A tortura:
o que é e como evoluiu na História
“A tortura deixou, para sempre, de
existir”, dizia Victor Hugo, em 1874. Infelizmente, o século XX
demonstra que o escritor francês se equivocou. Segundo dados da
Anistia Internacional, a tortura física, moral e psicológica é hoje
sistematicamente aplicada – ou pelo menos tolerada – por governos de
60 países.
A 10 de dezembro de 1948, A
Assembléia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU) aprovou a
Declaração Universal dos Direitos Humanos, cujo artigo 5º reza:
Ninguém será submetido à tortura,
nem a tratamento ou castigo cruel, desumano ou degradante.
Atualmente, em mais de um terço dos
países signatários da Carta Magna dos Direitos Humanos, a tortura é
parte substancial dos métodos interrogatórios da polícia e das forças
militares, sendo praticada para se obter informações, humilhar,
intimidar, aterrorizar, punir ou assassinar prisioneiros políticos e
comuns.
O que é a tortura
A tortura foi definida pela
Associação Médica Mundial, em assembléia realizada em Tóquio, a 10 de
outubro de 1975, como:
“a imposição deliberada, sistemática
e desconsiderada de sofrimento físico ou mental por parte de uma ou
mais pessoas, atuando por própria conta ou seguindo ordens de
qualquer tipo de poder, com o fim de forçar uma outra pessoa a dar
informações, confessar, ou por outra razão qualquer”.
O psicanalista Hélio Pellegrino
observa que “a tortura busca, à custa do sofrimento corporal
insuportável, introduzir uma cunha que leve à cisão entre o corpo e a
mente. E, mais do que isto: ela procura, a todo preço, semear a
discórdia e a guerra entre o corpo e a mente. Através da tortura, o
corpo torna-se nosso inimigo e nos persegue. É este o modelo básico
no qual se apóia a ação de qualquer torturador. (...) Na tortura, o
corpo volta-se contra nós, exigindo que falemos. Da mais íntima
espessura de nossa própria carne, se levanta uma voz que nos nega, na
medida em que pretende arrancar de nós um discurso do qual temos
horror, já que é a negação de nossa liberdade. O problema da alienação
alcança, aqui, o seu ponto crucial. A tortura nos impõe a alienação
total de nosso próprio corpo, tornando estrangeiro a nós, e nosso
inimigo de morte. (...) O projeto da tortura implica numa negação
total – e totalitária – da pessoa, enquanto ser encarnado. O centro
da pessoa humana é a liberdade. Esta, por sua vez, é a invenção que o
sujeito faz de si mesmo, através da palavra que o exprime. Na
tortura, o discurso que o torturador busca extrair o torturado é a
negação absoluta e radical de sua condição de sujeito livre. A tortura
visa ao avesso da liberdade. Nesta medida, o discurso que ela busca,
através da intimidação e da violência, é a palavra aviltada de um
sujeito que, nas mãos do torturador, se transforma em objeto”.
Enfim, é tortura tudo aquilo que
deliberadamente uma pessoa possa fazer a outra, produzindo dor,
pânico, desgaste moral ou desequilíbrio psíquico, provocando lesão,
contusão, funcionamento anormal do corpo ou das faculdades mentais,
bem como prejuízo à moral.
No Brasil, no período compreendido
por este estudo (1964-1979), a tortura foi sistematicamente aplicada
aos acusados de atividades consideradas “subversivas”. Entretanto, a
incidência retratada nos procedimentos judiciais é bem menor que a
sua real extensão e intensidade. Isso porque os Conselhos de Justiça
Militar, via de regra, evitavam que as denúncias de torturas fossem
consignadas aos autos das ações penais. Quando toleravam
incorporá-las, o faziam de forma superficial, simplificada, genérica,
demonstrando, assim, conivência com o comportamento criminoso dos
órgãos de segurança do Estado. Raros os juizes-auditores que fizeram
consignar nos autos a descrição pormenorizada das sevícias sofridas
pelos réus e os nomes de seus algozes.
Muitas vezes as vítimas da tortura,
por sua própria vontade ou aconselhadas por familiares, agrupamentos
políticos ou advogados de defesa, optaram por silenciar, em seus
interrogatórios na Justiça, sobre as torturas que padeceram, temendo,
como a muitos sucedeu, que a denúncia induzisse a uma condenação
antecipada. Muitos não falaram de seus sofrimentos com medo de
retornarem às sessões de tortura, como ocorreu inúmeras vezes. No
entanto, os que ousaram descrever os suplícios de que foram vítimas,
os modos e os instrumentos de tortura, os locais, a assistência
médica e os nomes dos torturadores, e tiveram suas palavras
consignadas nos autos processuais pela própria voz autorizada do
Tribunal Militar, permitiram constatar que, no Brasil de 1964 a 1979,
a tortura foi regra, e não exceção, nos interrogatórios de pessoas
suspeitas de atividades contrárias aos interesses do Regime Militar.
Tal prática generalizada encontra amparo e fundamento ideológico na
Doutrina de Segurança Nacional.
Evolução
histórica da tortura
Ao longo dos séculos, a tortura era
um direito do senhor sobre os escravos, considerados coisas, ou foi
aplicada como pena advinda de sentenças criminais, O apedrejamento, o
chumbo derretido na pele, a decepção de órgãos, eram penas impostas a
infratores ou supostos infratores das leis e visavam obediência ao
princípio do Talião, resumido pelo célebre axioma “olho por olho,
dente por dente”, e tinham como fundamento o ressarcimento do mal
causado através da aplicação do mesmo mal a quem o causara. Já o
Código de Hamurabi, ordenamento legal do século 18 antes de Cristo,
adotado na Babilônia, previa para os criminosos a empalação, a fogueira,
a amputação de órgãos e a quebra de ossos.
A lei mosaica, do Antigo Testamento,
defendia os escravos das arbitrariedades: “Se alguém ferir o seu
escravo ou a sua serva com uma vara, e o ferido morrer debaixo de sua
mão, será punido” (Êxodo 21,20). Entretanto, o livro do Eclesiástico
admite a tortura dos escravos (“Jugo e rédea dobram o pescoço, e ao
escravo mau torturas e interrogatório”, 33,27), embora defenda a
dignidade deles (“Tens um só escravo? Trata-o como a um irmão, pois
necessitas dele como de ti mesmo”, 33,32).
No Novo Testamento, o açoite aparece
como a sevícia mais comum aos acusados de delitos, O apóstolo Paulo
chega a apelar à sua cidadania romana para livrar-se da tortura (Atos
dos Apóstolos 22,24). O Direito romano admitia a tortura, pois o
processo baseava-se na auto-acusação e na confissão dos suspeitos, e
não nas provas e nas testemunhas.
Em fins do século II, Tertuliano, na
obra De Coruna, exorta os soldados convertidos ã fé cristã a evitarem
praticar torturas. Dois séculos depois, Lactâncio, em sua Divinae
Institutiones, escreve eloquentes páginas contra a tortura, “por ser
contra o direito humano e contra qualquer bem”. Já Santo Agostinho,
na De Civitate Dei, escrita entre os anos 412 e 416, não chega a
condenar a inclusão da tortura no Direito Romano, mas repudia sua
aplicação, por tratar-se de pena imposta a quem não se sabe ainda se
é culpado.
Pouco antes de Agostinho, em 382, o
Sínodo Romano, presidido pelo Papa Dâmaso, remete alguns cânones aos
bispos da Gália, entre os quais se declara expressamente que não são
livres de pecado os funcionários civis que “condenaram pessoas à
morte, deram sentenças injustas e exerceram a tortura judiciária”. Apenas
vinte anos após aquele sínodo ocorre uma virada no pensamento do
magistério pontifício da Igreja. O Papa Inocêncio I (401-417) escreve
em sua Epístola VI: “Pediram-nos a opinião sobre aqueles que, após
haverem recebido o batismo, tiveram cargos públicos e exerceram a
tortura, ou aplicaram sentenças capitais. A este respeito nada nos
foi transmitido”. Iniciava-se, pois, o consentimento implícito às
normas processuais romanas, apesar da suposta cristianização do
Império. Entendia-se que a Igreja não podia reprovar o uso da espada
no Direito penal, uma vez que isso decorria da própria “vontade de
Deus”. E considerando que o Estado, após Constantino, contava com um
número sempre maior de funcionários cristãos, exigir que se
mantivesse frente a ele a mesma atitude critica de Tertuliano, de
Lactâncio, de Agostinho e de todos que sentiram de perto a perseguição,
significava – aos olhos da nova teologia do poder – impedir a justiça
penal de seguir o seu curso “normal”.
Com as invasões bárbaras, a tortura
diminuiu e as fontes conhecidas só retomam o tema por ocasião da
conversão dos búlgaros, em 866. A eles escreve o Papa Nicolau I, para
esclarecê-los sobre questões dogmáticas e morais, entre as quais o
costume que tinham, antes de abraçar a fé cristã, de torturar os
criminosos. O Papa insiste na supressão da tortura, acentuando que a
confissão deve ser espontânea, pois a tortura não é admitida “nem
pela lei divina e nem pela lei humana”. Recomenda ainda que, em lugar
de suplícios, apele-se às testemunhas e exija-se o juramento sobre os
Evangelhos.
A
reintrodução da tortura aos processos penais
No século XII, o Direito penal do
Ocidente retoma princípios do Direito Romano imperial e reintroduz a
tortura judiciária, apesar de, à mesma época, afirmar o Decretum
Gratiani: “A confissão não deve ser obtida pela tortura, como escreve
o Papa Alexandre”.
No século seguinte, a tortura passa
a fazer parte dos códigos processuais, especialmente nos Estados
centralizados, como Castella de Afonso X, a Sicília de Frederico II e
a França de Luis IX. Simultaneamente a Igreja passa a admitir o uso
processual da tortura. Em 1244, o Papa Inocêncio IV aprova a
legislação penal de Frederico II e, em 1252, em seu Ad Extirpanda,
aceita que “os hereges, sem mutilação e sem perigo de vida podem ser-
torturados a fim de revelar os próprios erros e acusar os outros,
como se faz com os ladrões e salteadores”. fl o retomo oficial ao
sistema penal romano, fundado na auto-acusação e na confissão do
réu. Essa trágica involução reflete-se na obra do maior pensador
medieval, Tomás de Aquino. Em fins do século XIII, ao tratar das injúrias
contra as pessoas, na parte moral da Suma Teológica (questão 64), ele
se refere à mutilação, à flagelação dos filhos e dos servos e ao
encarceramento. Mas não menciona a tortura, exceto em sua Expositio
super Job: “Sucede às vezes que, quando um inocente é acusado
falsamente perante um juiz, este, para descobrir a verdade, o submete
à tortura, agindo segundo a justiça; mas a causa disso é a falta de
conhecimento humano”) São Tomás admite pois que, não havendo outro
recurso para se apurar a verdade, é justa a aplicação da tortura,
mesmo sobre um inocente. Tal posição inaugura, na Igreja, a adoção da
tortura como prática sistemática de preservação da disciplina
religiosa. Ela passa a ser oficialmente aceita nos processos de
heresia, não obstante não se recomende sua aplicação direta por
religiosos, padres e bispos.
A Inquisição
e a Doutrina de Segurança Nacional
A mais notória obra sobre o uso da
tortura pela Igreja é O Manual dos Inquisidores, de Nicolau Emérico
(1320-1399). No capítulo 3, “Sobre o interrogatório do Acusado”, o
inquisidor recomenda: “aplicar-se-lhe-á a tortura, a fim de lhe
poder tirar da boca toda a verdade”. O capítulo 5
traz como título “Sobre a tortura”, e tem como frase introdutória:
“Tortura-se o Acusado, com o fim de o fazer confessar os seus
crimes”. Quem tortura, os eclesiásticos ou o braço secular? A esta
indagação responde o frade italiano que comandou a Inquisição na
região espanhola de Aragón:
“Quando começou a estabelecer-se a
Inquisição, não eram os Inquisidores quem aplicavam a tortura aos
Acusados, com medo de incorreram em irregularidades. Esse cuidado
incumbia aos juizes leigos, conforme a Bula Ad Extirpanda, do Papa
Inocêncio IV, na qual esse Pontífice determina que devem os
Magistrados obrigar com torturas os Hereges (esses assassinos das
almas, esses ladrões da fé cristã e dos sacramentos de Deus) a
confessar os seus crimes e a acusar outros hereges seus cúmplices.
Isto no princípio; posteriormente, tendo-se verificado que o processo
não era assaz secreto e que isso era inconveniente para a fé,
achou-se que era mais cômodo e salutar atribuir aos Inquisidores o
direito de serem eles mesmos a infligir a tortura, sem ser preciso
recorrer aos juizes leigos, sendo-lhes ainda outorgado o poder de
mutuamente se relevarem de irregularidades em que às vezes, por
acaso, incorressem.
“De ordinário utilizam os nossos
Inquisidores cinco espécies de tormentos no decorrer da tortura. Como
isso são coisas sabidas de toda a gente, não irei deter-me neste
assunto. Podem consultar-se Paulo, Grilando, Locato, etc. Já que o
Direito Canônico não prevê particularmente este ou aquele suplicio,
poderão os juizes servir-se daqueles que acharem mais aptos para
conseguirem do acusado a confissão de seus crimes. Não se deve,
porém, fazer uso de torturas inusitadas. Marcílio menciona catorze
espécies de tormentos: acaba por afirmar que imaginou ainda outros,
como seja a privação de sono, também referida e aprovada por Grilando
e Locato. Mas, se me é permitido dizer a minha opinião, isso é mais
trabalho de carrascos do que tratado de Teólogos.
“É por certo um costume louvável
aplicar a tortura aos criminosos, mas reprovo veemente esses juizes
sanguinários que, por quererem vangloriar-se, inventam tormentos de
tal modo cruéis que os Acusados morrem durante a tortura ou acabam
por perder alguns dos membros. Também Antônio Gomes condena
violentamente esse procedimento”.
No Brasil, de 1964 a 1979, os
métodos de interrogatórios e o sistema processual baseados na
Doutrina de Segurança Nacional parecem advir da Inquisição medieval.
Esta também instigava a delação entre parentes (“em matéria de
heresia, o irmão pode testemunhar contra o irmão e o filho contra o
pai”), reduzia o número de testemunhas (“bastam dois testemunhos para
condenar definitivamente em matéria de heresia”), aceitava delações
anônimas (“não deverão tornar-se públicos os nomes das testemunhas,
nem dá-los a conhecer ao Acusado”). Compare-se ainda o modo de se
proceder ao interrogatório de presos políticos às “principais manhas
que o Inquisidor deve empregar contra as manhas dos hereges:
1. Através de repetidas
interrogações, obrigá-los a responder claramente e de forma precisa
às questões formuladas.
2. Se se vier a presumir que um
Acusado, acabado de prender, tem intenção de esconder o seu crime (o
que é fácil de descobrir antes do interrogatório, seja por meio dos
carcereiros, seja por pessoas mandadas para espiar o Acusado), será
então necessário que o Inquisidor fale com muita doçura ao Herege,
lhe dê a entender que já sabe de tudo.
3. Se um Herege, contra o qual não
foram ainda fornecidas provas suficientes de culpa, mesmo que haja
bastos indícios, continuar a negar, fará o Inquisidor com que ele
compareça e far-lhe-á perguntas ao acaso. Logo que o Acusado haja negado
qualquer coisa, lançará mão da Ata em que se contêm os
interrogatórios precedentes. Poderá folheá-los e dirá: “É muito claro
que me estás a esconder a verdade, deixa de estar a dissimular”. Tudo
de forma a que o Condenado julgue estar já reconhecido como culpado e
que na Ata estão contidas provas contra ele. (...).
4. Se o Acusado teimar em negar o
seu crime, deverá o Inquisidor dizer-lhe que vai partir brevemente
para longe, que não sabe quando virá, que lhe desagrada o ter que se
ver obrigado a deixá-lo apodrecer nas prisões, que bem desejava tirar
a limpo toda a verdade de sua boca, a fim de o poder mandar embora e
dar por findo o processo. Mas, já que ele se obstina em não querer
confessar, que o vai deixar a ferros até o seu regresso, que tem pena
dele por lhe parecer de saúde delicada, que possivelmente irá
adoecer, etc.
5. Se o Acusado continuar a negar,
multiplicará os interrogatórios e as interrogações. E desta forma, ou
o Acusado há de confessar, ou há de dar respostas diversas. Se der
várias respostas diferentes, é o bastante para o conduzir à tortura.
6. Se o Acusado persistir na
negação, pode o Inquisidor falar-lhe com doçura, tratá-lo com um
pouco mais de atenções no respeitante à comida e à bebida, fazer
também com que algumas pessoas de bem o vão visitar e conversem com
ele, inspirando-lhe confiança, aconselhando-o a confessar, prometendo-lhe
que o Inquisidor lhe há de fazer mercês, fingindo-se (de) mediadores
entre este e o Acusado. (...)
7. Uma outra artimanha do Inquisidor
será chamar um cúmplice do Acusado, ou pessoa a quem este estime e
em quem acredite, a fim de a enviar repetidas vezes para falar com o
Prisioneiro e conseguir o segredo. (...) Numa palavra, devem ser
utilizadas todas as artimanhas que não tragam em si aparência de
mentira”.
Os tribunais de Inquisição não
seguiam ordem jurídica alguma os processos não obedeciam às
formalidades do Direito. Estimulava-se a delação, que formalizava a
peça acusatória. A denúncia oral fazia-se com as mãos sobre o
Evangelho, como juramento e, a partir daí, o inquisidor tramitava o
processo, mantendo oculta a identidade do denunciante. A obrigação de
denunciar os hereges era permanente. Mesmo quando a acusação
intentada era completamente desprovida de verdade, o inquisidor não
era obrigado a apagar de seu livro de registros processuais os dados
referentes aos supostos hereges. Isso porque, dizia-se, “aquilo que
não se descobre em certa altura, pode vir a descobrir-se noutra”.
Os próprios inquisidores davam
buscas gerais à procura de heréticos. De tempos em tempos, nas
paróquias escolhiam-se alguns padres e leigos, “pessoas de bem”, a
quem se fazia prestar juramento, e que promoviam buscas frequentes
“e escrupulosas em todas as casas, nos quartos, celeiros,
subterrâneos, etc.”, a fim de se certificarem se porventura não
havia hereges escondidos por ali.
A
progressiva rejeição da tortura
Com a evolução dos tempos, a Igreja,
envolvida pelas idéias humanistas, procurou minorar tais
procedimentos medievais, afastou-se dos centros de poder e estabeleceu
a igualdade de todos perante a Justiça, restringindo sobremaneira a
prática de torturas e de detenções preventivas. Foram suprimidos o
uso da água fervente, do óleo quente e do ferro em brasa. Aboliu-se
também o principio de que “em qualquer julgamento Deus estará
presente para dar razão a quem tiver”. Pois o “poder divino” submetia
o acusado a provas. Se saisse ileso, era inocente. Se a ferida não
infeccionasse, se a pele não formasse bolhas, não era considerado
culpado e sua inocência era proclamada. Caso contrário, se não
resistisse à dor, era obrigado a confessar sua culpa e, portanto,
incriminado.
Ainda que no século XVI se tenham
publicado os ordenamentos criminais de Carlos V, favoráveis a todo
tipo de crueldade, o humanista cristão João Vives, em seu comentário
a De Civitate Dei, de Santo Agostinho, rejeita decididamente a
tortura: “Como podem viver tantos povos, inclusive bárbaros, como
dizem os gregos e latinos, que permitem torturar durissimamente um
homem de cujos delitos se duvida? Nós, homens dotados de todo senso
humanitário, torturamos homens para que não morram inocentes, embora
tenhamos deles mais piedade do que se morressem: muitas vezes os tormentos
são, de longe, piores do que a morte... Não posso e não quero
alongar-me aqui sobre a tortura... é um lugar comum, entre os
retóricos, falar pró e contra ela. Enquanto o que dizem contra é
fortíssimo, os argumentos a favor são fúteis e fracos”.
Em 1624, João Graefe ou Grevius,
pastor armeniano holandês, publicou em Hamburgo o seu Tribunal
Rejormatum, verdadeiro tratado de teologia moral a respeito da
tortura. Segundo ele, esta não pode ser justificada pelas Escrituras,
é contra a caridade cristã e o direito natural. A esta obra seguem-se
outras de autores católicos, von Sppe (Cautio criminalis, 1631), I.
Schaller (Paradoxon de tortura in christiana republica non
exercenda, 1657), A. Nicolas (Si la torture est un moyen súr à
vérijier les crimes secrets, 1682). A de maior importância, porém,
foi a dissertação de C. Thomasius, De tortura ex joris christianorurn
proscribenda, publicada em Halle, em 1705, na qual ele defende a
exclusão da tortura dos processos penais, por ser uma pena
desproporcional e contra a justiça em geral, bem como por ser contra
o senso cristão de justiça e de proporção. Aconselha ao príncipe a
considerar sua abolição pela ótica meramente política, uma vez que
teologicamente e segundo o direito natural ela é insustentável.
A partir da famosa obra de C.
Beccaria, Dei delitti e delle (Livorno, 1764), os iluministas retomam
os argumentos de Thomasius e conseguem introduzir a proibição da
tortura na legislação vigente, a começar pela Suécia e pela Prússia
de Frederico II. No entanto, o mesmo não ocorre na Igreja Católica. A
3 de fevereiro de 1766, o Santo Ofício inclui no Index de livros
proibidos a obra de Beccaria. E Santo Afonso de Ligório, na edição de
1785 de sua Teologia Moral, ainda se pergunta: “O que é lícito ao
juiz em questão de tortura?”. O único moralista que se coloca ao
lado de Thomasius é o capuchinho alemão R. Sasserath, em seu Cursus
Theologiae Moralis, de 1787.
Também a Revolução Francesa, trouxe
significativos avanços no tratamento da questão, impondo às
autoridades o respeito à integridade física dos detidos e,
consequentemente, proibindo a tortura.
A partir do século XIX, nenhum
manual de Teologia Moral recoloca a questão da tortura, pois, já no
século XVII, fôra considerada prática “moralmente censurável” e, no
século XVIII, erigida em crime. Contudo, no Brasil colônia, o Código
Criminal estipulava para os escravos a pena de açoite e, por vezes, a
sentença punha o escravo a ferros. A única atenuante era o
impedimento legal de o negro receber mais de 50 chibatadas diárias...
Para os delitos graves havia o emparedamento e a possibilidade de
quebra dos dentes e de ossos do culpado.
É no século XX, após a Primeira
Guerra Mundial, que a tortura volta como método privilegiado de
interrogatório policial e militar em dezenas de países, embora
excluída da legislação. Na Segunda Guerra, ela é usualmente aplicada
aos prisioneiros de guerra, em especial nos campos de concentração
nazistas, vitimas inocentes de um genocídio programado que, após o
conflito mundial, fez emergir na consciência dos povos de todo o
mundo a exigência de se ter um estatuto que objetive e defenda os
valores essenciais da vida humana. Assim, os países membros da ONU
assinaram, em 1948, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, onde
as torturas e os maus-tratos são definitivamente condenados.
Poucas normas jurídicas foram tão
aceitas no mundo das nações civilizadas como aquelas proclamadas pela
ONU.
Sua influência fez com que quase
todos os países adotassem em seus ordenamentos jurídicos, regras de
proibição terminantes com tais práticas.
Apesar disso, a humanidade assiste
ao alastramento endêmico da tortura.
O Concílio Vaticano II (1963-1965),
em sua Constituição Gaudium et Spes, declara que “tudo o que viola a
integridade da pessoa humana, como as mutilações, as torturas físicas
ou morais e as tentativas de dominação psicológica.., são
efetivamente dignas de censura, (pois) contradizem sobremaneira a
honra do Criador” (nº 284).
Em 1977, as Igrejas Protestantes e
Ortodoxas, através do Conselho Mundial de Igrejas (CMI) também
reprovaram, em importante declaração, a prática ignominiosa da
tortura:
“Dadas as trágicas dimensões da
tortura em nosso mundo, instamos as igrejas a usarem este ano do
trigésimo aniversário da Declaração Universal dos Direitos Humanos
como ocasião especial para tornarem públicas a prática, a
cumplicidade, e a propensão à tortura existentes em nossas nações. A
tortura é epidêmica, é gerada no escuro, no silêncio. Conclamamos as
igrejas a desmascararem a sua existência abertamente, a quebrarem o
silêncio, a revelarem as pessoas e as estruturas de nossas sociedades
responsáveis por estas violações dos direitos humanos que são os
mais desumanizantes”.
Nos últimos anos, a tortura foi
prática disseminada especialmente em países governados sob a égide
da Doutrina de Segurança Nacional, prática que subverte o objeto
essencial do Estado, que é o resguardo das liberdades individuais e a
promoção do bem comum. À luz da Segurança Nacional, a tortura não
decorre apenas do sadismo dos torturadores; ela é parte integrante
do sistema repressivo montado pelo Estado, a fim de sufocar os
direitos e as liberdades de seus opositores. É parte da estratégia de
manutenção do poder. Acreditando em sua eficácia e rapidez, as
investigações policiais e militares passaram a adotá-la como método
exclusivo de apuração de fatos considerados crimes contra a segurança
nacional. Para tanto, a tortura tornou-se matéria de estudo teórico e
prático em academias militares e em centros de instrução policial.
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