em dado momento o Entrevistado diz: "Eu não estou falando de violência! Estou falando de estética!". Posso estar equivocado, naturalmente, mas esta é a única explicação que me parece consistente com relação ao personagem.
E no tocante às mencionadas reflexões, não julgo conveniente aqui explicitá-las, pois isso privaria o espectador de usufrui-las durante o espetáculo. Mas ainda assim gostaria de ressaltar que, do meu ponto de vista, toda manifestação artística genuína traz em si o germe da violência, no sentido de ruptura, de não-conformismo com os padrões estéticos impostos pelo poder dominante. E a negação do passado é o que impulsiona a vida, é o que nos faz recriá-la e reiventá-la permanentemente. Acomodar-se ao estabelecido é uma pulsão de morte.
Mas é claro que, em dados momentos, somos forçados a protelar nossos sonhos ou até mesmo negá-los ante uma ameaça concreta, como aconteceu com Galileu. Diante da Santa Inquisição, o sábio curvou-se, assim evitando ser enviado para a fogueira. Mas nem por isso a terra deixou de girar em torno do sol...
Texto instigante e muito bem construído, "Cara de Cavalo" recebeu sólida versão cênica de Marco André Nunes. Ao valorizar, com a mesma eficiência, os quatro planos da ação, o diretor conseguiu materializar os principais conteúdos propostos pelo autor, mantendo o espectador atento ao longo de toda a montagem.
Com relação ao elenco, Remo Trajano tem o físico adequado ao papel e convence sobretudo no que concerne ao seu trabalho corporal - nas partes faladas, acredito que o ator ainda possa caprichar um pouco mais na dicção, pois algumas palavras se perdem. O mesmo se aplica a Álvaro Diniz, com Raquel Villar ainda evidenciando pouca maturidade artística. Saulo Rodrigues e Oscar Saraiva convencem plenamente na pele de seus personagens, da mesma forma que Carolina Chalita vivendo a bela, desprotegida e patética Mangueirinha, amante de Cara de Cavalo.
Finalmente, chegamos a Ricardo Kosovski. Encarnando o Entrevistado, o ator exibe desempenho deslumbrante, sob todos os pontos de vista. Possuidor de forte presença cênica e grande carisma, Kosovski evidencia notável precisão rítmica e grande inventividade na forma como trabalha as palavras - suas inflexões e entonações sempre convencem, tanto nos registros mais suaves quanto nos mais exacerbados. Sem dúvida, uma das melhores performances da atual temporada.
Na equipe técnica, destaco com o mesmo entusiasmo os trabalhos de todos os profissionais envolvidos nesta mais do que oportuna empreitada teatral - Felipe Storino (música/violão), Mauricio Chiari (bateria, percussão e efeitos), Flávio Graff (cenário e figurinos), Márcia Rubin (direção de movimento), Renato Machado (iluminação) e Felipe Bragança (vídeo). Cumpre também destacar o maravilhoso ensaio de Manoel Silvestre Friques, que consta do programa oferecido ao público.
CARA DE CAVALO - Texto de Pedro Kosovski. Direção de Marco André Nunes. Com Aquela Companhia de Teatro. Espaço Sesc. Quinta a sábado, 21h. Domingo, 19h30.
terça-feira, 18 de setembro de 2012
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