Tchékhov e o Teatro de Arte de Moscou
Jovan Hristic*
Comecemos por alguns fatos bem conhecidos. A 17 de Setembro de 1896, A Gaivota conhece um estrondoso insucesso em
São Petersburgo. É o terceiro drama de Tchékhov representado num teatro. O primeiro, Ivánov, teve um certo sucesso em Moscou, no ano de 1887. O segundo, O Selvagem, levado à cena em 1889, só teve três representações. Tchékhov não era, portanto, um autor dramático principiante.
A Gaivota não foi montada por amadores, nem por uma companhia fabricada às pressas num teatro comercial em São Petersburgo. Foi encenada no Teatro Imperial, por atores famosos na época. O papel de Nina Zaretchna era interpretado por Vera Kommissarjévskaia, uma jovem atriz que a seguir se tornará uma das mais célebres atrizes russas. Além disso, ao que parece, conseguiu ser a melhor Nina de todas as que pisaram os palcos da Rússia.
Se deixarmos de lado as consequências psicológicas que terá para o autor, este fracasso de A Gaivota é interessante por dois motivos. A acreditar nos testemunhos que nos restam, A Gaivota foi encenada como se encenava qualquer drama realista do fim do século XIX: ou seja, como um enredo de amores entre uma rapariga, um escritor famoso, amante de uma atriz famosa e mais velha, e o filho desta última que pretende, também ele, tornar-se escritor. Não admira que a peça tenha sido vaiada: A Gaivota constituía um passo decisivo rumo a uma dramaturgia absolutamente nova, para a qual o teatro da época não estava, é mais do que óbvio, ainda preparado. É preciso lembrar também que Tchékhov não era um autor particularmente apreciado nos meios intelectuais da Rússia.
Sobretudo no seio dos intelectuais de São Petersburgo, que se queriam liberais. A seu ver, ele não se comprometia suficientemente.
Encontramos em Tchékhov um testemunho acerca do modo como na altura se concebia o engajamento literário. No seu conto No Carrinho de Bebé, de 1883, o barão Donkel (Tchékhov gostava de colocar afirmações na boca da qual menos se esperavam) diz, a propósito de Turguéniev: “Ontem, fui expressamente buscar os Relatos de um Caçador à biblioteca; li-os duma ponta à outra e não encontrei nada de especial... Nem consciência de si, nem liberdade de imprensa... nem ideias de nenhuma espécie! E nem sequer se aprende nada sobre a caça!”. A crítica russa dos anos 80 e 90 do século XIX comparava frequentemente Tchékhov com Turguéniev: eram ambos considerados artistas inúteis à sociedade. É tudo isto
que devemos ter em conta quando falamos das relações entre Tchékhov e o Teatro de Arte de Moscou.
O Teatro de Arte de Moscou encenou A Gaivota dois anos mais tarde, com estreia a 17 de Dezembro de 1898. Foi o primeiro
sucesso de um teatro que acabara de ser fundado e, diga-se o que se disser acerca das relações com Tchékhov, uma coisa pelo menos é certa: com essa representação, um escritor encontrara finalmente o seu teatro e um teatro encontrara o seu escritor. O Teatro de Arte de Moscou estava pois fundado, como o antigo Khoudojestvienni opchedostoupni Teatr, sendo que o termo “opchedostoupni” (universalmente acessível) deve ser compreendido no sentido que atualmente atribuímos à palavra “popular”. O que tem grande relevância para o que vou dizer a seguir.
Podemos perguntar-nos se Stanislavski e Nemiróvitch-Dántchenko, fundadores e encenadores do Teatro de Arte, percebiam bem os dramas de Tchékhov. Neste ponto, as opiniões divergem, mesmo na Rússia soviética, onde a teoria idílica de um acordo perfeito entre o grande encenador Stanislavski e o grande escritor Tchékhov é, digamos, uma versão oficial. Assim, A. Roskine afirma, no seu estudo As Três Irmãs no Palco do Teatro de Arte, que Tchékhov e o Teatro de Arte “se encontraram no mesmo caminho, mas seguindo em direcções diferentes. Numa época em que o teatro de Stanislavski ia do pathos teatral para o realismo de todos os dias, Tchékhov, pelo seu lado, dirigia-se da vida de todos os dias para uma poesia e uma utilização mais livre da matéria da vida”.
Hoje, a maioria dos críticos subscreveriam a opinião de Roskine. Em todos os debates sobre Tchékhov, a seguinte constatação transformou-se num lugar-comum: o naturalismo de Stanislavski era demasiado estreito para abarcar a visão da vida humana com que nos deparamos nos dramas tchekhovianos. No entanto, as coisas não são tão simples como por vezes podem parecer. Por isso, convém recordar alguns outros fatos.
Antes de mais, Tchékhov estava longe de se sentir entusiasmado com as representações que vira das suas peças no Teatro de Arte. Só assistira à representação de A Gaivota na Primavera de 1899, quando os médicos o autorizaram a deixar Ialta para uma curta estada em Moscou. E, como escreve Stanislavski no seu livro A Minha Vida na Arte, “a cada fim de ato, Anton Pávlovitch subia ao palco e o seu rosto andava longe de refletir uma satisfação intensa”. Alguns dias depois da representação, Tchékhov escreve a Máximo Górki que “A Gaivota estava horrivelmente representada” e que Trigorin (papel desempenhado por Stanislavski) “percorria o palco a falar como um paralítico”. No conjunto “não está mal, achei interessante”, mas aqui e ali “não conseguia acreditar que fosse eu o autor”.
Quando, em 1900, o Teatro de Arte monta As Três Irmãs, Tchékhov escreve emocionado e como que ofegante a Olga Knipper: “Preciso ir assistir aos ensaios, preciso! Não posso deixar a Alexeev [Stanislavski] a responsabilidade de quatro papéis femininos, quatro jovens mulheres inteligentes, por muito grande que seja a minha confiança e a sua inteligência”. Mas o verdadeiro conflito rebenta em torno de O Cerejal. Tchékhov estava convencido de que tinha escrito uma comédia, e mesmo um vaudeville, quando o Teatro de Arte representava a peça como um drama. Assim, escreve ele a Olga Knipper (que então já era sua esposa): “Manifestamente, o Nemiróvitch e o Alexeev vêem algo na peça que lá não está e eu era capaz de jurar que não a leram atentamente”.
Todavia, os testemunhos não são concordantes. Uns dias depois de ver a representação de A Gaivota e de ter escrito a Górki que lhe custava a acreditar ser o autor da peça, Tchékhov escreve a Iordanov, médico de Taganrog, que “a representação foi excelente”. Claro que as declarações dos autores acerca das representações das suas próprias peças nem sempre devem ser tomadas à letra; mas isto mostra, em todo o caso, que as relações de Tchékhov com o Teatro de Arte não eram simples.
Embora teime em escrever que Alexeev e Nemiróvitch atraiçoam os seus dramas, não os confia a nenhum outro teatro; além disso, o seu período de criação mais intenso começa precisamente após o sucesso de A Gaivota no Teatro de Arte de Moscou: em menos de quatro anos, escreve dois dos seus dramas maiores, As Três Irmãs e O Cerejal. Até aí, as fases em que não escrevia para teatro eram muito mais longas. O que tende a provar que, apesar dos desacordos e dos mal-entendidos, Tchékhov sabia perfeitamente que o Teatro de Arte era a companhia que melhor podia interpretar os seus dramas e exprimir melhor o que distinguia a sua dramaturgia do drama realista clássico.
Obviamente que o Teatro de Arte tinha uma postura marcadamente naturalista e que Stanislavski gostava de sobrecarregar a encenação de detalhes que hoje podem parecer-nos ridículos. Assim, por exemplo, no início de A Gaivota – a acreditar num diário de bordo de Stanislavski – ouve-se uma série de sons destinados a fazer com que o espectador se sinta à beira de um lago rodeado de propriedades rurais: o canto de um bêbedo, o ladrar de um cão, o grasnar das rãs, o grito de um pássaro dos pântanos, os sinos de uma igreja, a queda de uma faísca, o ribombar de um trovão... Stanislavski prepara- se para oferecer ao público uma orgia de sons realistas semelhante, no segundo ato de O Cerejal; Tchékhov escreve-lhe ironicamente: “A colheita dos fenos teve lugar entre 20 e 25 de Junho; nesse período, as águas pararam de cantar e as
rãs também perderam o pio. Já só resta o verdelhão”.
No mesmo ato de O Cerejal, Stanislavski quer fazer passar um comboio ao fundo da cena. Tchékhov aceita o comboio, “se
o comboio puder passar sem fazer barulho”. No primeiro ato de O Tio Vânia, a personagem de Voinítski [Vânia] tem de usar uma espécie de rede de mosquiteiro na cabeça, enquanto as outras personagens devem estar sempre a dar palmadas na cara e nas mãos, a coçar-se, a fumar e bufar nuvens de fumo em seu redor para se protegerem dos insetos invasores. Graças a Nemiróvitch-Dántchenko, os mosquitos deixam de atormentar os heróis de Tchékhov, que podem finalmente entregar-se a tarefas mais importantes.
Por outro lado, com o seu gosto pelos efeitos e pela sobrecarga, Stanislavski arrastava por vezes os dramas tchekhovianos para o terreno do melodrama. Na encenação de A Gaivota, Trigorin era um dandy elegante, um grande sedutor melodramático, devastador dos corações femininos. Tchékhov lembrou a Stanislavski que o seu Trigorin usava umas calças aos quadrados e tinha um buraco na sola. Stanislavski confessa em A Minha Vida na Arte que precisou de vários anos para perceber o sentido da intervenção de Tchékhov: Trigorin é um medíocre e anda desajeitadamente vestido; a ingênua e provinciana Nina não se apaixona por um playboy irresistível, mas sim pela sua visão idealizada de um escritor famoso.
No quarto ato de As Três Irmãs, Stanislavski queria que carregassem com o cadáver em cena; isso provocou um verdadeiro
conflito com Tchékhov, que acabou por triunfar – o cadáver não apareceu em palco. O terceiro ato de O Cerejal também era encenado à maneira do melodrama por Stanislavski: uma Ranévskaia desesperada, um Gáev despreocupado, um Lopákhin grosseiro e fanfarrão que derrubava um candelabro, num gesto de teatralidade já caído em desuso.
Que poderíamos, hoje, censurar a Stanislavski? Decerto o fato de ter, no nosso entender, socializado (para não dizer politizado)
exageradamente os dramas de Tchékhov. Tornou-os muito mais comprometidos politicamente do que o são, transformou-os não apenas numa crítica aberta da sociedade como numa espécie de melodramas sociais repletos de ideias progressistas. Nos dramas de Tchékhov, Stanislavski viu sobretudo indivíduos excepcionais, confrontados com uma vida quotidiana sufocante, com uma realidade brutal aniquiladora dos bons sentimentos e das ambições nobres; homens de valor, vítimas de um meio que não permite a plena realização das suas aspirações. E, em O Cerejal, a visão de uma vida nova que advirá e já emerge nos escombros do velho mundo.
Numa palavra, dir-se-ia que Stanislavski ignorou completamente todas as ambiguidades e as nuances que hoje descobrimos nos dramas de Tchékhov, tudo aquilo que o incitou – e ele sabia
muito bem o que fazia – a chamar “comédias” a A Gaivota e a O Cerejal. Se é verdade que os heróis tchekhovianos se encontram minados por uma vida cinzenta e monótona e por uma sociedade estéril, não é menos certo que Voinítski nunca teria chegado a ser um Schopenhauer ou um Dostoievski, assim como o mano das três irmãs nunca teria chegado a ser um sábio; as questões levantadas por estes dramas não dizem respeito às qualidades de uma determinada sociedade, são inequivocamente problemas da existência humana.
Tudo isto é verdade. Há no entanto outra coisa que não deve ser negligenciada. Com efeito, não há dúvida que Stanislavski
e Nemiróvitch-Dántchenko encontraram a verdadeira chave do jogo dos dramas tchekhovianos. Durante os ensaios de A Gaivota, no Teatro Imperial de São Petersburgo, Tchékhov dizia que, em cena, não se devia representar, devia-se viver. Ora, isso tornar-se-á precisamente a ideia-chave da representação das peças no Teatro de Arte, o imperativo do método seguido por Stanislavski nas suas encenações. Claro que o “viver em cena” de Tchékhov só pode ser compreendido num contexto histórico perfeitamente preciso; o que o Teatro de Arte pretendia era descobrir umas tantas verdades psicológicas e outros tantos valores humanos que não podiam ser expressos pelo velho teatro.
Na maneira como Stanislavski encenava Tchékhov, hoje vemos um naturalismo psicológico e cênico disseminado numa infinidade de pormenores que já não se nos afiguram indispensáveis. E os tempos de pausa, demasiado longos, parecem-nos lentidões inadmissíveis mais do que propriamente a expressão eficaz de emoções profundas.
Porém, acho que esta maneira de representar, com todos os seus limites, hoje evidentes, fez precisamente compreender, pelo menos em parte, a verdadeira natureza da dramaturgia de Tchékhov.
Também não há dúvida de que o naturalismo do Teatro de Arte se revelou um quadro demasiado estreito para os dramas tchekhovianos, em que a imagem da vida não passa de um primeiro nível de leitura, um princípio e de modo nenhum um fim. Mas não é menos certo que, nos finais do século XIX, o teatro naturalista era o único teatro que discutia seriamente o homem, a sua vida e os seus valores. Os dramas de Tchékhov não eram bem compreendidos nesse teatro, mas convém não esquecer que no teatro que precedeu o naturalismo, e contra o qual este foi uma reação inevitável, o eram ainda menos.
Por último, as representações teatrais não se fazem no espaço vazio da análise literária ou estética, fazem-se no espaço que aqueles que vão ao teatro esperam. O Teatro de Arte fora fundado com a intenção de ser um teatro popular que oferecesse aos espectadores não apenas uma imagem mas também uma crítica da vida. Uma das primeiras peças que Stanislavski e Nemiróvitch-Dántchenko tinham inscrito no seu repertório era Hanneles Himmelfahrt, de Gerhart Hauptmann, que não chegou a estrear-se por ter sido proibida pela censura. Se A Gaivota de Tchékhov entrou para o repertório do Teatro de Arte, foi porque Nemiróvitch-Dántchenko achou que “nela batia a pulsação da vida russa”. De resto, teriam os dramas de Tchékhov podido ser diversamente encenados, num clima em que a necessidade de mudanças sociais radicais roçava a explosão?
Se hoje criticamos o naturalismo do Teatro de Arte e o seu desejo de nos mostrar os dramas de Tchékhov como sendo mais engajados do que realmente são – mediante uma espécie de simplificação da sua dramaturgia, que todavia contém verdades mais profundas e mais importantes –, não devemos perder de vista que, na época, um Tchékhov diferente, mais complexo, mais irônico e mais ambíguo, pura e simplesmente não teria sido percebido. E é bem possível que tivesse sido vaiado, como foi vaiado o Tchékhov melodramático de São Petersburgo, em 1896.
Atualmente, vemos outra coisa em Tchékhov e julgamos ter razão. Em O Cerejal, a cerejeira tornou-se para nós um símbolo, tal como o armário centenário ao qual Gáev dirige o seu célebre discurso. Mas o Teatro de Arte representava os dramas tchekhovianos numa época em que nem a cerejeira nem o armário eram puros símbolos, já que se tratavam de realidades palpáveis: todos os dias se vendiam cerejeiras, tal como centenas de velhos armários. Não será inútil pois recordar as palavras de T.S. Eliot: “A propósito de um escritor tão grande como Shakespeare, provavelmente nunca teremos razão; por conseguinte, talvez seja preciso mudar, de vez em quando, a nossa maneira de não termos razão”.
* “Tchekhov et le Théâtre d’Art de Moscou”. Théâtre en Europe. Nº 2 (Avr. 1984). p. 26-30.
Trad. Regina Guimarães.
Publicado em:
O Tio Vânia: [Programa]. Porto: Teatro Nacional São João, 2005. (Cadernos Tchékhov; vol. 1
quinta-feira, 16 de fevereiro de 2017
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