Teatro/CRÍTICA
"Música para cortar os pulsos"
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Sensível montagem de texto brilhante
Lionel Fischer
Mutos sustentam que uma boa ideia é meio caminho andado para um produto final de qualidade. No entanto, e mesmo reconhecendo que partir de uma boa ideia é melhor do que iniciar qualquer coisa tendo como premissa uma má ideia, a primeira hipótese não oferece garantia alguma. Senão, vejamos.
Qual a melhor peça já escrita? Digamos que seja "Hamlet". E o que vem a ser "Hamlet"? O texto nos mostra um príncipe que, logo no início da trama, encontra o fantasma de seu pai que, após confessar que foi morto por seu irmão - que ora ocupa o trono, casado com a mãe de Hamlet, esta cúmplice no assassinato - pede ao filho que o vingue. Passados cinco atos, o príncipe finalmente atende ao desejo de seu pai.
Pois bem: estaríamos diante de uma boa ideia? De uma ideia absolutamente brilhante? É óbvio que não. No entanto, um enredo que poderia gerar um insuperável dramalhão foi convertido, pelo fabuloso bardo, em insuperável obra-prima, por razões que todos estão cansados de conhecer.
Chegamos, por fim, a "Música para cortar os pulsos". E do que trata a peça, se restrita ao seu enredo? Estamos diante de três jovens, todos na casa dos 20 anos. Isabela sofre porque foi abandonada. Felipe quer se apaixonar. Ricardo, seu amigo, está apaixonado por ele. Uma boa ideia? Provavelmente nem melhor nem pior do que qualquer outra. E no entanto, trata-se de um texto absolutamente brilhante.
Em cartaz no Teatro Café Pequeno, "Música para cortar os pulsos" leva a assinatura de Rafael Gomes. Rafael Salmona responde pela direção (codireção de Jaime Leibovitch), estando o elenco formado por Felipe Salarolli, Julia Stockler e Hugo Carvalho.
O primeiro mérito do texto reside em sua natureza confessional, já que os personagens não dialogam entre si, ainda que interajam. Mas isso não constitui novidade, pois o recurso já foi muito utilizado. Aqui, no entanto, é trabalhado de forma tão sincera, tão visceral, priorizando muito mais as dúvidas do que improváveis certezas que o público se converte, desde o primeiro momento, em cúmplice do que assiste.
Sob todos os pontos de vista, "Música para cortar os pulsos" é um dos melhores textos já escritos sobre o universo jovem atual. Valendo-se de personagens muito bem estruturados e de uma linguagem altamente poética, Rafael Gomes evidencia um potencial dramatúrgico que, salvo monumental engano de minha parte, em breve o tornará um dos autores mais importantes deste país.
Quanto ao espetáculo, Rafael Salmona impõe à cena uma dinâmica em total sintonia com o material dramatúrgico. Valendo-se de marcas diversificadas e criativas, e também de ótimo aproveitamento do espaço cênico, o jovem diretor exibe o mérito suplementar de haver contribuído para atuações seguras e sensíveis do também muito jovem elenco.
Na pele do homossexual Ricardo, Felipe Salarolli exibe performance ao mesmo tempo delicada e apaixonada, sem jamais apelar para trejeitos supostamente capazes de gerar desnecessários risos ou sentimentos de piedade por alguém que está amando e, em uma primeira instância, não é correspondido. A mesma eficiência se faz presente na atuação de Hugo Carvalho, que trabalha muito bem a perplexidade, a indecisão e o circunstancial desamparo de Felipe, personagem sempre à procura do amor, mas ainda sem saber ao certo para onde dirigir seu afeto.
Quanto a Julia Stockler, acredito que a jovem atriz esteja entre as melhores de sua geração. Exibindo grande inteligência cênica, enorme carisma e visceral capacidade de entrega, Julia consegue materializar na cena toda a complexidade do caráter de Isabela, valorizando com o mesmo brilho tanto as passagens mais dramáticas quanto aquelas em que o humor predomina. Sem dúvida, uma das performances mais poderosas da atual temporada.
Na equipe técnica, Diego Fonseca responde por uma cenografia simples e expressiva, que contribui para materializar na cena importantes aspectos psicológicos dos personagens. Fábio Gesteira assina composições musicais que enfatizam os muitos e diversificados climas emocionais em jogo, também tocando guitarra no espetáculo acompanhado de Vitor Barbosa (percussão). São corretos os figurinos de Nathalia Amorim, a mesma correção presente na iluminação de Francisco Hashiguchi.
MÚSICA PARA CORTAR OS PULSOS - Texto de Rafael Gomes. Direção de Rafael Salmona. Com Felipe Salarolli, Julia Stockler e Hugo Carvalho. Teatro Café Pequeno. Sexta, sábado e domingo, 20h.
quarta-feira, 4 de março de 2015
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