quarta-feira, 31 de agosto de 2016

A mão

         Desde a noite de núpcias, há mais de 50 anos, que dormiam de mãos dadas. Mesmo durante os inevitáveis períodos de crise, a nenhum dos dois ocorreu renunciar ao gesto: realizavam-no automaticamente e apesar de tudo. E embora jamais tenham trocado uma palavra sobre essa singular perseverança, no fundo acreditavam que se rompessem uma única vez com o ritual de sempre isso equivaleria a admitir que nada mais lhes restaria a não ser a separação. Mas afora seu caráter simbólico, o gesto parecia possuir propriedades soporíferas, pois uma vez consumado o casal adormecia em menos de cinco minutos, sendo, portanto, de extrema validade tanto para o espírito como para o corpo.
        
Tinham a mesma idade, setenta e cinco anos, gozavam de boa saúde e a morte não os preocupava. Juraci, inclusive, tinha plena convicção de que viveria mais de cem anos. Menos otimista, ainda assim Soraia acreditava que atingiria os noventa. A se confirmar a previsão de ambos, teriam então ao menos quinze anos de vida em comum.
        
Entretanto, numa tarde como outra qualquer, quando regressava para casa após ter feito compras na quitanda da esquina, Soraia sentiu subitamente a presença da morte. Poderia, por certo, ter interpretado o calafrio que lhe percorreu as entranhas como um sintoma de gripe iminente; também poderia ter associado a vertigem, que quase a fez tombar, à recente mudança de grau nos óculos que usava ; ou ter atribuído à sua costumeira flatulência a dor que sentiu pouco abaixo do diafragma e que parecia empenhada em lhe obstruir a respiração. Enfim, Soraia poderia ter tentado consolar-se da premonição que a invadira apoiando-se em qualquer uma das três hipóteses, ou até mesmo mesclando-as. Mas foi tão avassaladora a sensação de que não lhe restavam pouco mais do que uns míseros dias que tudo o que conseguiu fazer foi recostar-se no muro de uma casa e chorar discretamente a inexorabilidade de seu destino.
        
Entretanto, nada comentou com o marido, mas a partir daí só agiu em função dele. No dia seguinte, procurou um artesão que vendia bonecos desengonçados nas feiras e nos mercados, e encomendou-lhe uma mão exatamente igual à sua, pagando adiantado e regiamente - mas só depois de ter arrancado dele a promessa solene de que ninguém haveria de saber o que ela lhe pedia. Petrônio, o escultor fracassado, que só conseguia se manter vivo graças à generosidade de uns poucos que eventualmente adquiriam seus monstrengos, ante a polpuda quantia oferecida lançou-se de imediato ao trabalho, concluindo-o em três dias.
        
Nessa mesma noite, Soraia mostrou a réplica de sua mão esquerda ao marido. Ele a elogiou muitíssimo, mas quando ficou ciente dos motivos que haviam animado a esposa a mandar fazê-la, teve uma crise de asma tão violenta que Soraia, por um momento, acreditou que a escultura corria sério risco de jamais vir a ser utilizada. Juraci precisou ser levado a um posto de saúde e só não morreu por puro acaso. Passou a noite inteira encafifado dentro de um balão de oxigênio e sua dispnéia só cedeu quando o dia clareava. Soraia permaneceu todo o tempo ao seu lado, segurando sua mão, implorando a Deus para que não o levasse antes dela, dentre outras coisas por não lhe parecer justa uma inversão na ordem das mortes depois do que havia gasto.
        
Quando regressaram a casa, Juraci não mais silvava como um cão agonizante, mas em contrapartida tornou-se catatônico. Soraia tentou durante todo o dia convencê-lo de que agira pensando unicamente nele, na sua tranqüilidade noturna, na perpetuação do antigo hábito, mas Juraci permanecia aferrado à sua postura pétrea de general de estátua. Passava das onze quando, já rouca e esgotada, Soraia decidiu finalmente renunciar a que o marido reconhecesse a grandeza de seu gesto. Colocando então a mão sintética e borrachuda numa caixinha de vidro, beijou o marido, foi para o seu quarto, deitou-se e morreu imediatamente.
        
Durante os quinze dias que se seguiram à misteriosa morte, Juraci não ousou tocar naquela mão eternizada, mas também não conseguiu dormir um minuto sequer - apenas cochilava durante o dia, no máximo por alguns minutos. Recorreu a sedativos, inventou os mais variados estratagemas para atrair o sono, mas foi tudo inútil. Quando finalmente se convenceu de que não lhe restava outra alternativa a não ser a de seguir a recomendação da falecida, foi para a cama com a caixinha e tão logo se pôs em contato com a réplica dormiu de imediato.
        
A partir daí, Juraci nunca mais teve qualquer problema para dormir, porque jamais deixou de se deitar de mãos dadas com o precioso objeto. Sua relação com ele, aliás, não se limitava ao mero ato de usufruir suas propriedades soporíferas; quando saía para passear, por exemplo, levava-o sempre consigo, se bem que oculto, pois não lhe interessava que os outros soubessem de sua existência. Afora isso, lavava-o com freqüência, escovava-o e depois de certo tempo habituou-se a passar esmalte uma vez por semana nas unhas da escultura, utilizando invariavelmente a tonalidade preferida da esposa, um rosa desmaiado.
        
Diante de tal quadro, não se torna nem um pouco difícil compreender porque Juraci conseguia suportar tão bem - dentro do possível, evidentemente - a ausência da esposa. Guardadas as devidas proporções, era como se ela continuasse em sua casa e em sua vida. É até provável que seu amor por Soraia tenha aumentado depois da morte dela, pois nunca fora tão atencioso e gentil com a esposa como o era agora com a réplica de sua mão esquerda. Sempre a amara, é verdade, mas de forma econômica, homeopática, pouco expansiva, como se no fundo temesse um esvaziamento prematuro de suas reservas afetivas.
        
E assim, apaixonado e certo de que chegaria mesmo a completar um século, Juraci foi levando sua vida. E certamente teria conseguido o prodígio de viver cem anos não tivesse tido a idéia de comemorar o primeiro aniversário de viúvo chamando seus amigos mais chegados para uma singular reunião social. Aos que estranharam o aparentemente insólito convite declarou, em tom solene, que tinha certeza de que Soraia aprovaria aquela iniciativa, posto que a mesma fora concebida visando homenageá-la. Sim, toda a conversa haveria de girar em torno dela, da maravilhosa relação que haviam mantido por mais de meio século - Juraci só não revelou que pretendia recitar alguns sonetos que compusera pensando na finada e que gostaria de submeter à sincera avaliação de seus amigos. Se aprovados, prosseguiria dando vazão à verve poética de que se julgava possuído e mais tarde, quem sabe, tentaria publicá-los. Já havia até mesmo escolhido o título da possível coletânea: “Soneraia”- que, como se vê, é a sutil mescla de soneto com Soraia.
        
Confiando que a inusitada tertúlia haveria de consagrá-lo como esposo devotado e poeta tardio, encomendou um farto bufê de doces e salgadinhos, assim como abarrotou a geladeira de cerveja de várias marcas. E para que nada pudesse distrair a atenção dos amigos ou interromper o fluxo de paixão que haveria de impregnar os corações presentes, contratou uma mulata que trabalhava na quitanda para servir as guloseimas e bebidas. Chamava-se Fátima e teria uns 17 anos. Por julgá-la inexperiente em assuntos de tamanha envergadura - amor e poesia -, Juraci a orientou no sentido de não permitir que algum dos convidados deixasse a sala para, por exemplo, ir até a geladeira pegar um pouco mais de cerveja. Ela teria que permanecer vigilante na porta da cozinha, que dava para a sala, e suprir as carências de seus amigos antes mesmo que eles as notassem. Em troca, receberia 50 reais e poderia ficar com todos os petiscos que porventura não viessem a ser consumidos.
        
A idéia, em si, era excelente, pois, como todos sabemos, a poesia, para ser devidamente apreciada, requer um grau de concentração absoluto. Mas nem sempre as boas intenções geram resultados compensadores, haja vista a enorme legião de bem-intencionados que habita as trevas infernais. E ainda que não possamos garantir que tenha sido esse o destino de Juraci, o fato é que antes de soarem as doze badaladas daquele fatídico dia ele já não pertencia mais a esse nosso abençoado mundo.
        
Mas vamos ao que ocorreu. A reunião começou às 18h em ponto, hora da Ave Maria e justamente com uma oração em memória de Soraia, porque todos os presentes, além de estimá-la muito, eram católicos genuínos. Em seguida, e durante as próximas duas horas, falou-se muito dela, da relação do casal, do amor, tudo de acordo com os planos previamente traçados por Juraci. E comeu-se muito e bebeu-s em igual medida, de forma que às 20h o anfitrião julgou que o clima já se tornara propício para o início do recital. Então, sem nenhum aviso prévio, postou-se no centro da sala e, para assombro dos presentes, recitou, de cor e em seqüência, 54 sonetos!
        
Assim que acabou, afônico e esgotado de tanta emoção, Juraci tornou a se sentar e teve uma violenta crise de choro. Mas os amigos o cercaram de imediato e foram pródigos em elogios e afagos - dentre os muitos que ribombaram pela casa talvez o mais sublime tenha sido o que o designou “O José de Alencar de Vila Valqueire”, o que em muito excedia as mais otimistas expectativas do poeta estreante.
        
Finalmente, às 23h, retirou-se o último convidado, na casa permanecendo apenas a mulata Fátima, entretida na arrumação da casa e na lavagem de pratos, copos e talheres. Nada poderia sugerir o que se seguiu, mas o fato é que de repente Juraci teve a intuição de que aquela noitada o havia rejuvenescido em pelo menos vinte anos. E essa intuição surgiu no exato instante em que Fátima, empenhada em resgatar um garfo que caíra embaixo de uma das poltronas, sem querer exibiu uma considerável parcela de suas coxas magníficas. Incapaz de dominar-se, Juraci atirou-se sobre as ancas da distraída criatura e as mordeu com tal ímpeto que a doméstica, equivocada quanto ao real sentido daquele inesperado assalto, assim que conseguiu desvencilhar-se partiu em disparada e aos gritos, desprezando o pagamento, os salgadinhos e os tardios pedidos de desculpas que lhe endereçava Juraci. Mas este, ainda que um tanto frustrado, não chegou a ficar triste, pois redescobrira que suas reservas de macho ainda não se haviam esgotado, como supunha. O curioso, no entanto, é que em nenhum momento  lhe ocorreu que a dita descoberta se dera imediatamente após ter recitado 54  sonetos de amor em homenagem à falecida...o que configurava uma traição, ainda que póstuma. Tanto assim que, ao deitar-se de mãos dadas com a borrachuda réplica, não se conteve e recitou alguns sonetos que considerava pertencentes ao grupo dos melhores. E ao adormecer, o fez com a certeza de que nunca amara tanto Soraia quanto naquele momento.
        
Deviam ser umas sete da manhã quando a porta da residência de Juraci começou a ser cruelmente massacrada pelos punhos do pai de mulata, que, indignado com o relato que ela lhe fizera, decidira tomar satisfações. Impaciente com a demora e já imaginando que Juraci fingia dormir para esquivar-se às suas responsabilidades, o latagão de ébano acabou ponto a porta abaixo. Ato contínuo e como um Átila invadiu a residência aos gritos de “velho porco, velho tarado”, aos quais agregou ameaças de toda a espécie. Infelizmente para ele, porém, não teve a ventura de consumá-las, pois assim que entrou no quarto de Juraci percebeu sua total imunidade a vinganças deste mundo: estava morto.

Mas não foi por esse motivo que o ofendido pai se retirou desabaladamente dos aposentos que invadira, mas sim devido ao terror que dele se apossou ao constatar a presença, no pescoço de Juraci - que gostaria de haver torcido - de uma mão crispada! - sem dúvida a causadora da mortal asfixia. (Lionel Fischer, escrito aos 17 anos)





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