quarta-feira, 31 de agosto de 2016

Afetos

Esta breve cena foi escrita a pedido de dois alunos que iriam realizar um teste. o tema foi proposto por eles: as supostas cautelas que os homens devem ter quando se deparam com a possibilidade de um novo relacionamento. o personagem EU sou eu mesmo. o ELE...enfim...a maioria dos homens que conheço, qualquer que seja a sua idade. (Lionel Fischer)

(A cena se passa num bar ou em qualquer lugar afeito a conversas e confissões. E acontece, digamos, no dia seguinte àquele em que, hipoteticamente, conheci uma mulher interessante)

ELE - E aí?

EU - Trocamos telefones.

ELE - Os aparelhos?

EU - Você está cada vez mais engraçado...

ELE - Desculpa. É que eu não resisto a uma piada.

EU - Maravilhosa, por sinal...

ELE - Continua.

EU - Já esqueci o que estava falando...

ELE - Deixa de bancar a criança ofendida. Você deu pra ela o número do seu celular e ela deu pra você o número do celular dela.

EU - Estou espantado com a tua perspicácia...

ELE - E aí? Qual foi o passo seguinte?

EU - Me deu vontade de ligar pra ela cinco minutos depois de nos despedirmos.

ELE - Mas você não fez isso...

EU - Não, não fiz.

ELE - Ainda bem.

EU - Por quê?

ELE - Porque seria ridículo.

EU - Ridículo? Por que, se foi esse o meu desejo?

ELE - Tem que dar um tempo.

EU - Quanto tempo?

ELE - No mínimo, três dias.

EU - Por que três dias e não dois ou quatro?

ELE - Três dias é um tempo legal. Se ela também se interessou por você, vai sentir sua falta.

EU - Ou vai achar que eu não vou ligar nunca.

ELE - É uma hipótese.

EU - É mais do que uma hipótese: é praticamente um risco idiota que eu estaria correndo, sem a menor necessidade.

ELE - Se você ligar antes de três dias, ela vai te considerar invasivo.

EU - Palavra linda, essa...invasivo...

ELE - Ela vai ter certeza de que você é do tipo que "gruda".

EU - Mas eu não sou, nem nunca fui assim!

ELE - Mas ela vai achar.

EU - Problema dela.

ELE - Problema teu. Vai por mim.

EU - Tudo bem: eu vou por você. Espero os tais três dias, me corroendo de saudades. Daí eu ligo e...

ELE - Fala qualquer coisa, menos que teve saudades dela, que gostaria muito de revê-la etc.

EU - Mas foi isso que eu senti!

ELE - Tudo bem, mas não precisa declarar.

EU - E falo o quê? Do tempo, da Bolsa de Valores, que o mico leão dourado está em vias de extinção...

ELE - Não precisa ser tão evasivo, né?

EU - Linda essa palavra: evasivo...

ELE - Você pode, por exemplo, perguntar o que ela vai fazer na próxima sexta-feira.

EU - E se estivermos na sexta? Pergunto o que ela vai fazer na seguinte?

ELE - Não, aí você pode perguntar se ela tem algum programa pro dia seguinte, sábado.

EU - E se ela já tiver?

ELE - Você se mantém impassível e deixa a entender que, sendo o Rio de Janeiro praticamente uma aldeia, mais cedo ou mais tarde vocês se esbarrarão por aí...meio que por acaso, percebe?

EU - Não, não percebo. Eu não quero ficar esperando que o acaso me contemple com suas bênçãos. Quero que ela saiba que adorei nosso primeiro encontro e que, se ela também sentiu o mesmo, seria ótimo que nos reencontrássemos. Há algum crime em ser claro?

ELE - Há. Mulher tem horror à clareza. Elas sempre priorizam o mistério. Em se tratando de sentimento, se você for logo muito objetivo com uma mulher, ela vai achar que você é um homem fácil, que está disponível e...

EU - Mas eu estou disponível!

ELE - Mas ela não pode ter essa certeza! Se tiver, some!

EU - Então que suma! Estaria, por sinal, me fazendo um grande favor, já que não seria quem eu pensei que era!

ELE - Você só esteve com ela uma vez. Não pode ter pensado nada de tão especial. Não deu tempo.

EU - Escuta aqui, amigo queridíssimo: eu posso perfeitamente ter um encontro de 15 minutos com uma mulher e ter absoluta certeza de que gostaria de escrever uma história com ela! 

ELE - Uma história de 15 minutos...

EU - Talvez, mas que pode ser mais intensa do que outra que dure 15 anos!?

ELE - Você é realmente uma cara do século dezenove...

EU - E você é realmente um cara do século vinte e um!

ELE - Você tá zangado comigo?

EU - Não, muito pelo contrário. Nossa conversa está sendo  ótima.

ELE - Fico aliviado.

EU - E está sendo ótima porque resolvi ligar agora mesmo pra ela!

ELE - E se cair na secretária?

EU - Deixo um recado.

ELE - Que tipo de recado?

EU - Que não posso mais viver cinco minutos sem ela!!! Que tive a certeza de que ela não é deste planeta, que provavelmente nasceu em Vênus, a primeira estrela!

ELE (Após gargalhar de forma quase obscena) - Você nunca vai ter essa mulher...

EU (Após expressiva pausa) - Vamos pedir a conta?

ELE - Mas ainda é cedo!?

EU - Não, é tardíssimo!

ELE - Você está com sono? Acorda cedo amanhã?

EU - Não...não estou com sono, nem acordo cedo amanhã. É que estou louco pra chegar em casa e escrever um poema de amor.

ELE - E vai mandar pra ela?

EU - Certamente.

ELE - Mensagem ou e-mail?

EU - Carta! Sou um homem do século dezenove...

ELE - Você sabe o endereço dela?

EU - Não. Mas descubro.

ELE - Ela vai contar pras amigas. Você vai virar motivo de piada...

EU - Que ótimo. É sempre bom quando conseguimos fazer com que as pessoas riam...

ELE - Há risos e risos...

EU - De fato. E há homens e homens...

ELE - Você não existe, cara...

EU - Graças a Deus!

____________________________

Nenhum comentário:

Postar um comentário