A mão
Desde a noite de núpcias,
há mais de 50 anos, que dormiam de mãos dadas. Mesmo durante os inevitáveis
períodos de crise, a nenhum dos dois ocorreu renunciar ao gesto: realizavam-no
automaticamente e apesar de tudo. E embora jamais tenham trocado uma palavra
sobre essa singular perseverança, no fundo acreditavam que se rompessem uma
única vez com o ritual de sempre isso equivaleria a admitir que nada mais lhes
restaria a não ser a separação. Mas afora seu caráter simbólico, o gesto
parecia possuir propriedades soporíferas, pois uma vez consumado o casal
adormecia em menos de cinco minutos, sendo, portanto, de extrema validade tanto
para o espírito como para o corpo.
Tinham a mesma idade, setenta e cinco anos, gozavam de
boa saúde e a morte não os preocupava. Juraci, inclusive, tinha plena convicção
de que viveria mais de cem anos. Menos otimista, ainda assim Soraia acreditava
que atingiria os noventa. A se confirmar a previsão de ambos, teriam então ao
menos quinze anos de vida em comum.
Entretanto, numa tarde como outra qualquer, quando
regressava para casa após ter feito compras na quitanda da esquina, Soraia
sentiu subitamente a presença da morte. Poderia, por certo, ter interpretado o
calafrio que lhe percorreu as entranhas como um sintoma de gripe iminente;
também poderia ter associado a vertigem, que quase a fez tombar, à recente
mudança de grau nos óculos que usava ; ou ter atribuído à sua costumeira
flatulência a dor que sentiu pouco abaixo do diafragma e que parecia empenhada
em lhe obstruir a respiração. Enfim, Soraia poderia ter tentado consolar-se da
premonição que a invadira apoiando-se em qualquer uma das três hipóteses, ou
até mesmo mesclando-as. Mas foi tão avassaladora a sensação de que não lhe
restavam pouco mais do que uns míseros dias que tudo o que conseguiu fazer foi
recostar-se no muro de uma casa e chorar discretamente a inexorabilidade de seu
destino.
Entretanto, nada comentou com o marido, mas a partir
daí só agiu em função dele. No dia seguinte, procurou um artesão que vendia
bonecos desengonçados nas feiras e nos mercados, e encomendou-lhe uma mão
exatamente igual à sua, pagando adiantado e regiamente - mas só depois de ter
arrancado dele a promessa solene de que ninguém haveria de saber o que ela lhe
pedia. Petrônio, o escultor fracassado, que só conseguia se manter vivo graças
à generosidade de uns poucos que eventualmente adquiriam seus monstrengos, ante
a polpuda quantia oferecida lançou-se de imediato ao trabalho, concluindo-o em
três dias.
Nessa mesma noite, Soraia mostrou a réplica de sua mão
esquerda ao marido. Ele a elogiou muitíssimo, mas quando ficou ciente dos
motivos que haviam animado a esposa a mandar fazê-la, teve uma crise de asma
tão violenta que Soraia, por um momento, acreditou que a escultura corria sério
risco de jamais vir a ser utilizada. Juraci precisou ser levado a um posto de
saúde e só não morreu por puro acaso. Passou a noite inteira encafifado dentro
de um balão de oxigênio e sua dispnéia só cedeu quando o dia clareava. Soraia
permaneceu todo o tempo ao seu lado, segurando sua mão, implorando a Deus para
que não o levasse antes dela, dentre outras coisas por não lhe parecer justa
uma inversão na ordem das mortes depois do que havia gasto.
Quando regressaram a casa, Juraci não mais silvava
como um cão agonizante, mas em contrapartida tornou-se catatônico. Soraia
tentou durante todo o dia convencê-lo de que agira pensando unicamente nele, na
sua tranqüilidade noturna, na perpetuação do antigo hábito, mas Juraci
permanecia aferrado à sua postura pétrea de general de estátua. Passava das
onze quando, já rouca e esgotada, Soraia decidiu finalmente renunciar a que o
marido reconhecesse a grandeza de seu gesto. Colocando então a mão sintética e
borrachuda numa caixinha de vidro, beijou o marido, foi para o seu quarto,
deitou-se e morreu imediatamente.
Durante os quinze dias que se seguiram à misteriosa
morte, Juraci não ousou tocar naquela mão eternizada, mas também não conseguiu
dormir um minuto sequer - apenas cochilava durante o dia, no máximo por alguns
minutos. Recorreu a sedativos, inventou os mais variados estratagemas para
atrair o sono, mas foi tudo inútil. Quando finalmente se convenceu de que não
lhe restava outra alternativa a não ser a de seguir a recomendação da falecida,
foi para a cama com a caixinha e tão logo se pôs em contato com a réplica
dormiu de imediato.
A partir daí, Juraci nunca mais teve qualquer problema
para dormir, porque jamais deixou de se deitar de mãos dadas com o precioso
objeto. Sua relação com ele, aliás, não se limitava ao mero ato de usufruir
suas propriedades soporíferas; quando saía para passear, por exemplo, levava-o
sempre consigo, se bem que oculto, pois não lhe interessava que os outros
soubessem de sua existência. Afora isso, lavava-o com freqüência, escovava-o e
depois de certo tempo habituou-se a passar esmalte uma vez por semana nas unhas
da escultura, utilizando invariavelmente a tonalidade preferida da esposa, um
rosa desmaiado.
Diante de tal quadro, não se torna nem um pouco
difícil compreender porque Juraci conseguia suportar tão bem - dentro do
possível, evidentemente - a ausência da esposa. Guardadas as devidas
proporções, era como se ela continuasse em sua casa e em sua vida. É até
provável que seu amor por Soraia tenha aumentado depois da morte dela, pois
nunca fora tão atencioso e gentil com a esposa como o era agora com a réplica
de sua mão esquerda. Sempre a amara, é verdade, mas de forma econômica,
homeopática, pouco expansiva, como se no fundo temesse um esvaziamento
prematuro de suas reservas afetivas.
E assim, apaixonado e certo de que chegaria mesmo a
completar um século, Juraci foi levando sua vida. E certamente teria conseguido
o prodígio de viver cem anos não tivesse tido a idéia de comemorar o primeiro
aniversário de viúvo chamando seus amigos mais chegados para uma singular
reunião social. Aos que estranharam o aparentemente insólito convite declarou,
em tom solene, que tinha certeza de que Soraia aprovaria aquela iniciativa,
posto que a mesma fora concebida visando homenageá-la. Sim, toda a conversa
haveria de girar em torno dela, da maravilhosa relação que haviam mantido por
mais de meio século - Juraci só não revelou que pretendia recitar alguns
sonetos que compusera pensando na finada e que gostaria de submeter à sincera
avaliação de seus amigos. Se aprovados, prosseguiria dando vazão à verve
poética de que se julgava possuído e mais tarde, quem sabe, tentaria
publicá-los. Já havia até mesmo escolhido o título da possível coletânea: “Soneraia”-
que, como se vê, é a sutil mescla de soneto com Soraia.
Confiando que a inusitada tertúlia haveria de
consagrá-lo como esposo devotado e poeta tardio, encomendou um farto bufê de
doces e salgadinhos, assim como abarrotou a geladeira de cerveja de várias
marcas. E para que nada pudesse distrair a atenção dos amigos ou interromper o
fluxo de paixão que haveria de impregnar os corações presentes, contratou uma
mulata que trabalhava na quitanda para servir as guloseimas e bebidas.
Chamava-se Fátima e teria uns 17 anos. Por julgá-la inexperiente em assuntos de
tamanha envergadura - amor e poesia -, Juraci a orientou no sentido de não
permitir que algum dos convidados deixasse a sala para, por exemplo, ir até a
geladeira pegar um pouco mais de cerveja. Ela teria que permanecer vigilante na
porta da cozinha, que dava para a sala, e suprir as carências de seus amigos
antes mesmo que eles as notassem. Em troca, receberia 50 reais e poderia ficar
com todos os petiscos que porventura não viessem a ser consumidos.
A idéia, em si, era excelente, pois, como todos
sabemos, a poesia, para ser devidamente apreciada, requer um grau de
concentração absoluto. Mas nem sempre as boas intenções geram resultados
compensadores, haja vista a enorme legião de bem-intencionados que habita as
trevas infernais. E ainda que não possamos garantir que tenha sido esse o
destino de Juraci, o fato é que antes de soarem as doze badaladas daquele
fatídico dia ele já não pertencia mais a esse nosso abençoado mundo.
Mas vamos ao que ocorreu. A reunião começou às 18h em
ponto, hora da Ave Maria e justamente com uma oração em memória de Soraia,
porque todos os presentes, além de estimá-la muito, eram católicos genuínos. Em
seguida, e durante as próximas duas horas, falou-se muito dela, da relação do
casal, do amor, tudo de acordo com os planos previamente traçados por Juraci. E
comeu-se muito e bebeu-s em igual medida, de forma que às 20h o anfitrião
julgou que o clima já se tornara propício para o início do recital. Então, sem
nenhum aviso prévio, postou-se no centro da sala e, para assombro dos presentes,
recitou, de cor e em seqüência, 54 sonetos!
Assim que acabou, afônico e esgotado de tanta emoção,
Juraci tornou a se sentar e teve uma violenta crise de choro. Mas os amigos o
cercaram de imediato e foram pródigos em elogios e afagos - dentre os muitos
que ribombaram pela casa talvez o mais sublime tenha sido o que o designou “O
José de Alencar de Vila Valqueire”, o que em muito excedia as mais otimistas
expectativas do poeta estreante.
Finalmente, às 23h, retirou-se o último convidado, na
casa permanecendo apenas a mulata Fátima, entretida na arrumação da casa e na
lavagem de pratos, copos e talheres. Nada poderia sugerir o que se seguiu, mas
o fato é que de repente Juraci teve a intuição de que aquela noitada o havia
rejuvenescido em pelo menos vinte anos. E essa intuição surgiu no exato
instante em que Fátima, empenhada em resgatar um garfo que caíra embaixo de uma
das poltronas, sem querer exibiu uma considerável parcela de suas coxas
magníficas. Incapaz de dominar-se, Juraci atirou-se sobre as ancas da distraída
criatura e as mordeu com tal ímpeto que a doméstica, equivocada quanto ao real
sentido daquele inesperado assalto, assim que conseguiu desvencilhar-se partiu em
disparada e aos gritos, desprezando o pagamento, os salgadinhos e os tardios
pedidos de desculpas que lhe endereçava Juraci. Mas este, ainda que um tanto
frustrado, não chegou a ficar triste, pois redescobrira que suas reservas de
macho ainda não se haviam esgotado, como supunha. O curioso, no entanto, é que
em nenhum momento lhe ocorreu que a dita
descoberta se dera imediatamente após ter recitado 54 sonetos de amor em homenagem à falecida...o
que configurava uma traição, ainda que póstuma. Tanto assim que, ao deitar-se
de mãos dadas com a borrachuda réplica, não se conteve e recitou alguns sonetos
que considerava pertencentes ao grupo dos melhores. E ao adormecer, o fez com a
certeza de que nunca amara tanto Soraia quanto naquele momento.
Deviam ser umas sete da manhã quando a porta da
residência de Juraci começou a ser cruelmente massacrada pelos punhos do pai de
mulata, que, indignado com o relato que ela lhe fizera, decidira tomar
satisfações. Impaciente com a demora e já imaginando que Juraci fingia dormir
para esquivar-se às suas responsabilidades, o latagão de ébano acabou ponto a
porta abaixo. Ato contínuo e como um Átila invadiu a residência aos gritos de “velho
porco, velho tarado”, aos quais agregou ameaças de toda a espécie. Infelizmente
para ele, porém, não teve a ventura de consumá-las, pois assim que entrou no
quarto de Juraci percebeu sua total imunidade a vinganças deste mundo: estava
morto.
Mas não foi por esse motivo que o ofendido pai se
retirou desabaladamente dos aposentos que invadira, mas sim devido ao terror
que dele se apossou ao constatar a presença, no pescoço de Juraci - que
gostaria de haver torcido - de uma mão crispada! - sem dúvida a causadora da mortal
asfixia. (Lionel Fischer, escrito aos 17 anos)
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