quarta-feira, 27 de abril de 2016

Teatro/CRÍTICA

"Memórias de Adriano"

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Ótima versão de obra-prima



Lionel Fischer



Pouco antes de morrer, o Imperador Adriano - senhor absoluto dos territórios romanos entre 117 e 138 d.C. - escreve uma carta-testamento para o jovem Marco Aurélio, que o sucederá no trono. Nela, Adriano relembra a relação de afeto com a mulher do imperador Trajano, Plotina, as campanhas militares, as viagens à Ásia Menor, a paixão pela caça, as discussões filosóficas travadas com os principais pensadores de seu tempo e seu amor platônico pelo jovem grego Antínoo, que se matara no auge de sua beleza. A partir desta perda, ele se interroga sobre o destino da humanidade, a precariedade da vida e a inevitabilidade da morte.

Estes são, em resumo, os principais temas abordados em "Memórias de Adriano", por muitos considerado a obra-prima da escritora Marguerite Yoourcenar (1903-1987). Thereza Falcão assina a adaptação dramatúrgica do romance, cabendo a Inez Viana a direção do espetáculo, em cartaz na Sala Multiuso do Espaço Sesc. O monólogo é interpretado por Luciano Chirolli.

A grande invenção da escritora reside na saída encontrada (a autobiografia de Adriano) para contar detalhes de todo um período histórico por meio de uma narrativa próxima, não raro muito emocionada, centrada em uma das mais vigorosas personalidades do mundo romano. E o grande mérito de Thereza Falcão foi o de ter conseguido sintetizar algumas das questões mais essenciais do livro, tarefa sem dúvida meritória sobretudo quando levamos em conta que o romance tem 359 páginas e o espetáculo dura cerca de 60 minutos.

Vindo de ótima temporada em São Paulo, a montagem tem por cenário apenas uma banheira, na qual o personagem está imerso ao proferir suas primeiras falas - estas, assim como todas as outras, são dirigidas diretamente à plateia. Mais adiante, o figurino de época (belíssimo, por sinal) é substituído por um terno de tom neutro, e o personagem se vale de um microfone para continuar narrando sua história, sempre impregnada de pertinentes, agudas, sensíveis e eventualmente irônicas reflexões. Esta transformação de vestimenta me parece querer expressar a convicção da encenadora no tocante à atualidade dos pensamentos de Adriano, o que certamente não merece nenhum reparo. 

Com relação à dinâmica cênica, creio já ter ficado implícito que esta é extremamente despojada e sabiamente centrada na performance do ator. Neste sentido, o trabalho de Inez Viana é irretocável, já que Luciano Chirolli exibe atuação irrepreensível, tanto nas passagens mais emotivas quanto naquelas em que o personagem empreende as já mencionadas reflexões. Possuidor de ótima voz, forte presença cênica e grande carisma, Chirolli apresenta um dos melhores desempenhos da atual temporada.

Na equipe técnica, Marcelo H, presente em cena, presta excelente contribuição como músico. Aurora dos Campos responde por instigante cenografia, estruturada basicamente em cima de um painel ao fundo que me pareceu exibir uma profusão de radiografias - se é isto mesmo, a ideia talvez tenha sido a de sugerir a finitude da matéria, mas não a das ideias. Tomás Ribas ilumina a cena com sobriedade, sendo excelentes o figurino de Juliana Nicolay e a trilha sonora de João Callado e Marcello H, assim como a preparação corporal de Márcia Rubin.

MEMÓRIAS DE ADRIANO - Texto de Marguerite Yourcenar. Adaptação de Thereza Falcão. Direção de Inez Viana. Com Luciano Chirolli. Sala Multiuso do Espaço Sesc. Sexta e sábado, 19h. Domingo, 18h.





sexta-feira, 22 de abril de 2016

Teatro/CRÍTICA

"Os sonhadores"

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Belíssimo casamento de dramaturgias



Lionel Fischer



No início de 1968, Paris começa a ser sacudida por protestos, inicialmente pacíficos, decorrentes da decisão do governo francês de demitir Henri Langlois da direção da cinemateca. Mas no mês de maio tais protestos assumem imprevista dimensão, e o que parecia restrito ao âmbito cinematográfico passa a abarcar, dentre outras, reivindicações referentes às leis trabalhistas e ao universo escolar e acadêmico. 

Ao mesmo tempo, os gêmeos de 19 anos Theo e Isabelle, aproveitando a ausência dos pais, convidam o estudante norte-americano Matthew, de 20 anos, que conheceram na cinemateca, para se hospedar com eles. Cinéfilos convictos, os três passam a testar seus conhecimentos sobre cinema, além de promoveram jogos sexuais e mentais com o objetivo de testar até que ponto cada um deles está disposto a avançar.

Eis, em resumo, o enredo de "Os sonhadores", em cartaz no Oi Futuro de Ipanema. Baseado no romance "The dreamers", do escocês Gilbert Adair, o texto tem dramaturgia assinada por Diogo Liberano, cabendo a direção do espetáculo a Vinicius Arneiro. No elenco, Bernardo Marinho (Matthew), Igor Angelkorte (Theo) e Juliana David (Isabelle). 

Como se sabe, o romance de Gilbert Adair, lançado em 1988, gerou o belo e algo polêmico filme homônimo de Bernando Bertolucci, em 2003. E agora chegamos à sua transposição para o teatro. E da mesma forma que não caberiam comparações entre o romance e o filme, tão díspares são as linguagens, o mesmo se aplica a esta adaptação teatral. Resta apenas saber se o trabalho efetuado por Liberano, com a colaboração de Dominique Arantes, materializa as principais questões propostas pela obra literária. Em minha opinião sim, como se verá mais adiante. Mas antes me permito algumas considerações sobre o contexto em questão.

Um dos aspectos da obra que me parece extremamente interessante diz respeito à contradição de Theo. Se por um lado ele exibe um discurso revolucionário aparentemente irretocável, por outro, como observa Matthew, jamais se propõe a se juntar aos manifestantes nas turbulentas ruas. Ou seja: como acontece em todas as revoluções, há os que possuem uma inteligência privilegiada e se contentam em tecer conjecturas sobre os fatos, enquanto outros, tendo ou não uma inteligência privilegiada, assumem todos os riscos. Theo, portanto, padece da mais abjeta das alienações, pois sabe exatamente o que está ocorrendo e ao mesmo tempo não move uma palha para alterar uma realidade que supostamente execra.

Outra questão interessante diz respeito ao que acontece à medida em que aumentam as disputas entre Theo e Matthew pela atenção de Isabelle. Mais crucial do que as tensões que se acumulam é o progressivo descaso do trio pelo apartamento em que estão, que aos poucos vai se convertendo em um chiqueiro, potente metáfora da regressão moral e emocional dos jovens. E não custa nada recordar que a França só não se emporcalhou definitivamente graças à coragem, lucidez e determinação de uma juventude que exigiu inadiáveis reformas e foi capaz de contagiar praticamente todos os segmentos da sociedade. 

Com relação ao trabalho de Diogo Liberano, acho impossível dissociá-lo do espetáculo - é até provável que texto e montagem tenham sido pensados simultaneamente. Sim, pois a dramaturgia propriamente dita está completamente atrelada à, digamos assim, dramaturgia das imagens e dos movimentos. E imagens e movimentos também surgem acopladas a uma incrível variedade de sons, tanto internos quanto vindos do exterior. 

Assim, por achar completamente descabido fragmentar minha análise, parabenizo com o mesmo e irrestrito entusiasmo as criações de Liberano, do encenador Vinicius Arneiro e de Tato Taborda, este último responsável por uma das mais brilhantes direções musicais dos últimos anos. E o mesmo brilho se faz presente nas ótimas atuações de Bernardo Marinho, Igor Angelkorte e Juliana David, assim como nas preciosas colaborações de Aurora dos Campos (cenografia), Allan Ribeiro (direção de imagens), Graziela Bastos (figurinos) e Rodrigo Belay (iluminação).

OS SONHADORES - Dramaturgia de Diogo Liberano. Direção de Vinicius Arneiro. Com Bernardo Marinho, Igor Angelkorte e Juliana David. Oi Futuro de Ipanema. Quinta a domingo, 20h.



quinta-feira, 7 de abril de 2016

Teatro/CRÍTICA

"Myrna sou eu - Consultório sentimental de Nelson Rodrigues"

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Hilária e apaixonante correspondência



Lionel Fischer



A coluna diária "Myrna Escreve", publicada durante seis meses (de 21 de março a 5 outubro de 1949) no jornal carioca Diário da Noite, provocou furor. Consta que milhares de cartas chegavam todos os dias à redação, escritas por leitoras (e eventualmente por leitores) ávidas por conselhos sobre suas relações amorosas. Ninguém sabia quem era a dedicada senhora - representada no jornal pelo desenho de uma mulher com a tarja negra da Justiça nos olhos -, muitas vezes irreverente, mas sempre solícita. Mas Nelson Rodrigues (1912-1980) tinha pleno conhecimento de quem se tratava: era ele próprio.

Transformadas em correspondência que a dita Myrna responde em um programa radiofônico, "Myrna sou eu - Consultório sentimental de Nelson Rodrigues" chega ao Rio de Janeiro (Teatro Poeira) após várias temporadas em São Paulo, sendo a primeira em 2013. Elias Andreato responde pela adaptação, roteiro e direção do espetáculo, que tem interpretação a cargo de Nilton Bicudo. 

"Se cada um soubesse o que o outro faz dentro de quatro paredes, ninguém se cumprimentava". Esta é apenas uma dentre as dezenas de frases memoráveis que constam do espetáculo, e que explicitam a extraordinária capacidade do autor de mergulhar fundo na condição humana. E embora o texto seja engraçado, seria um equívoco atribuir seu mérito apenas ao humor que lhe é inerente, pois isso equivaleria a banalizar observações da mais alta perspicácia. E se a plateia ri muito, como pude constatar, é certamente porque se reconhece em muitas das situações mencionadas, daí a enorme empatia que o espetáculo provoca. 

Impondo à cena uma dinâmica simples e despojada, Elias Andreato fez clara opção pelo que realmente interessa: o texto e o trabalho do ator. Na pele de Myrna, Nilton Bicudo exibe performance deliciosa, cujo principal mérito reside na capacidade do intérprete de viver intensamente as emoções em causa, sem jamais enveredar para uma patética tentativa de ser engraçado. Possuidor de ótima voz, esmerado trabalho corporal, forte presença cênica e grande carisma, Nilton Bicudo confere a Myrna a dimensão que a personagem merece.

Na equipe técnica, considero de ótimo nível as colaborações de todos os profissionais envolvidos nesta deliciosa empreitada teatral - Elias Andreato (adaptação, roteiro e cenografia), Jonatan Harold (trilha sonora composta), Fabio Namatame (figurino), Allex Antonio (visagismo) e Adriano Tosta (iluminação). 

MYRNA SOU EU - CONSULTÓRIO SENTIMENTAL DE NELSON RODRIGUES - Texto de Nelson Rodrigues. Adaptação, roteiro e direção de Elias Andreato. Com Nilton Bicudo. teatro Poeira. Terças e quartas, 21h.  


segunda-feira, 4 de abril de 2016

Teatro/CRÍTICA

"Entre corvos"

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Inesquecível encontro no Sesc



Lionel Fischer



Como se define um gênio? Tal definição é possível? Certamente muitos tentaram, mas creio que ninguém foi tão objetivo e perspicaz quanto Harold Bloom em seu livro "Gênio", no qual analisa a produção literária, poética e dramatúrgica daqueles que considera os 100 autores mais criativos da história da literatura. Diz ele o seguinte: "Ele ou ela alarga a nossa consciência? E como isso se dá? Sugiro um teste simples, mas eficaz: fora o aspecto do entretenimento, a minha conscientização foi aguçada? Expandiu-se a minha consciência, tornou-se mais esclarecida? Se não, deparei-me com talento, e não com gênio. Aquilo que há de melhor e de primordial em mim não terá sido tocado".

Antonin Artaud (1896-1948) e Vincent Van Gogh (1853-1890) não constam da relação de Bloom, já que o primeiro não produziu obra ficcional e sim ensaística, e o segundo era pintor. Mas não creio que a genialidade de ambos possa ser questionada, assim como seu evidente parentesco: os dois foram vítimas de crudelíssimo e permanente processo de exclusão na época em que viveram, certamente porque expuseram as chagas mais pútridas de uma sociedade que pretendia deter o monopólio de todas as virtudes.

Tendo como ponto de partida o ensaio escrito por Artaud , em 1947 - "Van Gogh - O suicidado da Sociedade", o presente texto, "Entre corvos", leva a assinatura de Ary Coslov e Marcelo Aquino, que nele incluíram citações de Alfred Jarry, Arthur Adamov, Samuel Beckett, Edgar Allan Poe e Franz Kafka, dentre outros. Em cartaz na Sala Mezanino do Espaço Sesc, o espetáculo tem direção de Coslov e interpretação de Aquino.

"Um ator se prepara para interpretar Artaud no teatro, mas ele já não consegue distinguir os limites entre arte e vida, realidade e ficção, insanidade e razão". Esta breve sinopse, extraída do ótimo release que me foi enviado, sintetiza a premissa essencial do texto e do espetáculo: propor ao espectador uma momentânea renúncia a tudo que considera indiscutível e que passe a encarar a dúvida não como algo inevitavelmente atrelado à angústia, mas como uma real possibilidade de transformação. 

O não saber, no presente caso, constitui o ponto de partida para o verdadeiro conhecimento, que nada tem a ver com a tácita aceitação de conceitos e normas estabelecidas, mas que advém de uma necessidade interna que precisa ser honestamente conhecida e inevitavelmente saciada. Assim, quem se dispuser a entrar no jogo proposto pelo texto e pelo espetáculo haverá de deixar o teatro como eu o deixei: profundamente agradecido pela possibilidade que me foi ofertada de alargar minha consciência a respeito do mundo e de mim mesmo.

Texto belíssimo, "Entre corvos" recebeu esplêndida versão cênica de Ary Coslov. Impondo à montagem uma dinâmica em total sintonia com os conteúdos propostos, impregnada de uma fisicalidade dilacerada e intempestiva, repleta de soluções da mais alta expressividade, ao encenador cabe o mérito suplementar de haver extraído deslumbrante atuação de Marcelo Aquino. Este, na melhor performance de sua carreira, exibe não apenas preciosos recursos técnicos, mas uma capacidade de entrega tão visceral que o torna digno de encarnar um homem que da vida só conheceu o seu lado mais amargo. 

Na equipe técnica, Aurélio de Simoni assina uma das melhores iluminações de sua esplendorosa carreira, sempre sublinhando e reforçando, com imensa sensibilidade, todas as emoções em causa. Ana Vitória responde por uma das direções de movimento mais expressivas que já assisti - é incrível a capacidade da coreógrafa e bailarina de converter em gestos e movimentos o que se passa na atormentada alma do protagonista. Sem dúvida, um trabalho inesquecível. A mesma eficiência se faz presente nas contribuições de Igor Verde (vídeomaker), Ary Coslov (trilha sonora, cenário e figurino), Gabriel Fomm (mixagem da trilha e sonoplastia) e Alexandre da Silva Mattos e Emanuel Isaías Perez Barroso (animações). E finalmente, um aplauso entusiasmado para a precisão e sintonia de Anderson Peixoto (operação de luz) e Gabriel Lessa (operação de som e projeção).

ENTRE CORVOS - Dramaturgia de Ary Coslov e Marcelo Aquino. Direção de Ary Coslov. Atuação de Marcelo Aquino. Sala Mezanino do Espaço Sesc. Quinta a sábado, 21h. Domingo, 20h.