Teatro/CRÍTICA
"Krum"
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Niilismo em versão deslumbrante
Lionel Fischer
"Dois enterros e dois casamentos. Não existem grandes feitos, tudo é ordinário. Entre as duas cerimônias, acontece uma sequência de cenas curtas, o quadro da vida dos habitantes de um bairro remoto. Uma peça sobre pessoas, que se inicia com o retorno ao lar do personagem-título - depois de perambular pela Europa em busca de experiências e quiçá de aprendizado, Krum volta para casa de mãos vazias. Ao chegar, confessa que não viu nada, que não viveu nada, que nem mesmo no estrangeiro foi capaz de encontrar o que buscava".
Extraído do release que me foi enviado, o trecho acima resume o contexto em que se dá "Krum", do dramaturgo israelense Hanoch Levin (1943-1999), ora em cartaz no Oi Futuro (Flamengo). Mais recente produção da Cia. Brasileira de Teatro, de Curitiba, e segunda parceria do grupo com a atriz Renata Sorrah (a primeira foi em "Esta criança", em 2012), a montagem chega à cena com direção de Marcio Abreu e elenco formado por Danilo Grangheia, Edson Rocha, Grace Passô, Inez Viana, Ranieri Gonzales, Renata Sorrah, Rodrigo Bolzan e Rodrigo Ferrarini.
Em sua peça "Caligula", Albert Camus (1913-1960) explicita o desejo do protagonista de possuir a lua. Ele ambiciona o impossível. Não sendo o mesmo viável, passa a não ver mais nenhum sentido na existência humana. Aqui, ao contrário do que ocorre com o angustiado e enlouquecido imperador romano recriado por Camus, Krum aparentemente não ambiciona nada. Ou por outra: talvez até ambicione, mas como só consegue enxergar a realidade como uma sucessão de fatos banais, que se repetem indefinidamente, acaba dominado pelo mais absoluto niilismo.
No entanto, caberia uma questão: seriam os tais fatos realmente marcados por absoluta banalidade ou é assim que o protagonista os enxerga? A vida se resumiria a caminhar sempre com um pé à frente do outro ou comportaria eventuais saltos? Tudo se resumiria exclusivamente ao cumprimento de ritos coletivos sem qualquer espaço para se empreender mudanças? Ao que tudo indica, é assim que Krum encara sua existência, o que torna crível sua absoluta e eventualmente irônica desesperança.
Com relação aos demais personagens, alguns evidenciam ambições tão prosaicas que os tornam risíveis, como ocorre com o homem profundamente angustiado porque não consegue decidir se faz exercícios físicos pela manhã ou à noite. Mas outros ambicionam o amor, por exemplo, como a mulher feia, desesperada para arrumar marido ou com outra dividida entre sua paixão por Krum e pela conveniência de se ligar a outro homem, já que ele não a quer - no primeiro caso, estamos diante de uma situação patética; no segundo, profundamente angustiante.
E por falar em angústia, gostaria de confessar que foi esta a sensação que me acompanhou ao longo de quase toda a montagem, ainda que eventualmente não tenha deixado de rir com algumas situações, mesmo que em sua essência contivessem doses equivalentes de insatisfação e carência, que nada têm em si de engraçadas. E confesso também minha ambiguidade com relação ao protagonista: ora me identificava com ele, ora o desprezava, o que me faz supor que o texto tenha me atingido de forma muito contundente, a ponto de (derradeira confissão) ter saído do teatro e levado alguns minutos para concluir se havia ido de carro ou não...
Com relação ao espetáculo, estamos diante de um evento teatral de grande magnitude. Marcio Abreu não é apenas um dos maiores encenadores nacionais, mas um artista na acepção máxima do termo. É realmente impressionante sua capacidade de criar imagens poderosas, impregnadas de infinita beleza e capazes de materializar conteúdos que transcendem a força das palavras. Sob todos os pontos de vista, esta montagem se insere entre as mais brilhantes já realizadas por Marcio Abreu e sem dúvida merece ser prestigiada de forma incondicional pelo público carioca.
No que diz respeito ao elenco, e sem temor de ser monótono, repito o que já disse em inúmeras críticas: este país pode carecer de tudo, menos de grandes intérpretes. E aqui os atores exibem interpretações deslumbrantes, fruto não apenas de enormes recursos técnicos, mas sobretudo de visceral capacidade de entrega e notável inteligência cênica, perceptível pelas escolhas feitas, que jamais priorizam o óbvio ou o caminho mais fácil. Assim, a todos parabenizo com o mesmo entusiasmo e a todos agradeço pela inesquecível noite que me proporcionaram.
Na equipe técnica, gostaria de novamente enfatizar (devo ter, realmente, uma tendência à monotonia...) minha irrestrita admiração por Marcia Rubin, que aqui realiza uma das melhores direções de movimento de sua brilhante carreira. Também considero irrepreensíveis as contribuições de Nadja Naira (iluminação), Fernando Marés (cenário), Felipe Storino (trilha e feitos sonoros) e Ticiana Passos (figurino), cabendo igualmente destacar a fluente tradução de Giovana Soar.
KRUM - Texto de Hanoch Levin. Direção de Marcio Abreu. Com a Cia.Brasileira de Teatro, em parceria com Renata Sorrah. Oi Futuro (Flamengo). Quinta a domingo, 20h.
sexta-feira, 20 de março de 2015
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