sexta-feira, 31 de julho de 2009

Sinto necessidade da forma dramática

Federico Garcia Lorca


Adotei o gênero teatral porque sinto necessidade de me expressar na forma dramática. Mas não abandono por isso a prática da poesia pura, que pode ser encontrada também na peça teatral e no poema simplesmente.

O teatro sempre foi a minha vocação. Tenho dado a ele muitas horas de minha vida. A minha concepção de teatro é pessoal e, até certo ponto, combativa. O teatro é a poesia que sai do livro e se faz humana e, ao acontecer isso, ela fala e grita, chora e se desespera.

O teatro tem necessidade que os personagens tenham uma roupagem de poesia que deixe, ao mesmo tempo, ver seus ossos, seu sangue. Devem ser tão humanos, tão terrivelmente trágicos, presos à vida e ao quotidiano com tal força que possam desvendar suas traições, refletir suas dores e que de seus lábios brotem as orgulhosas palavras carregadas de amor ou de desgosto.

O que não pode mais continuar é a sobrevivência dos personagens dramáticos que, atualmente, sobem à cena levados pela mão de seus autores. Personagens ocos, totalmente vazios, nos quais se pode ver, através do colete, um relógio parado, um postiço ou o lixo de velhos sótãos.

Hoje, na Espanha, a maioria dos autores e dos atores ocupam uma zona intermediária. Escrevem teatro para as poltronas, esquecendo-se das galerias e das torrinhas. Escrever para a platéia de escolhidos é o que pode haver de mais triste no mundo.

O público que vai a um espetáculo sente-se frustrado, o público virgem, o público simples - o povo - não compreende como lhe venham falar de problemas que ele despreza, em seu meio. Não se pode mais fazer esse tipo de teatro que nada mais é do que prolongar uma diva através do tempo, ou um jeune premier apesar de sua esclerose.

A verdade do teatro é um problema religioso e econômico-social. O mundo está imobilizado diante da fome que extermina os povos. Enquanto houver esse desequilíbrio, o mundo não poderá raciocinar. Vi isso com meus próprios olhos.

Dois homens que se vão à margem de um rio. Um é rico, o outro, pobre. Um com a barriga cheia e o outro que enche o ar com seus bocejos. E o rico exclama: "Oh, que lindo barco vai passando! Veja essa flor na margem do rio!". O pobre só pode balbuciar: "Estou com fome, não vejo nada". Naturalmente. No dia em que a fome desaparecer, haverá no mundo a maior explosão espiritual que a humanidade tenha jamais visto. É difícil imaginar a alegria que brotará nesse dia.

Teatro/CRÍTICA

"Viver sem tempos mortos"

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Obrigado, Fernanda

Lionel Fischer


Em certa ocasião, indagado a respeito do espetáculo que mais o impressionara, Peter Brook - o maior encenador vivo - não relutou em afirmar que o mesmo se dera num sótão em Hamburgo, durante a Segunda Guerra Mundial, sem o consentimento das autoridades e para uma platéia de apenas 40 pessoas. Em cena, um único ator. Como cenário, uma única cadeira. E apenas uma fonte de luz. Pois bem: utilizando tão poucos elementos, Brook se confessou extasiado diante da versão teatral de "Crime e castigo", de Dostoievski, talvez a mais brilhante e complexa obra daquele que consideramos o maior escritor de todos os tempos.

Mas o que tem a ver o que acaba de ser dito com o presente espetáculo? No mínimo, tudo. Ou quase tudo. É certo que "Viver sem tempos mortos" não está em cartaz num sótão, não está proibido pela censura, a Segunda Guerra Mundial já terminou, mas ainda assim algumas coincidências não deixam de ser curiosas. No palco do Oi Futuro, apenas uma atriz. Como cenografia, uma única cadeira. E também uma única fonte luminosa. E embora não tenha tido o privilégio de testemunhar a experiência que Brook descreve como inesquecível, tenho agora a oportunidade de assistir a algo que, sem dúvida, também deixaria encantado o citado encenador.

Tendo como matéria-prima cartas e apontamentos autobiográficos da escritora, pensadora e ensaísta francesa Simone de Beauvoir, "Viver sem tempos mortos" faculta ao público pelo menos dois fantásticos privilégios: entrar em contato com pensamentos e reflexões de uma das mulheres mais extraordinárias do século XX e também com uma das atrizes mais brilhantes que o mundo já conheceu: Fernanda Montenegro, aqui dirigida por Felipe Hirsch e tendo Daniela Thomas assinando a direção de arte.

Para os espectadores que desconhecem a obra de Simone de Beauvoir - aí incluíndo-se sua vasta correspondência com o grande amor de sua vida, Jean-Paul Sartre -, estes certamente deixarão o teatro ávidos por consumí-la. E para os já familiarizados, aí tudo se resume à apreciação de um singular fenômeno: o poder avassalador que o teatro possui quando ocorre um verdadeiro encontro entre quem faz e quem assiste.

A esta altura de sua magnífica trajetória artística, Fernanda Montenegro já esgotou de há muito todos os adjetivos que a ela pudessem ser endereçados. Portanto, a eles renunciarei, limitando-me "apenas" a transmitir aos leitores a sensação que tive ao longo do espetáculo. Os pensamentos e reflexões da autora, associados à forma de Fernanda interpretá-los, produziu em mim uma espécie de alargamento de minha consciência, não apenas no que diz respeito ao mundo exterior, mas sobretudo ao que me é inerente, induzindo-me a descobertas que julgava improváveis. E tenho a impressão de que ao menos uma grande parte do público deixará o teatro com uma sensação parecida, com a qual, queira ou não, terá de lidar.

Mais do que óbvios elogios, portanto, manifestamos aqui nossa gratidão por uma noite simplesmente inesquecível, para a qual também em muito contribuíram a extrema sensibilidade de Felipe Hirsch na direção, o mesmo aplicando-se a Daniela Thomas na direção de arte, a Beto Bruel em sua opção por uma única fonte de luz - a outra já estava materializada na cena - e a irrepreensível pesquisa e compilação realizada por Newton Goldman.

VIVER SEM TEMPOS MORTOS - Texto de Simone de Beauvoir. Direção de Felipe Hirsch. Com Fernanda Montenegro. Oi Futuro. Sexta, sábado e domingo às 19h30.

quinta-feira, 30 de julho de 2009

Teatro na Educação

Maria Clara Machado


Neste artigo vamos abordar dois aspectos do teatro na educação: o teatro-jogo e o teatro-espetáclo. Ambos com a mesma finalidade: desenvolvimento da criatividade. Facilitar este desenvolvimento é a tarefa de todo bom educador. Ora, a educação, ou melhor, a instrução que vínhamos adotando, até bem pouco tempo, não fazia outra coisa a não ser cercear a capacidade de criar. Pensava-se que para bem integrar um homem na sociedade bastava ensiná-lo a ser igual a todos os outros. Não está muito longe a época em que, nas aulas de desenho, o aluno era obrigado a copiar cabeças de estátuas gregas ou figuras geométricas...Aquele que tivesse vontade de pintar uma árvore ou apenas borrar o papel era reprimido e se sentia marginalizado, diferente.

Esta diferença, no entanto, é o que o fazia ÚNICO, diferente, no meio de outros diferentes, para que cada um sozinho pudesse procurar a própria solução, hoje para o desenho de uma árvore, amanhã para o próprio desenvolvimento. Entregar à criança soluções prontas é desestimulá-la a criar. Criar é uma atividade permanente, que não dá diploma mas uma sensação de constante caminhar para uma plenitude de existência.

Garanto que muita criança gostaria de descobrir um dia que dois e dois fazem cinco, só pelo prazer de descobrir sozinha uma coisa única. Educar não é fazer a criança abrir os olhos para um determinado saber, pré-estabelecido pelo professor, com soluções prontas que o aluno terá que forçosamente aceitar junto com todos os outros para melhor funcionamento da sociedade e para o seu próprio bem.

Educar É FAZER A CRIANÇA ABRIR OS OLHOS PARA O MUNDO QUE A RODEIA e dar-lhe a possibilidade de se maravilhar com cada nova descoberta que ela mesma vai fazendo do mundo que a cerca. Esta capacidade, hoje, só o poeta conserva. O que é uma pena! Sensível para o mundo que descobre, a criança será também sensível para os outros homens, para as ciências, para as artes, para o prazer de viver. Despertar no aluno a NECESSIDADE de uma atividade criadora é a grande tarefa do professor, é chamar a atenção do aluno sobre sua capacidade de inventar e transformar.


O JOGO DRAMÁTICO

Diga a uma criança: "Você hoje é o vento" ou "Faça uma árvore nascendo da terra e depois comece a conversar com seu colega".

- Conversa de que?
- Conversa de gente com árvore.

A criança entra logo no jogo. Não discute se árvore fala, se vento é "fazível", se...se...Ela começa a odiar. E o professor, observando-a, também se enriquece.

A aplicação do jogo dramático na terapêutica é assunto para psicólogos, mas é fácil verificar o que o jogo mostra das necessidades psicológicas da criança: desinbição, liberação da agressividade mal controlada, da falta de amor e da ânsia de viver! "Fazendo de conta", a criança está muito mais perto da verdade do que verbalizando seus problemas com uma psicóloga.

Da liberação da agressividade através do jogo dramático, tenho um exemplo esclarecedor entre crianças de 10, 11 e 12 anos. A monitora pede às crianças para inventarem uma história de índios e representarem. As crianças se dividem em vários grupos e começam a trabalhar. À disposição delas estão um malão com roupas velhas e material de cena: tambores, chapéus, espingardas, panelas etc; 15 minutos depois, começa a representação.

Elas geralmente fazem questão de dizer que estão fazendo teatro. O palco lhes atrai muito. São artistas e querem ser como os grandes da televisão. O fato de saberem que estão representando as deixa ainda mais livres para expressarem o que estão sentindo. Isto, aparentemente, as distancia de seus próprios problemas deixando a imaginação trabalhar e o inconsciente agir.

Muitos grupos mostraram histórias de índios, como cantorias, quase sempre baseados no que aprendiam na escola. Um dos grupos, porém, resolve apresentar uma tribo de antropófagos que se deliciavam num banquete em que comiam seus pais! A monitora, indecisa: será educativo? Deixo continuar o jogo livremente para ver no que dá ou interrompo e dou uma lição de moral sobre o respeito devido aos pais, etc. etc.?

A monitora preferiu aguardar o final. As crianças que assistiam ao jogo estavam também se deleitando. Ao terminar o jogo tudo voltou ao normal e os "índios antropófagos" e seu pequeno público, entusiasmado, estavam felizes por terem feito uma "brincadeira" de teatro. A monitora conversou sobre a disciplina no jogo, a maneira teatral que elas estavam representando, etc., e observou por si mesma que era melhor que as crianças jogassem numa história de faz-de-conta a agressividade contida e natural do que se tornassem adolescentes recalcados, impossibilitados de extravasarem seus sentimentos escondidos. É claro que nenhuma daquelas crianças queria seus pais mortos ou maltratados, apenas o jogo dramático foi uma maneira simbólica de liberar a agressividade natural mas proibida em relação aos pais.

Escolhendo temas sobre pais e mestres, as crianças descarregaram ressentimentos que o sentimento de culpa escondia e que o jogo libera porque é apenas "uma brincadeira de teatro". No teatro o aluno que faz papéis de autoridade geralmente leva enormes surras, ou sermões. Um grupo de meninas, uma vez, criou numa improvisação um bando de avós que resolveu assaltar um banco porque não tinha nada para fazer. No final do assalto as "velhinhas" se arrependeram e resolveram fazer alguma coisa na vida, para não assaltarem mais bancos, então abrem uma casa de flores!

Há também os jogos em que a criança transborda sentimentos de plenitude, de amor e de camaradagem. A redescoberta da natureza através de sua identificação com os elementos ou com os animais, nos jogos dramáticos, dá à criança a oportunidade de reavivar a sensibilidade, redescobrindo sensações perdidas.

Muito importante, na aplicação do jogo dramático, é a solução pessoal. Em cada situação dada, em cada história, mesmo com a solução pré-estabelecida pelo monitor, a criança deve encontrar a própria maneira de ver e sentir.

Para desempenhar bem o jogo dramático a criança tem que aprender a observar. Ao repetir a situação imaginada, ela é solicitada a VER. O mundo da criança vai se alargar, aguçando a observação: árvores, animais, mar, rio, vento, chuva e estrelas entram no pequeno grande universo da criança. Daí para a vida cotidiana é um passo: a rua, a cidade, os homens e seus sentimentos, tudo é material para a recriação, no palco, de uma situação dramática.

A aplicação do jogo dramático no estudo é de valor incalculável. Pode ser aplicado no estudo da música e até mesmo da ciência. Há alguns anos a CASES (MEC) tentou uma experiência fascinante nas escolas do Estado da Guanabara. Foi aberto um concurso entre as escolas, cada uma teria que apresentar uma dramatização sobre "Entradas e Bandeiras". Virginia Valli, uma das examinadoras do concurso, concluiu:

"A finalidade do concurso - contribuir para o conhecimento do fato histórico - repercutiu intimamente nos estudantes de nível primário, removendo a indiferença pelo estudo do tema, sendo tal finalidade plenamente atingida. Apesar das falhas observadas, os resultados levam a recomendar a dramatização espontânea como método a ser usado no ensino da matéria pelo vivo interesse demonstrado pela criança pela 'brincadeira de bandeirante', além de haver facilitado o trabalho da professora quanto à pesquisa do conhecimento e outras atividades. Houve oportunidade de verificar de que maneira o fato histórico repercutiu no espírito da criança, levando-a a sentir e incorporá-lo à sua experiência".

Jogando-se inteira, numa representação dramática, a criança está liberando anseios, fantasias, frustrações, desejos e sua visão do mundo.

Mas é muito importante que a dramatização espontânea seja uma atividade somente das crianças, sem se visar a um espetáculo ou qualquer forma de exibicionismo. Expor a criança à crítica ou mesmo aos aplausos de uma platéia seria desvirtuar o jogo, que deixaria de ser espontâneo. Uma representaçlão teatral com público, feita por crianças, não passa de uma imitação mal feita de espetáculos de adultos, onde o papel decorado é dito de uma maneira formal, (ensaiada pela professora) e limitado pelo texto e pela marcação.

Além de cercear a criatividade infantil o espetáculo teatral decorado, visando uma platéia sobretudo formada de pais complacentes, é uma escola de exibicionismo, uma competição desleal entre os pequenos atores. Geralmente os melhores papéis são dados (é justo, desde que vise ao espetáculo) aos mais desinibidos, isto é, aos mais "exibidos". O tímido e o retraído, o que talvez mais necessite do jogo dramático, é abandonado em nome do sucesso do espetáculo. E resta ainda o problema das roupas caras que nem todos os alunos podem pagar, criando-se a casta dos que podem representar porque tem uma situação econômica melhor.

A criança tem a tendência normal de imitar espetáculos de televisão, cinema ou teatro. Isto não tem importância. Deixemos que ela mesma tenha sua concepção "de como fazer", que ela mesma tente imitar o que viu e gostou. Imitando, sem o auxílio da professora, ela estará ainda criando. Os trechos que mais a impressionaram, os atores com os quais ela mais se identificou são transportados para a cena numa visão infantil e pessoal idealizada. O resultado, muitas vezes, é desastroso do ponto de vista artístico, porém é uma maneira saudável de deixar a criança livre para extravasar sua maneira de perceber o mundo.

O teatro infantil do TABLADO é uma fonte constante de inspiração para as crianças. Cada peça montada pelo grupo é assunto para todo um ano de atividades de jogos dramáticos entre as crianças. Em 1971, não havia atividade dramática entre os alunos dos cursos do TABLADO que não contasse com bandidos e mocinhos, índios e canções, provenientes da história de Tribobó City (peça montada pelo TABLADO).


TEATRO-ESPETÁCULO

Teatro-espetáculo é o teatro feito por adultos para as crianças.

Se o jogo dramático libera a criatividade, o espetáculo teatral alimenta essa criatividade. Um espetáculo bem feito é um estímulo inesgotável para a sensibilidade da criança. A emoção artística leva a criança a um mundo de fantasia e de sonho que corresponde o que busca sua alma em desenvolvimento. Num espetáculo bem feito há perfeito entendimento entre os anseios ainda desconhecidos da criança e a realidade inexplicável do mundo misterioso que a rodeia.

O mistério teatral é justamente esta idenficação profunda de cores, ritmos, música, movimento e palavra com a alma do espectador. Antonin Artaud diz que teatro é poesia em movimento no espaço. O público espera este momento de poesia. E que público mais capaz, mais pronto para captar esta poesia solta no espaço que a criança? Se ela vive no mundo do faz-de-conta, transformar este faz-de-conta em realidade é tarefa de todo educador-criador.

É difícil, nesta década de computadores, provar a importância do espetáculo teatral bem feito na alma da criança. Não há estatística que mostre o maior ou menor grau de sensibilidade captado numa sala de teatro. Mas, para o observador sensível, a transformação que sofre o pequeno público durante um espetáculo é inesquecível! E talvez esta seja a grande emoção do realizador.

Quando eu fazia teatro de marionetes, via crianças emocionadas esperando o fim do espetáculo, para tocarem nos bonecos. Silenciosas, graves, elas chegavam perto dos personagens para melhor se "entenderem".

Entre os jovens que fazem teatro para crianças há uma grande confusão sobre o que é comunicação. "Comunicação" é hoje uma das palavras mais usadas do vocabulário. Fazem-se cursos, palestras, reportagens, em busca do significado da palavra mágica. Televisão, teatro, cinema, rádio é comunicação...Grito, berro, surra, pancadaria, auto-falante, sexo...também é comunicação. Talvez o homem esteja aperfeiçoando demais os "veículos" da comunicação e descuidando da mensagem.

Apesar de todas as teorias intelectuais em moda, a criança necessita de um "clima" para receber: o silêncio da sala, as luzes, a música. É necessário se recolher, estar atento. Ela não é um simples aparelho receptor de imagens e palavras vazias. A criança deve ser solicitada a participar ativamente de uma emoção total e não de uma competição esportiva.

Nunca deixei de citar a comovente participação de uma menininha de uns 8 anos num espetáculo de Pluft, o fantasminha, no TABLADO. Quando a mãe do fantasminha perdia tempo, falando ao telefone coisas inúteis com a prima Bolha, enquanto Maribel estava em perigo, Pluft vira-se para a platéia e confessa aflito que aquele era o único defeito de sua mãe. A menina se levanta na platéia e, no meio de total silêncio, grita solidária, comovida: "Não liga não, Pluft, minha mãe também é assim..."

Aquela menina estava realmente se comunicando e se identificando. O problema de Pluft era o dela e assim ela não estava mais só. A tensão em relação à sua mãe estava sendo aliviada através da história de Pluft. O teatro estava lhe dando a oportunidade de descobrir, através de uma emoção, os próprios anseios e problemas.

Na mesma peça, quando Pluft, extasiado ante o choro da menina Maribel, vira-se para a mãe e diz: "Veja, mamãe, a menina está derramando o mar todo pelos olhos", ouvimos de quase todos os espectadores um "Ahhh!". A satisfação do apelo poético da imagem recebida, penetrava através dos sentidos, e se manifestava nesse "Ahhh!". Não é preciso explicar com palavras a imagem...se o público está atento, a comunicação se faz, isto é, comunicação verdadeira, alimento pedido pela sensibilidade do espectador. Estaremos, então, comunicando e não impingindo, forçando um público a nos aceitar ou aceitar nossas idéias, por melhores que elas sejam.
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O presente artigo, aqui um pouquinho reduzido, consta da revista Cadernos de Teatro nº 52/1972, edição já esgotada.

quarta-feira, 29 de julho de 2009

Textos:
modelos de análise

Renata Pallotini


Qualquer tentativa de aproximação que se deva fazer, quer a nível de texto, quer a nível de espetáculo, do fenômeno teatral, sejam os estudiosos simples alunos, sejam profissionais ou velhos amantes da cena, ganhará se se tiver, como ponto de apoio - e sem caráter de obrigatoriedade, é claro - um modelo de análise.

Esse modelo pode ser mais ou menos complexo, mais ou menos exaustivo e, também, pode ser referido apenas ao texto, apenas ao espetáculo, ou a ambos. Igualmente, é claro, os modelos variam segundo a perspectiva de seu criador, conforme os seus critérios de prioridade. Alguns privilegiam o ângulo literário, outros o sociológico, outros ainda quase que só levam em conta os aspectos propriamente cênicos da obra. Há modelos que são larguíssimos e examinam detalhes tão insignificantes da obra que nos obrigam a indagar sobre a vida privada dos autores!

Com o intuito de colaborar para a siplificação do caminho do estudante da obra teatral, seja ele de que nível for, vão aqui dois modelos de análise de texto. Note-se, mais uma vez, que nenhum desses modelos é o verdadeiro, que variam segundo algumas perspectivas tomadas e que podem ser adaptados conforme as necessidades e circunstâncias.

1º MODELO

1 - Notícia sobre o autor da peça e sua obra.

2 - Definição do universo da peça; lugar e época em que se passa a ação, tempo de duração, número de personagens. Estilo, gênero, características principais.

3 - Ação principal. Idéia central. Unidade de ação; entrelaçamento das ações. Estrutura.

4 - Personagens: os principais. Sua importância, objetivos, vontade, consciência, grau de liberdade, determinações.

5 - Obstáculos enfrentados pelos personagens. Conflitos. Conflito principal. Conflitos internos dos principais personagens.

6 - Modos de caracterização dos personagens e sua eficácia.

7 - Situações dramáticas: definição e justificativa. Simbologia de E. Souriau.

8 - Adequação dos meios empregados pelo autor ao fim proposto. Tema da peça. Eficiência da comunicação.

Este modelo é simples, pouco extenso, propicia um trabalho leve, mas razoavelmente abrangente. Começa por situar o autor e sua época, além de dar notícia do restante de sua obra. No segunto item, o tempo de duração pode ser entendido como tempo de duração da fábula, dos acontecimentos da obra, e não do espetáculo propriamente dito. O estilo e o gênero da peça, conquanto sejam às vezes de difícil definição, trazem uma informação útil. Caberão aí determinações tais como: comédia, tragédia, drama, musical etc.; e, ainda, obra de teatro dramático ou aristotélico, teatro épico, teatro do absurdo, drama lírico etc.

A questão de definição de funções e situações dramáticas caberá apenas quando se tiver interesse pela teoria e pela simbologia de Souriau e de seus antecessores e seguidores. No entanto, sempre que esse conhecimento existir, o exame é últil e proveitoso para melhor conhecimento do universo da obra.

Há, finalmente, um último item, uma certa junção de elementos objetivos e subjetivos: pede-se ali a especificação do tema da peça. O tema da peça Romeu e Julieta, por exemplo, é o amor, o de Othelo é o ciúme, o de O pagador de promessas é o sincretismo religioso. Trata-se de determinar, com pouquíssimas palavras, sobre o que, afinal, trata a peça.

No entanto, neste último item, pede-se também um ajuizamento da adequação dos meios ao fim querido pelo autor, e, ainda, da eficiência da comunicação. É difícil dar esse juízo de forma exata, taxativa. Tudo, aí, dependeria do grau de empatia existente entre o leitor e o texto; embora se possam estudar com certa profundidade os elementos usados na feitura da obra, a adequação final, o resultado positivo ou negativo ficará, em grande parte, a critério subjetivo de quem analisa.

Pode-se montar um segundo modelo, maior, mais abrangente, para uso de pessoas que queiram aprofundar mais o assunto.

2º MODELO

1 - Fazer uma sinopse da peça: resumir os acontecimentos principais, tendo em vista a linha de ação dramátioca.

2 - Dar uma notícia sobre o autor, sua época, o restante de sua obra.

3 - Descrever o universo da peça; dizer o que a peça é:

a) colocando-se no tempo e no espaço; indicando época e lugar em que tenha sido escrita, época e lugar em que se passa a ação;

b) identificando o gênero a que pertence e seu estilo: drama, comédia, tragédia; teatro dramático, épico, absurdo, musical etc.;

c) destacando seu tema e idéia central; o primeiro sempre mais amplo do que o segundo elemento;

d) indicando personagens principais, explicando sua importância e o significado de suas ações.


4 - Estudar mais detidamente os personagens:

a) explicando a forma como são caracterizados;

b) ajuizando sobre a qualidade dessa caracterização;

c) indicando o grau de atividade e necessidade dos personagens em relação ao texto;

d) indicando o grau de liberdade ou determinação dos caracteres (personagem-sujeito ou personagem-objeto);

e) verificando se a maneira de construção dos personagens está de acordo com o gênero e estilo da peça.


5 - Estudar os conflitos:

a) identificando o conflito principal;

b) indicando os demais conflitos;

c) verificando a sua evolução, com variação quantitativa e qualitativa;

d) indicando as vontades e objetivos dos principais personagens e os obstáculos que encontram;

e) apontando os principais conflitos internos;

f) verificando se estão todos unificados (se se referem todos a uma idéia e a uma ação central);

g) verificando se existe uma contradição social, segundo a terminologia brechtiana, e dentro do espírito da peça.


6 - Estudar a ação dramática:

a) identificar a linha de ação principal;

b) identificar as ações secundárias;

c) verificar se existe unidade de ação;

d) verificar se, por opção do autor ou estilo da obra, esta se caracteriza pelo imobilismo, pela predominância do narrativo ou por descontinuidade de ações, e por quê.


7 - Identificar, quando houver interesse, as funções dramatúrgicas e seu relacionamento com os personagens, seundo a teoria de E. Souriaus:

a) indicando essas funções e seus portadores;

b) designando-as pelos seus símbolos;

c) definindo as principais situações dramáticas, a partir das funções dramatúrgicas.


8 - Analisar o conjunto,verificando se todos os elementos estão bem harmonizados, os problemas resolvidos e se o resultado é ou não satisfatório.


Começa-se a usar o modelo fazendo uma síntese da peça, o mais claramente possível; essas sínteses são sempre muito difíceis de fazer, mas, quando bem realizadas, ajudam enormemente nos demais passos da análise e, também, na apresentação que se faz, do assunto, a outras pessoas interessadas. A notícia histórica sobre o autor é também, embora possa parecer supérflua, fundamental. Quando se começa a descrever o universo da peça, já estamos entrando na sua conceituação, na sua colocação dentro de um estilo, uma época, uma escola teatral, quer para identificá-la a essa escola, quer para contrapô-la. Procura-se dar toda informação a respeito de tempo e espaço, seja o local e tempo em que foi escrita, seja aquele no qual se passa a ação.

Não há novidade na questão referente ao tema, mas sim à idéia central. Esta é, naturalmente, ligada ao tema, mas é, mais propriamente, a mensagem, o recado do autor. Shakespeare escreveu Romeu e Julieta para falar sobre amor, provavelmente, mas, também, provavelmente, sua idéia central seria: o ódio entre os velhos pode sacrificar o amor dos jovens. Ou, em Othelo, quereria escrever um drama sobre o ciúme, e sua idéia central seria uma frase que tem atravessado os tempos: o homem sempre mata aquilo que mais ama.

No item referente aos personagens não há grandes novidades. Interessante será, no entanto, ajuizar sobre a coerência entre a linha de criação do personagem e o estilo da peça em estudo: naturalmente, um drama realista psicológico pede muito maior aprofundamento no estudo das características íntimas do que, por exemplo, uma peça de teatro épico-didático. No item referente aos conflitos, toca-se pela primeira vez na contradição marxista; será conveniente verificar se a obra se adequa a esse espírito e se, neste caso, existe a indicação da contradição, e qual é.

Novamente não existirão intenções novas na questão da ação dramática, a não ser o fato de que se procura abrir espaço às peças que se caracterizam pelo estatismo, pela imobilidade, pelo uso de recursos líricos: peças que são quase-poemas ou quase-narrativas ditas pelos atores em cena, e que se mantêm e têm validade devido ao seu caráter literário e, digamos, encantatório. Igualmente se abre espaço para peças ditas de vanguarda ou de absurdo (ou que nome se queira dar às assemelhadas), as quais não brilham pela coerência dos rumos da ação, mas sim por outras razões (quando brilham...).

A referência a Souriau e sua notação valerá quando houver interesse específico pela obra e trabalho do tratadista francês; nesses casos, a indicação será útil e proveitosa sem dúvida. Por fim, pede-se novamente um ajuizamento que não pode deixar de ser algo subjetivo: saber se a peça redundou, é ou não satisfatória, e embora se faça esse pedido de apoio no modelo e referindo-se a ele, conterá uma certa dose de gosto pessoal e critério subjetivo.
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Artigo extraído do livro Dramaturgia - A construção do personagem. (Editora Ática, SP, 1989). O presente artigo está publicado na revista Cadernos de Teatro nº 153/1998, edição já esgotada.
Teatro/CRÍTICA

"Nathália B.S."

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Oportuno retrato de uma aberração

Lionel Fischer


Como todos sabemos, o mundo em que vivemos é pródigo em aberrações. Uma delas diz respeito à mulher: ela deve ser magra, se possível alta, evitar tanto o sol como comidas gordurosas, ter a pele alva como a de uma assombração e - requinte supremo - os cabelos negros como as asas da graúna (para os que pouco entendem de aves, talvez seja apropriado ressaltar que a dita graúna se insere nesta categoria).

E a protagonista do presente texto reúne todos esses predicados. Entretanto, a eles se somam outros: embora bem nascida, rica de berço, traz tatuadas em sua alma marcas que não consegue apagar: um pai querido, mas incestuoso, de cuja morte ela se sente culpada; uma mãe dominadora e fria, que mantém com sua sócia uma relação homossexual, sendo esta última (a sócia) uma mulher tão execrável e tirânica que atende pelo singelo nome de Orca. Obrigada por ambas a seguir a carreira de modelo, por um tempo consegue desfilar pelas passarelas sua beleza e charme. Mas logo esse desfile assume contornos trágicos e a personagem inicia uma progressiva e inexorável trajetória rumo à esquizofrenia.

Eis, em resumo, o enredo de "Nathália B. S.", em cartaz no Teatro do Jockey. Baseada no conto "Nathália no horizonte", de Jair Ferreira dos Santos, a peça leva a assinatura de Paulo Graça Couto, cabendo a direção a Henrique Tavares e a interpretação a Tarciana Saad.

Como não lemos a obra original, não temos condição de avaliá-la. Mas certamente é interessantíssima, a se julgar por sua adaptação para o palco. O texto de Paulo Graça Couto explicita com clareza e objetividade o dramático esfacelamento de uma personalidade, através de um recurso simples e funcional: a personagem está internada numa luxuosa clínica e alterna pensamentos, alucinações, conversas com seu psiquiatra - que jamais é visto - e confissões para a platéia.

Ao mesmo tempo ácido e lírico, impregnado de dores irremediáveis mas não isento de humor, o texto de Paulo Graça Couto atinge todos os objetivos a que se propõe: criar uma personagem otimamente estruturada e fazer uma denúncia mais do que pertinente, pois se nada for feito em contrário dentro de muito pouco tempo as mulheres se verão reduzidas a espectros, a elas cabendo nada mais do que promover alucinadas e solitárias orgias sobre as campas das próprias sepulturas.

Quanto à direção de Henriqe Tavares, esta consegue materializar na cena todos os conteúdos propostos pelo autor, valendo-se de marcações tão diversificadas como expressivas, imprescindíveis para o estabeleciento de uma mais do que necessária atmosfera de pesadelo. E cabe também ao encenador o mérito suplementar de haver extraído excelente atuação de Tarciana Saad.

Fomos informados de que Tarciana Saad começou sua carreia no Espírito Santo (provavelmente em Vitória) e já fez no Rio de Janeiro alguns trabalhos na televisão. Mas como a nenhum deles assistimos, tivemos com ela o primeiro contato. E este não poderia ter sido mais gratificante. Exibindo presença, força, ótima voz e excelente preparo corporal, afora notável capacidade de entrega, Tarciana Saad constitui-se numa verdadeira revelação e assim nada nos resta a não seer desejar que os sempre caprichosos deuses do teatro abençoem sua trajetória artística.

Na equipe técnica, Dóris Rollenberg responde por uma cenografia asséptica e inquietante, que contribui decisivamente para ressaltar ainda mais a solidão da personagem. A mesma eficiência se faz presente na expressiva iluminação de Aurélio de Simoni, que sempre consegue acompanhar os diversificados climas emocionais em jogo. Quanto ao figurino de Ney Madeira, ainda que belíssimo, ele nos parece inadequado para o contexto, já que dificilmente uma paciente internada numa tal clínica estaria vestida como se fosse desfilar seus encantos pelas passarelas da mundanidade sofisticada.

NATHÁLIA B. S. - Texto de Paulo Graça Couto. Direção de Henrique Tavares. Com Tarciana Saad. Teatro do Jockei. Terças e quartas, 21h.

terça-feira, 28 de julho de 2009

Origens do Teatro no Brasil

Max Fleiuss


O teatro brasileiro surgiu em São Vicente e, após, no Rio de Janeiro, contemporâneo da fundação da cidade, como escola de catequese espiritual, artística e religiosa, criado por iniciativa do provincial da Missão Jesuíta, padre Manuel da Nóbrega. Ditou sua instituição o intuito de formar, nutrir e educar as almas, tanto do gentio como dos colonos cuja salvação, paz e glória de Deus, trouxe por principal dever a expedição aportada ao Brasil em 1549, na forma do regimento dado a Tomé de Sousa. É, sem contestação, obra exclusiva do Cristianismo, que serviu de alicerce à cultura nacional desde os primeiros dias do descobrimento.

Inspiração

Nosso primitivo teatro, de caráter meramente religioso, teve como gênio inspirador o padre Manuel da Nóbrega, mas por fundador, ensaiador e nosso primeiro autor literário e teatral, o padre José de Anchieta, eminente vulto de "Taumaturgo e apóstolo do Novo-Mundo", como a História o denominou, que no Brasil exibiu peças sacras e autos de sua lavra. No ativo de seus grandes serviços à nossa pátria, inscreve-se a fundação do teatro brasileiro em 1555 no Rio de Janeiro, segundo se refere na "Chronica de Jesús do Estado do Brasil", do padre Simão de Vasconcellos.

Fruto

A criação do teatro brasileiro foi, pois, fruto da cultura intelectual, moral, artística e religiosa implantada em nossa terra, com a palavra de Deus, pela missão da Companhia de Jesus. Não se filia ao cultivo da arte literária propriamente dita, nem sequer é um reflexo das primitivas comédias e entremezes castelhanos, desempenhados pelas companhias ambulantes de cômicos e pantomimeiros da Península Ibérica do século XV, anteriores aos autos do reinado de Dom Sancho, o Povoador e aos de Gil Vicente, havido, no entanto, por legítimo fundador do teatro português.

Sobrenatural

O nosso teatro, menos ainda, teve por fonte histórica a arte mais antiga dos "mistérios", magistralmente evocados por Victor Hugo, que profanaram os claustros da Idade Média com as cenas e danças lascivas e repugnantes e a diabólica Festa dos Loucos, em que era eleito em comício público o Papa dos Doidos; nem os poracés fetichistas e orgíacos dos nossos selvagens. Jultifica perfeitamente a fundação da arte cênica em nosso país a seguinte passagem da Crônica do padre Simão de Vasconcellos, onde, esboçando o perfil sobrenatural de Manuel da Nóbrega, se refere que o superior jesuíta...

"...zelava com cuidado sobre as indecências das igrejas; e para impedir as que se cometiam em alguns atos que representavam nelas introduzia com parecer dos moradores de São Vicente, em lugar destes, um muito devoto, a que chamaram Pregação Universal - porque servia para todos, portugueses e índios, e constava de uma e outra língua: concorria a ela toda a Capitania, e representava-se na véspera do jubileu do dia de Jesus, que a volta do ato ganhava grande número de povo".

A Pregação Universal foi o primeiro trabalho da lavra de Anchieta. Posteriormente ao de São Vicente, e ao invés do que afirmam alguns cronistas pátrios, foi que se constituiu o Teatro dos Índios de São Lourenço, no Rio de Janeiro.

Trepadeiras

Fundadas as aldeias de Arariboia e São Lourenço, que servira de início e de um dos marcos da atual capital do Estado do Rio de Janeiro, inaugurou-se ali o seu Teatro dos Índios, que, segundo Mello Moraes Filho, consistia num tablado em torno do qual recebiam festões vegetais, formados por trepadeiras e parasitas odoríferas, servindo de pano de boca duas cortinas vermelhas de damasco, que escondiam os personagens à vista dos espectadores, à guisa do vellarium do antigo teatro romano.

Ao lado, havia um camarote ou tribuna para os padres da Companhia, adornado de folhagens e painéis religiosos, de símbolos sagrados e estofos magníficos. No fundo, ficava um compartimento para os figurantes da peça; os acessórios e adereços de cena eram fornecidos também pela natureza ou pelo santuário, alfaias, símbolos, paramentos e ricas colgaduras de vistosas cores, galhardetes, bandeiras reais, grinaldas e flores silvestres, lianas e achas de resina perfumosa, tudo acompanhado do rumor esfusiante dos maracás e das inubias.

Singeleza

Anchieta compunha enredos singelos, mas altamente impressionáveis, consultando de perto as condições do meio social a que se destinavam: liçoes e quadros-vivos de moral cristã, como o Mistério de Jesús, a mais notória de suas produções teatrais, levado pela primeira vez à cena no dia do Natal em comemoração à festa do padroeiro da Missão. Poema dramático-religioso, nos moldes dos Irmãos da Paixão, representava a luta de três demônios - Guaixara, Savarana e Aimbiré - que tentavam destruir a nascente aldeia católica, semeando o pecado e abalando a fé nativa dos gentios, mas vencidos por São Sebastião e São Lourenço, padroeiro do Rio de Janeiro e da aldeia, que entravam sempre em cena escoltados de anjos luminosos, potências selestiais e dos Anjos da mesma aldeia - Tijori e Cupié, enquanto Decio, Nero e Valeriano traziam por séquito os espíritos endemoniados.

Além dos heróis bárbaros da guerra dos Tamoios, como Guaixara e Aimbiré, figuravam no poema de Anchieta seres fabulosos da floresta, como o Grande Cão; aves noturnas e sinistras: o corvo, o urubu, a tataurana e o gavião. Na apoteose final, os imperadores romanos, perseguidos pelos cristãos, precipitavam-se em um rio e morriam afogados, enquanto os santos subiam à glória celeste e os gênios do mal eram precipitados no inferno.

Duração

Durava o espetáculo mais de três horas e neles não se exibiam atrizes, mas somente amadores instruídos pelos padres da Companhia. Alguns desses atores, como os que faziam Nero, Decio e Valeriano, no Mistério de Jesus, apareciam do palanque real carregados por quatro escravos e contracenavam por mímica; os outros, porém, declamavam os versos de Anchieta em guarani e em português, como, aliás, eram redigidos todos os Autos anchietanos, por se destinarem simultaneamente à redução do gentio à fé católica e educação moral dos colonos portugueses.

Impressão

Em 1575, refere Ferdinad Wolf, por iniciativa dos jesuítas representou-se em Pernambuco o drama O rico avarento e o lázaro pobre. A impressão causada no auditório por esta peça foi tal que muitos fazendeiros e pessoas abastadas do lugar, que nunca haviam dado esmolas aos pobres e se caracterizavam pela excessiva sovinice, a partir de então abriram seus corações às práticas da caridade cristã. Assim, o teatro começava a a exercer seu principal papel e função social para que foi criado nas primitivas eras - formar e educar o espírito do povo.

Recordações

Em suas Recordações Coloniais - O Rio de Janeiro em 1583, o cônego Fernandes Pinheiro reedita a tradição de Fernão Cardim de que a 20 de janeiro deste ano, no adro da Igreja da Misericórdia desta cidade, em teatro improvisado, representou-se um imponente "mistério", extraído do martirológio de São Sebastião. Nesse mesmo ano fizeram os padres da Missão exibir na Aldeia do Espírito Santo um Diálogo Pastoril, entremês poético em vernáculo, castelhano e grarani.

Gala

Em 1584, segundo o mesmo Fernão Cardim, durante os festejos de São Sebastião, realizou-se tabém no adro da Igreja da Misericórdia do Rio de Janeiro uma representação solene do Auto da Pregação Universal, de Anchieta. A esse espetáculo de gala assistiram o cacique Arariboia com seu séquito e a representação oficial da Capitania. Diz Pereira da Silva que esse Auto foi desempenhado por alguns dos moradores mais despachados do local, falando em seu nome e penitenciando-se das próprias culpas. Acrescenta Vieira Fazenda que tomavam parte nos mesmos espetáculos noviços e estudantes.

Comédia

Já no século XVII representou-se na Bahia a comédia Constancia e triunfo, original do padre José Borges de Barros (1659-1719), natural desta Capitania, teólogo e canonista famoso, que foi vigário em Lisboa.

Outro escritor teatral brasileiro dessa época foi Salvador de Mesquita, nascido no Rio de Janeiro em 1646 e educado em Roma, onde escreveu e fez levar à cena o drama sacro em latim Sacrificium Jeptoe e várias tragédias, como Demetrius, Perseus e Prusias Bithinice.
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O presente artigo, aqui um pouco reduzido, foi publicado na revista Cadernos de Teatro nº 72/1977

segunda-feira, 27 de julho de 2009

Diante de uma crítica adversa

Domingos Oliveira


Quando recebo uma crítica adversa releio o bom Truffaut: "O artista cria a si mesmo. Torna a si mesmo interessante e depois entra numa vitrine. É um privilégio desde que se aceite o outro lado da moeda: o risco que envolve ser estudado, analisado, notado, julgado, criticado, negado". Aqueles que fazem o julgamento - os críticos - têm conhecimento da enormidade do privilégio do ato da criação, dos riscos que corre aquele que se expõe a ela e, em troca, sentem uma admiração secreta e um respeito que poderiam, pelo menos parcialmente, devolver a paz de espírito ao artista (se ele pudesse se lembrar disso).

Nas relações entre o artista e o crítico tudo acontece em termos de poder e, curiosamente, o crítico jamais perde a noção de que, na relação de poder, ele é o mais fraco. Mesmo que tente esconder esse fato por trás de um tom agressivo. O artista sempre acha que os críticos são contra ele porque sua memória seletiva benignamente favorece suas neuroses persecutórias.

Diante de uma má crítica, o artista deve também ter em mente uma outra ponderação: o prestígio. Não devemos confundir a obra com um prestígio conquistado através de anos de trabalho. Exceção feita ao Cidadão Kane, todos os outros filmes de Orson Welles foram severamente criticados quando de seus lançamentos, ou por serem loucos demais, ou barrocos demais. Ou shakespearianos demais (ou de menos). Mas a reputação e o prestígio de Welles não foram sequer arranhados. O mesmo vale, sem dúvida, para Buñuel e Bergman. Bertollucci é tão importante quanto Charles Chaplin; levando em conta que são iguais perante Deus, devem também sê-lo perante os críticos. Fora isso, só o tempo é que põe as coisas no lugar.

Mas por que nos aborrecemos tanto ao receber uma crítica adversa? Por que essa vontade de esganar os críticos, às vezes até boas pessoas? De onde vem essa revolta, esse sentimento de humilhação, de incompreensão; essa certeza de havermos sido desrespeitados? Em vez de negar, meditaremos.

O que é a crítica? Quem é a crítica? São jornalistas amantes da arte, interessados em nossa atividade. Mas que, por falta de vocação ou outro tipo de impossibilidade, não a exercem (de modo geral). Apenas a partir desse dado, é fácil verificar que eles representam um tipo muito especial de platéia, de espectador. Uma espécie de guardiães do tesouro, que apenas podem olhar, sem saírem da porta, o brilho de todo aquele ouro. É difícil manter integridade moral numa posição assim. E, no entanto, às vezes, alguns deles conseguem!

Além disso, trata-se de uma posição de poder. Dentro de um jornal e, particularmente, no que diz respeito à classe teatral. Afinal, são eles que distribuem os prêmios! É evidente que, para alcançar esse posto, pelo menos entre nós, o crítico tem de ser uma pessoa muito hábil, digamos assim. Uma definição exata de opiniões desagrada a gregos e troianos, fazendo com que o crítico tenda rapidamente a perder sua coluna.

Um outro valor, de igual ou maior monta, contribui para que os críticos sejam, de modo geral, não mais que opiniões indefinidas: é preciso coragem para exercer a função. Falando claro, eles são ao mesmo tempo adulados e odiados pela classe teatral inteira, classe esta que admiram e amam na medida em que são também gente de teatro. Enfim, não é fácil - e quase que obrigatoriamente - estar sobre o muro (cheios de cacos de vidro).

Some-se a issoo fato de que os críticos possuem um alto nível de informações sobre teatro, excesso este que muitas vezes conduzem a preconceitos. E ainda o fato de que vêem teatro demais, coitados. Como todos sabem, o teatro é, em geral, uma coisa chatísssima - isso naturalmente eleva seu nível de exigência, afastando assim, inexoravelmente, a inocência que uma opinião profunda deve obrigatoriamente possuir.

Juntando-se os fatores, conclui-se que a opinião de um crítico é, no mínimo, suspeita. Comprometida, no mínimo. Muito longe da opinião da platéia, no mínimo dos mínimos. Deve servir de referência para o artista, sem dúvida, é material de reflexão. Mas jamais deve ser levada a sério.

Não menos suspeita é a opinião dos amigos. Uma das razões mais fortes pelas quais faço teatro é, sem dúvida, agradar aos amigos. Tenho duas ou três pessoas na minha vida que se eles gostarem, então para mim já está ótimo. Mas também eles são gravemente suspeitos. Na medida em que não podem desvincular a obra do amigo que é também o autor. Também eles não devem ser levados muito a sério.

Bem, quanto aos conhecidos, ou amigos menos íntimos, bem, com estes todo cuidado é pouco. Quem já não mentiu desavegonhadamente naquela visita exótica que temos de fazer aos camarins, cumprimentar os amigos, depois de tê-los visto fazer um trabalho que achamos péssimo? E encontramos aqueles entes queridos - suados, exaustos, com um sorriso nervoso, perguntando o que você achou -sem a menor idéia daquilo que você tem certeza: que ele jamais deveria ter entrado em cena para fazer aquela besteira, que podia ter passado sem essa!

É preciso ser um herói moderno para não mentir nos camarins após as estréias. Pessoalmente, não acredito em nada do que me dizem nos camarins. Nem que seja repetido três vezes. Não acredito nem na minha mãe.

Um índice interessante é perguntar a um amigo fiel, que ainda não tenha visto a peça, o que é que andam dizendo por aí. Assim talvez você possa ter uma noção da repercussão do trabalho, pelo menos nos bares habituais. Seu amigo poderá dizer a você até que ponto falam mal, garantindo naturalmente que não achará nada disso, quando for lá ver.

Nem mesmo na opinião do público, revelada pela temperatura dos aplausos, é possivel confiar muito. Já vi peças ((aliás, já fiz peças) que o público adora, mas não recomenda (!). Quem vai, gosta, mas não manda ninguém ir ver...Como se a peça fosse a curra do ditado americano: "Se é inevitável, aproveite". Mas avise ao amigo para não passar nem perto. Impossível perceber como o mundo nos vê. É sem dúvida espesso o cristal de nossa redoma, mas existem ainda alguns critérios de avaliação da qualidade do trabalho. Um dos mais sérios, sem dúvida, é a bilheteria.

Um sucesso de bilheteria tem o significado inequívoco de aceitação do nosso trabalho por parte da sociedade em que vivemos. Embora paire sempre, sombriamente, no ar das cogitações o desejo de saber que parte do trabalho eles aceitaram. Terá sido a profundidade do texto, a firme coragem da direção...ou aquela atriz que acabou de fazer uma novela na TV Globo?

No rosto deles, quando aplaudem,também muito pode ser visto, para quem souber ver. Se, no final, os bonecos levantam, é porque a coisa vai!

E naturalmente há o correr do tempo. Do martelo de anos e décadas e séculos. Isso realmente arruma tudo. É pena que não fiquemos para ver, finalmente, quem é quem, embora o tempo também tenha o seu critério, que não é absoluto. O tempo julga segundo aquilo que interessa à "eternidade da espécie", só isso...

Assim sendo, diante do exposto, resta aconselhar - a mim mesmo e ao leitor - que não modere sua paranóia no sentido de considerar-se o juiz último e único da validez da própria obra. Juiz sem legislação ou critério, posto que, de tão vagos, todos serão fúteis, exceto do prazer com que foi criada a obra em questão. Absolutamente sós, na meio da noite infinda deste local desconhecido, criemos portanto. Na certeza infundada, porém convicta, de que não enlouquecemos ainda. E julguemos! Apenas levando em conta o brilho com o qual, no momento da criação, brilharam as estrelas sobre nossa única oval cabeça.
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O presente artigo foi extraído do livro Do tamanho da vida - reflexões sobre o teatro.
Final da adolescência

Eric Bentley


As crianças pequenas adoram vestir-se e fingir que são outras pessoas. Apreciam bonecos, fantoches e teatro de brinquedos. Exultam quando as levam a certos gêneros de espetáculo. Todavia, ninguém pensará em afirmar que uma criança foi deslumbrada pelo palco. Há uma idade característica para esse fenômeno: o final da adolescência. Em algumas das escolas de arte de representar, em que os estudantes estão, em sua maioria, por volta dos 17 anos de idade, é possível apreciarmos grupos com a cegueira ou o deslumbramento do palco.

A palavra "deslumbrar", nessa acepção, é apenas aplicada, corretamente, a duas coisas: o relâmpago e o palco. Dizemos: "A verdade dessa idéia deslumbrou-me". Mas não dizemos: "Sou um deslumbrado pela verdade". A luz da verdade assoma, como no despontar da aurora. É a luz do palco que deslumbra e cega.

Se deslumbrasse na puberdade, uma explicação se imporia: o teatro é uma extensão do rito da puberdade, a expressão do súbito desencadear da maturidade física. Mas o que acontece aos 17 anos? Num sentido crasso, nada; contudo, essa idade é uma das mais interessantes e cruciais, pois nas suas imediações se encontra o local de encontro do rapaz com o homem, da menina com a mulher. É a época em que, se fôssemos pássaros, seríamos postos para fora do ninho, mas em que, por sermos humanos, podemos ser enviados para uma escola de arte dramática.

É uma época em que a luta do adolescente com os pais, o lar e a família se torna muitas vezes consiente e acrimoniosa. Ainda não se está inteiramente preparado para a independência, para criar a própria família, para abrir caminho à própria custa no grande mundo e, entretanto, é o que se gostaria de fazer - ou algo um tanto mais vago, mas ainda mais demolidor. Com o perene desejo humano de garantir as coisas de um lado e de outro, gostaríamos de assumir uma atitude de rebelião sem ter que enfrentar as consequências das rebeliões. Gostaríamos de ir para outro país e permanecer naquele em que estamos. O teatro é outro país, que podemos visitar sem deixar o nosso. Um maravilhoso país!

Nele floresce aquela liberdade emocional por cuja falta nós, os que estamos de fora, mal podemos respirar. O mundo de fora é duro de tragar, a maior parte do tempo, a aos 17 anos fazemos nosso derradeiro esforço para rechaçá-lo, refugiando-nos no paraíso do teatro.

Mas o que haverá no teatro que possa exercer um atrativo tão poderoso, tão sobrepujante? Com certeza o seu fator mais notável é a violência da reação - só comparável com a do amor irresistível. Por que só o teatro deslumbra com a força de um raio?

Talvez as pessoas que falam da magia do palco tenham, inadvertidamente, achado uma pista, embora a concepção correta de tal magia não nos levasse longe, por certo. Sim, o palco é sedutor, mas não somos deslumbrados por seduções; somos apenas seduzidos. Freud chamou a atenção para o aspecto da mágica que talvez possa fazer sentido neste ponto. É a mágica como expressão da ilusão de onipotência.

No grande mundo, as crianças sofrem muitas vezes fracassos e desgostos porque supõem que os seus pensamentos se concretizam em fatos, que os pensamentos podem por si próprios remover os obstáculos ao pensamento. O mundo, dizemos nós, acaba por levar a melhor e metê-las nos eixos. Mas suponhamos que elas não queiram ser metidas nos eixos? Não será o teatro um refúgio apropriado? Esse pequeno mundo em que a fantasia reina? Onde os pensamentos são, de fato, onipotentes?

A novela e a peça teatral fornecem a liberdade e continuidade emocionais que a vida real nos recusa, e a liberdade que existe na novelística é, em certo sentido, elevada a uma potência mais alta no palco. Pois que, enquanto numa novela os sentimentos de uma personagem só são imaginados à nossa maneira, no teatro parece que os encontramos em carne e osso - visto que existe o ator que interpreta o papel - e os aceitamos através dos nossos sentidos.

Enquanto permanecemos sentados no escuro, "mortos para o mundo" (isto é, para os demais circunstantes), mas penetrando, através da quarta parede (o proscênio), na vida dos atores, estamos a apenas um passo da alucinação. E, se não formos espectadores, mas atores, essa sensação será ainda mais aguda. Talvez seja esse elemento alucinatório no teatro que exerce um atrativo irresistível - pelo menos para os atores que estão, literal ou figurativamente, no final da adolescência.
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Texto extraído de A experiência viva do teatro, de Eric Bentley (Zahar Editores, Rio de Janeiro/1965)
Albert Camus:
o absurdo no teatro

Há cerca de uma semana, colocamos aqui comentários sobre três peças de Albert Camus, prometendo para breve algumas considerações sobre a quarta e última, Estado de sítio, a mais extensa e complexa. Então, cumprimos agora a promessa feita. Mas antes, julgamos imperioso fazer a seguinte ressalva: por puro esquecimento, não dissemos que o artigo anterior, assim como este, não é de nossa autoria. Mas também não conseguimos descobrir quem é o autor dos mesmos. Em todo caso, tanto os artigos como o texto completo de Estado de sítio constam da coleção TEATRO VIVO, publicado pela Abril Cultural em 1977.

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A CIDADE SITIADA

Fazia já algum tempo que o ator Jean-Louis Barrault desejava encenar o Diário do ano da peste, de Daniel Defoe (1660-1731). Sabendo que Camus trabalhava num romance com o mesmo tema, desistiu do velho projeto e pediu ao escritor que elaborasse uma versão teatral de A peste. Camus aceitou o encargo, porém não se limitou a fazer uma simples transposição do romance para o palco. Na verdade, Estado de sítio apresenta uma abordagem distinta da cidade à mercê da epidemia - cujo simbolismo político é reforçado através da personagem Peste. "Como se trata de um ditador, essa apelação está correta", afirma o autor no prefácio de sua obra. Referia-se, porém, a qualquer ditador, de qualquer partido; por isso desaprovou o fato de, na representação parisiense, o ator que interpretava a Peste envergar um uniforme nazista.

Do ponto de vista da construção, misturando "todas as diferentes formas de expressão dramática, do monólogo lírico ao teatro coletivo", incluindo a farsa e o coro, a peça afasta-se muito do tom deliberadamente monótono que o autor conferiu à narrativa do romance.

Alguns personagens de A peste estão presentes em Estado de sítio, embora bastante modificadas: assim, na peça, Diogo, com sua vergonha de ser feliz sozinho, seu desejo de salvar a comunidade cuja desgraça considera sua também, aproxima-se do doutor Rieux, do jornalista Rambert, de Tarrou; o niilista Nada relembra o oportunista Cottard; o padre Cádiz, embora muito mais violento, assemelha-se ao jesuíta Paneloux.

No plano das idéias, alguns temas do romance são novamente abordados, com destaque maior, como o contraste entre a situação de medo e sacrifício imposta pela peste (em seu significado concreto e simbólico) e a liberdade inspirada pelos elementos naturais.

Na peça, esse contraste, sugerido pela esperança de que o vento do mar traga a salvação, explode na cena em que os mensageiros da Peste proclamam as novas ordens e a população tenta fugir, esbarrando nas portas que se fecham. No romance, a oposição é mais nítida quando o doutor Rieux e seu amigo Tarrou abandonam por um momento a cidade empesteada e vão banhar-se juntos no mar, renovando as forças para voltar à luta. Na opinião do crítico Philip Thody, o próprio Camus estaria tentando dessa forma recuperar suas energias para enfrentar outra espécie de epidemia: a das sufocantes abstrações a que se dedicavam, na época, os intelectuais europeus.

Tendo como modelo o auto sacramental espanhol, representado durante a Idade Média nos átrios das igrejas e que levava ao público alegorias das virtudes cristãs, a peça estreou no Teatro Marigny, de Paris, no dia 27 de outubro de 1948. O cenário é a cidade de Cádiz - uma escolha consciente por parte do autor, que desejava dessa forma expressar seu protesto contra a situação política da Espanha e o papel representado pela Igreja nesse país.

A obra compõe-se de um prólogo e três partes, bem delimitadas . O prólogo mostra os habitantes da Cádiz amedrontados com a aparição de um misterioso cometa que interpretam como um presságio de desgraças - a ordem oficial, contudo, é de que nada se tema, pois nada foi visto.

A primeira parte da obra coloca em cena a vida normal da cidade, com suas alegrias, suas preocupações, suas misérias, suas artimanhas. Ao surgir novamente o cometa, alguns homens caem mortos, num sinal evidente de que uma epidemia está se alastrando. O governo, entretanto, resolve tomar providências não no sentido de combater o mal, e sim de conter o pânico. Na realidade, a situação incomoda o governador apenas por privá-lo do prazer da caça - pois não lhe ocorre que a epidemia possa atingi-lo pessoalmente, e o destino do povo tem para ele menor importância do que um faisão abatido no campo.

O padre, intransigente, quase vitorioso com o que considera um castigo dos céus sobre a cidade pecadora, brutalente exorta o povo à confissão e à penitência. O juiz, terceiro poder reinante sobre Cádiz, sequer toma conhecimento da calamidade: continua calmamente lendo seus salmos, certo de que, sendo um homem justo, nada sofrerá. Para as três autoridades, a peste é assunto do povo e só lhes diz respeito na medida em que possa alterar seus próprios ritmos de vida.

Enquanto o alcaide anuncia à população as determinações oficiais para a emergência, entram em cena a Peste e sua Secretária, que serenamente explicam terem vindo reclamar para si o poder. Algumas irradiações emitidas pela Secretária e que instantaneamente provocam a morte bastam para convencer o governador e seus auxiliares a abdicar, deixando a população à mercê dos recém-chegados. Uma nova ordem é anunciada, um programa para impor a lógica e a disciplina, para punir os fracos - como os que amam - e recompensar os fortes - principalmente os delatores, ainda mais dignos de prêmios se entregarem pessoas de suas próprias famílias. Os mensageiros transmitem as normas e o povo tenta fugir para "o mar livre, a água que lava, o vento que liberta". Mas todas as tentativas esbarram nas pesadas portas da cidade que, uma a uma, se fecham sobre as esperanças de liberdade.

A população oprimida, igualada na mesma sorte, não se solidariza, não se apóia mutuamente. Ao contrário, assim como em A peste, constitui-se num bando desordenado de indivíduos voltados tão-somente para si mesmos, endurecidos em seu medo a ponto de negar qualquer tipo de ajuda aos companheiros.

Encerrada em seus próprios muros, emudecida por "um tampão embebido de vinagre", Cádiz é oficialmente declarada em estado de sítio. "A ridícula angústia da felicidade" é proibida, assim como "o rosto estúpido dos apaixonados, a contemplação egoísta das paisagens". Os valores mais caros são proscritos. Não deverá existir amor. E ninguém morrerá ao acaso, por emoção ou por descuido: a morte doravante será racional e burocratizada, obedecendo à rígida ordem de uma lista cuuidadosamente elaborada.

A segunda parte mostra os absurdos de uma burocracia levada ao extremo, criada para gerar o desentendimento entre as pessoas: por ser incompreendida - e temida - é que a nova ordem se mantém. O povo reclama - sempre individualmente, nunca como um grupo coeso -, mas seus argmentos carregados de emoção, levantados em nome dos direitos mais fundamentais, como o de morar sob um teto, são demolidos pelo raciocínio frio e cínico de Nada, o niilista bêbado que passa para o lado do tirano. Seu ponto de vista, extremamente negativo, afirma de maneira mais direta uma das idéias centrais de O homem revoltado: na ausência de outros valores, as ideologias totalitárias - como o nazismo - triunfam, com sua recusa à vida; se não existe mais nada em que se possa acreditar, tende-se a acreditar na destruição.

As reclamações da população atingem o auge com a entrada de Diogo, que a incita a gritar seu medo. Mas a resposta é apenas um lamento: "Éramos um povo e, agora, uma massa!". Sem poder contar com essa gente amedrontada, o jovem enfrenta a Peste sozinho e, em seguida, se refugia na casa do Juiz, que se recusa a dar-lhe abrigo: antes de mais nada, é necessário cumprir a lei, qalquer lei, pois todas elas são sagradas e indiscutíveis. A interferência de Diogo faz vir à tona antigos conflitos familiares: a mulher do Juiz desabafa mágoas passadas, o Juiz a critica por ter sido infiel. Os ódios afloram incontidos, a família perfeita revela-se uma fraude. Diogo foge, e está procurando convencer um barqueiro a levá-lo para longe quando surge a Secretária, que tenta sutilmente seduzi-lo. Indignado, Diogo a esbofeteia, para alegria do povo, que arranca as mordaças e finalmente grita numa só voz. A Secretária declara-se vencida: nada pode contra quem não a teme. É essa a regra do jogo: o poder cessa ao cessar o medo. O vento do mar, numa esperança de salvação, começa a soprar.

A última parte apresenta a derrota final da Peste, acossada pelo povo que Diogo incita à rebelião. O caderno da Secretária, contendo os nomes das pessoas destinadas à morte "racional", é arrebatado e passa de mão em mão, servindo de instrumento para pequenas vinganças pessoais. Nesse momento, é trazido o corpo de Vitória, a amada de Diogo, o qual propõe à Peste trocar sua vida pela da moça. O tirano contrapõe-lhe poupar os dois, para que vivam felizes em outro lugar, em troca do domínio absoluto sobre a cidade. Diogo recusa-se, reafirmando a posição que desde o início havia assumido: não se julga com o direito de sacrificar o bem-estar do povo para conquistar a sua felicidade pessoal. "O amor desta mulher é meu reino, meu, apenas. Posso fazer dele o que quiser. Mas a liberdade desses homens lhes pertence. Não posso dispor dela".

A Peste procura convencê-lo a não se sacrificar em nome de uma gente tão pequena e covarde, que nem sequer tem condições de apreciar com justiça tamanha nobreza de sentimentos. Vitória e as mulheres o censuram asperamente por preferir a morte ao amor. São inúteis os convites e as críticas: Diogo deixa-se morrer, ao mesmo tempo em que Nada anuncia o retorno dos antigos governantes, diferentes do tirano unicamente porque, "em lugar de fecharem a boca dos que gritam sua desgraça, fecham seus próprios ouvidos".

É possível que haja demasiadas personagens simbólicas em Estado de sítio, como considerava o crítico Bernard Simiot. É possível também que o totalitarismo representado pela Peste seja inverossímel, como julga Philip Thody. Mas esses possíveis defeitos são em muito atenuados pela força do texto, pelo desenvolvimento dramático, pela universalidade do tema.

Camus achava Estado de sítio o escrito seu que mais se parecia com ele. Realmente, o anseio de liberdade demonstrado pela cidade, a ternura de Diogo pelo povo comum, com todas as suas mesquinharias e suas acanhadas generosidades, a aversão a qualquer totalitarismo e aos programas niilistas são sentimentos presentes em toda a sua obra. E é por esses sentimentos que Albert Camus representa um dos escritores mais importantes do nosso século.

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sexta-feira, 24 de julho de 2009

Teatro/CRÍTICA

"Por um fio"

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Uma celebração à vida


Lionel Fischer


Curiosamente, no espaço de duas semanas estrearam no Rio de Janeiro dois ótimos textos com o mesmo tema: a morte. O primeiro, "As meninas", de Maitê Proença e Luiz Carlos Góes (Casa de Cultura Laura Alvim). E agora, "Por um fio", de Drauzio Varella, baseado em seu livro homônimo. Mas enquanto o primeiro possuía natureza ficcional, ainda que possivelmente calcado em fatos reais, o segundo é totalmente real - em seu livro Drauzio Varella relata sua relação com pacientes terminais. E o que se assiste no palco do Sesc Ginástico é uma seleção desses relatos, sem maiores interferências da direção no sentido de adaptá-los.

Apos cumprir excelente temporada em São Paulo, com casas invariavelmente lotadas, "Por um fio" chega ao Rio com a mesma equipe: direção de Moacir Chaves, atuação de Regina Braga e Rodolfo Vaz, cenário de J.C.Serroni, figurino de Verônica Julian, iluminação de Aurélio de Simoni e música de Tato Taborda.

Como todos sabemos, a morte é um tema extremamente delicado, ainda que se possua uma crença em uma vida futura. Mas o que merece ser aqui ressaltado são as múltiplas e divesificadas posturas dos pacientes diante do inexorável. E embora o texto contenha passagens amargas e dolorosas, como não poderia deixar de ser, em muitas outras chegamos não apenas a sorrir, mas fundamentalmente a compreender que o que importa não é o tempo que nos resta, mas sim o que faremos com ele. E mais do que isso: o texto nos demonstra a possibilidade de empreendermos significativas mudanças em nossas vidas, sempre para melhorá-las, o que provavelmente não faríamos na ausência de uma doença incurável.

Muito bem escrito, impregnado de humanidade e de outros sentimentos tão raros hoje em dia - como compaixão e solidariedade -, o texto de Drauzio Varella é, em essência, uma celebração à vida, um apelo para que a valorizemos ao máximo ao invés de nos queixarmos de coisas que, não raro, carecem de maior importância. Assim, não temos a menor dúvida de que "Por um fio" repetirá aqui o estrondoso sucesso obtido em São Paulo.

Mas é claro que outros fatores contribuem para o êxito desta mais do que oportuna empreitada. A começar pela direção de Moacir Chaves, cuja simplicidade nos permite ter acesso a todos os conteúdos propostos pelo autor. Sabiamente, Moacir "não inventa", ou seja, não tenta sobrepor sua encenação ao texto, muito pelo contrário: lançando mão de um desenho cênico isento de dispensáveis firulas formais, conquista a platéia desde o primeiro momento.

Quanto a Regina Braga e Rodolfo Vaz, os dois excelentes intérpretes compreenderam perfeitamente o espírito do projeto, valorizando muito mais a narrativa do que eventuais arroubos interpretativos. Tal proeza só é possível quando os atores, ainda que maravilhosos, se convencem de que o prioritário não é a exibição de seus dotes interpretativos, mas sim utilizá-los, como no presente caso, com a devida parcimônia. E é por isso que "Por um fio" consegue estabelecer uma relação tão visceral com a platéia.

No que diz respeito à equipe técnica, J.C.Serroni cria uma cenografia muito expressiva, composta apenas de árvores secas e alguns bancos, sugerindo uma atmosfera outonal - que, diga-se de passagem, um autor como Tchecov em muito a apreciaria. Verônica Julian responde por figurinos discretos, em perfeita sintonia com a proposta da direção. Aurélio de Simoni, como de hábito, ilumina a cena conseguindo ressaltar as muitas nuances de atmosferas, sendo igualmente irreprensível a música de Tato Taborda.

POR UM FIO - Texto de Drauzio Varella. Direção de Moacir Chaves. Com Regina Braga e Rodolfo Vaz. Teatro Sesc Ginástico. Quinta a domingo, 19h.

quinta-feira, 23 de julho de 2009

Para você, que teme ousar...

Lionel Fischer


O pequeno artigo que se segue tem por objetivo incentivar os profissionais das artes cênicas ( e, em especial, os atores) a jamais se permitirem o sério risco de se tornarem parasitas de suas próprias conquistas (desde que elas tenham existido, evidentemente), contentando-se em repetir fórmulas que "deram certo".

Extraído de O estrangeiro que dansa - livro que retrata a trajetória do Grupo Odin de 1972 a 1977, publicado na França em 1977 - o fragmento abaixo leva a assinatura de Eugênio Barba, fundador e diretor do grupo até hoje.

Você perde sangue, mas se você se recusa a permanecer estendido numa maca, você vai além, você transpõe a fronteira que leva a uma espécie de terra de ninguém. Atrás de você se estende o território do teatro, diante de você, uma outra fronteira. Você ignora para qual território ela te conduz. Você avança prudentemente, mas com obstinação. Às vezes teus passos te conduzem para trás, na direção da fronteira do teatro, e os sábios e os professores sorriem, aliviados. Às vezes você parece a ponto de desaparecer no horizonte e teu destino parece incompreensível. Quem é você, afinal? Um solitário que desaparece no deserto ou alguém que, avançando, e mesmo que eventualmente se perdendo, chega a traçar uma pista?

E agora uma singela opinião minha: se você não se arrisca a traçar uma pista, não se dispõe a criar uma marca própria e pouco faz além de se deleitar com sua compulsão à repetição, então você me perdôe, mas você não é um ator. É um burocrata do palco.

Teatro/CRÍTICA

"O língua-solta"

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Monólogo limita ótima proposta


Lionel Fischer


Considerado o primeiro poeta brasileiro ("Prosopopéia") e também o primeiro mestre-escola leigo da colônia, o cristão-novo Bento Teixeira viveu parte de sua vida em Pernambuco, no início do século XVI, sendo famoso não apenas por sua erudição, mas igualmente por sua notória incapacidade de conter a língua - daí o título da peça - sempre que julgava necessário "soltá-la", disparando dardos contra tudo que julgava errado. E tanto falou e questionou que acabou caindo nas garras da Inquisição, vindo a falecer em Portugal, impregnado de saudade de Olinda, que amava sobretudo por suas íngremes e sinuosas ladeiras, que a ele sugeriam "trepar como ninguém".

Eis, em resumo, o enredo de "O língua-solta", que acaba de entrar em cartaz no Centro Cultural Justiça Federal. Miriam Halfim assina o texto, Xando Graça a direção - com supervisão geral de Ricardo Kosovski - e Isaac Bernat interpreta o protagonista, além de dar vida a outros personagens.

Como se vê, trata-se de uma proposta mais do que interessante, já que a maioria das pessoas certamente desconhece a identidade de nosso primeiro poeta, assim como aspectos de sua personalidade e trajetória de vida. E sem dúvida a autora Miriam Halfim consegue preencher esta lacuna, ao menos do ponto de vista da informação. No entanto, no que diz respeito à dramaturgia, a estrutura adotada acaba comprometendo um pouco os méritos da escrita.

Como se sabe, o monólogo é um dos formatos mais ingratos, pois só permite, a grosso modo, duas alternativas: ou o personagem é louco e portanto pode falar sozinho sem maiores problemas, ou se dirige permanentemente à platéia, numa relação quase que confessional. Aqui não estamos diante de um louco e o incômodo decorre não da permanente relação que o protagonista estabelece com o público, mas de passar quase todo o tempo dialogando com pessoas que não são vistas - o ator fala, dá uma pausa e reage em seguida em função do que supostamente ouvira. Essa estrutura não soa convincente, por melhor que a materialize Isaac Bernat - às vezes o ator incorpora outros personagens, sempre evidenciando seu enorme talento.

Em função do que acaba de ser dito, a direção de Xando Graça tenta driblar essas limitações criando marcas não raro bastante expressivas e utilizando com sensibilidade todas as possibilidades do expressivo e soturno cenário. Seu trabalho como encenador, portanto, merece ser considerado muito bom - a única ressalva que fazemos diz respeito a algumas pausas excessivamente longas, mas estas decorrem, em sua maioria, em função do texto, já que Isaac Bernat tem que trocar de roupa algumas vezes ou sugerir que está se dirigindo a outro lugar.

Com relação ao intérprete, Isaac Bernat é sem dúvida um dos melhores atores de sua geração e aqui exibe, mais uma vez, seus grandes predicados expressivos - presença, carisma, ótima voz, apurado trabalho corporal e invulgar capacidade de estabelecer imediata empatia com a platéia.

Com relação à equipe técnica, já mencionamos o caráter soturno e expressivo da cenografia, assinada pela talentosa Lídia Kosovski. Destacamos também o irrepreensível figurino de Ney Madeira e sobretudo a soturna iluminação de Aurélio de Simoni, que em muito contribui para enfatizar os muitos climas emocionais em jogo. Cabe ainda destacar a ótima preparação corporal feita por Helena Varvaki e a direção musical de Marcelo Alonso Neves.

O LÍNGUA-SOLTA - Texto de Miriam Halfim. Direção de Xando Graça. Com Isaac Bernat. Centro Cultural Justiça Federal. Quartas e quintas, 19.

quarta-feira, 22 de julho de 2009

Aos amigos do blog:

Além do que se segue, surgiu uma outra questão: os retratinhos de vocês simplesmente desapareceram!!! Aluguei, hoje, por mais de uma hora, os delicados ouvidos da amiga que criou o blog pra mim, mas ela não conseguiu fazer voltar os retratinhos. Mas me disse, com um risinho sardônico, que no computador dela aparece e que talvez seja uma questão de tempo...que eu tivesse paciência...que talvez o provedor - mas aí eu encerrei a conversa, pois nem sei direito o que é este tal de provedor...

Enfim...se alguém souber como faz para ter de volta os retratinhos...

Beijos

Lionel
Aos amigos do blog:

Ainda que rubro de vergonha, devo admitir que não sei responder aos comentários que vocês fazem. E como isso pode parecer indelicado de minha parte, se algum de vocês (já são 31!!!) souber como faz, por favor, me ensina. Adoraria responder. De qualquer forma, aí segue meu e-mail, caso minha incompatibilidade com computadores (eles não gostam de mim, mas em contrapartida eu também não gosto deles) me impeça de fazer o que qualquer criança de 3 anos faz sorrindo.

lionelfischer54@hotmail.com

Beijos,

Lionel
Molière
(Jean-Baptiste Poquelin)
(1622-1673)

Senhor, eis que o assunto é delicado;
O fogo da poesia é sempre amado.
A alguém inominável eu disse, um dia,
Falando em poemas de sua autoria,
Que homens de bem deviam se conter
No que concerne à ânsia de escrever;
Que convém controlar a propensão
De expor a diminuta vocação;
E que, ao exibir a obra de arte,
Muitas vezes, do bobo é a nossa parte.


As palavras são de Alceste, protagonista de O misantropo, com elas cativando-me o coração, pois expressam o meu sofrimento diário, ao ser inundado de má poesia (a contragosto). Por ser um satirista, Alceste não desperta o fascínio da maioria dos críticos de Molière, que se melindram com os escessos das impagáveis tiradas do misantropo. Mas, vale lembrar, críticos não costumam ver com bons olhos personagens dramáticos ambivalentes, e Alceste, dotado de fervorosa sinceridade, proclama a própria autenticidade com demasiada veemência, sendo incapaz de enxergar o seu intenso amor-próprio e excessivo egocentrismo.

É possível considerar Alceste um Hamlet cômico, que, ao contrário de Hamlet, não tem o menor senso de humor. Todavia, Hamlet, mesmo na loucura, não atua como bobo; Alceste, às vezes, o faz. Porém, mesmo nesses momentos, Alceste preserva uma contumaz dignidade estética.

O gênio cômico de Molière é tão absoluto quanto sutil: Alceste, quando bem representado, é cômico, mas, se houver uma verdade, e se for plausível representá-la no palco, Alceste pode muito bem encarnar um aspecto nítido dessa verdade. Tanto quanto Shakespeare, Molière iniciou componto farsas e desenvolveu-se em um mestre da comédia intelectual. Aí termina a comparação: Molière, a despeito das ambigüuidades de Dom Juan, não procederia a escrever tragédias.

A vida interior de Shakespeare permanece desconhecida; a de Molière, ao que tudo indica, foi extremamente infeliz. Era uma figura melancólica e, segundo consta, um marido enganado, além de depender, totalmente, da proteção do Rei Sol, Luís XIV, que, felizmente, era dotado de apurado gosto literário. De um modo bastante complexo, Molière está sempre presente em suas comédias, e talvez ele fosse mais Alceste do que o próprio Alceste.

Depois de Shakespeare, os maiores dramaturgos ocidentais são Molière e Ibsen. Racine, Schiller, Strindberg e Pirandello têm os seus adeptos, e Racine, particularmente, é um artista exepcional, mas Molière parece ser a única alternativa válida a Shakespeare, o que não significa que alternativas a Shakespeare sejam necessárias. Tanto quanto a de Shakespeare, a personalidade de Molière é desconhecida. No mais das vezes, temos descrições de Molière, por parte de inimigos moralistas, o que não nos interessa. A auto-representação em Ensaio de Versalhes contém uma ironia heróica, e estabelece fascinante contraste com Hamlet ensaiando os atores, ou com Peter Quince dirigindo o indirigível Bottom.

De modo geral, é possível afirmar que as melhores comédias de Molière não transpõem a fronteira da tragicomédia porque o autor, em absoluto, não faz uso de personagens normativos (à exceção da presença implícita do deus mortal, Luís XIV). Até as figuras mais admiráveis por ele construídas são crivadas de defeitos; a mais admirável de todas é Alceste, o misantropo, tantas vezes malhado por críticos que deveriam ser mais avisados. Admito que Alceste careça tanto de humor quanto de amor, mas é um grande satirista, dotado de inteligência moral superior, apanhado em uma comédia de gênio, o gênio de Molière.

Molière não permite que seus personagens se desenvolvam, paradoxo no qual ele aprisiona Alceste. Torna-se possível perceber, mais uma vez, porque Voltaire, insensatamente, considerava Shakespeare um bárbaro: Hamlet é incapaz de dizer um único verso sem crescer enquanto personagem. Embora mais jovem, Molière foi contemporâneo de Pierre Corneille (1606-1684) e apoiou o início da carreira de Jean Racine (1639-1699). A corte de Luís XIV abrigou os três dramaturgos, os dois trágicos heróicos e o surpreendente cômico, cujas peças são inteiramente desvinvuladas da glória do Império Romano.

Um modo de apreender o gênio singular de Molière é ler um pequeno livro, sábio e sutil, escrito pelo notável ficcionista Louis Auchincloss. O estudo, intitulado La gloire: The Roman Empire of Corneille and Racine (1966), não faz menção a Molière, nem deveria fazê-lo, mas intriga-me a possibilidade de uma relação entre o impulso de autenticidade evidente em Alceste e a esplêndida definição proposta por Auchincloss para Gloire.

Gloire pode ser definida como o elevado ideal que o herói (e, mais raramente, a heroína) estabelece para si mesmo, e que ele acredita ser seu destino ou missão no mundo. Gloire deve ser defendida a todo custo, seja com a própria vida ou com a vida de terceiros, neste caso, não importa em que quantidade.

Não acredito que a busca de Alceste seja uma paródia a Corneille e Racine, mas uma redefinição cômica de Gloire, enquanto o Dom Juam de Molière exprime a transformação de Gloire em uma vertente erótica, que oscila, tropegamente, entre comédia, sátira e uma espécie de tragédia. Em 30 anos de teatro, Molière compôs apenas sete peças dignas de seu gênio: A escola de mulheres, As preciosas ridículas, O avarento, O burguês fidalgo e a grande tríade - Tartufo, Dom Juam e O misantropo.

Em que pese o apoio e a proteção do Rei Sol, Tartufo foi proibida e Dom Juan suspensa após 15 apresentações. A ansiedade de Shakespeare com respeito à autoridade, obviamente, levou-o a abandonar Tróilo e Créssida (que jamais foi encenada), mas e se as duas partes de Henrique IV, peças em que consta a grande figura de Falstaff, houvessem sido impedidas de ir à cena, e o mesmo ocorresse com Antôio e Cleópatra? Será que Shakespeare teria vingado?

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O presente artigo, aqui resumido, consta do livro Gênio, de Harold Bloom

terça-feira, 21 de julho de 2009

Educação Dramática

Por que você ensina meu filho a fazer teatro?, perguntou um dos pais. "Eu não quero que ele vá para o palco".
"Mas, nem eu quero".
"Então, por que você não lhe ensina algo importante, como matemática ou redação?"

Há alguns anos, este tipo de oposição à Educação Dramática, por parte dos pais, era considerável. Existe ainda hoje, mas não se compara ao que foi vinte anos atrás. Está fundamentada em impressões errôneas.

Em primeiro lugar, a idéia de que forçando a criança a fazer contas e a redigir estamos provendo sua educação. Temos de convencer os pais de que matemática e redação são melhor assimiladas quando a criança deseja fazê-lo; se conseguirmos obter a mesma vitalidade de que a criança dispõe em seus momentos de recreação e canalizá-la para suas lições, teremos a base de uma verdadeira e permanente educação.

Em segundo lugar, a idéia de que a Educação Dramática é um "treinamento para o palco". Não o é. Em essência, Educação Dramática é a criança jogando dramaticamente. Ocorre quando os garotos estão brincando na rua de "mocinho e bandido", ou quando uma menina conversa com suas bonecas enquanto as veste.

Com crianças de 6 anos de idade, a professora toca um tamborim e lhes pergunta o que esse som as faz recordar: trens, talvez - então, somos todos trens, movendo-nos juntos, imitando seus movimentos e ruídos.

Às crianças de 12 anos podemos pedir que inventem seu próprio jogo (improvisar), concentrando-se no clímax; estaremos ainda mantendo os elementos do jogo dramático, mas agora canalizando-os para o uso criativo da forma.

Com os de 14 anos, talvez, estaremos trabalhando no palco (ou não necessariamente), mas, em essência, estaremos ainda pedindo à criança para jogar dramaticamente. Quando o "teatro" aparece, ocore acidentalmente. Portanto, devemos fazer distinção entre os termos:

Teatro - representar perante uma platéia.

Jogo - atividade a que nos dedicamos simplesmente porque a desfrutamos.

Jogo Dramático - jogo que contém personificação e/ou identificação.

Jogo de Regra - formalização do jogo em modelos com regras.

A Educação Dramática está baseada no jogo dramático que é adotado em uma escola visando favorecer o desenvolvimentoi da criança.

Mas, como, precisamente, o "teatro" entra nesse esquema? A maioria das crianças necessita do "teatro" para o seu natural jogo de faz-de-conta. O professor permite que isso aconteça como e quando a criança o solicite. Não estamos, porém, deliberada e metodicamente introduzindo a criança na técnica do palco. Isso pode acontecer com adultos - não com crianças. À medida que os estudantes se desenvolvem, o "teatro" entra cada vez mais na Educação Dramática, até que, uma vez no Colégio ou na Universidade, o "teatro" se tenha mesclado com o jogo dramático. Podemos, portanto, distinguir os seguintes estágios da Educação Dramática:

Primário (5 - 11 anos): jogo dramático

Secundário (11-18 anos): jogo dramático combinado com "teatro".

Terciário (18+ anos): "teatro" baseado no jogo dramático.

Estas divisões são muito aproximadas e variam consideravelmente de criança para criança. Mas, essencialmente, COMEÇAMOS COM A CRIANÇA. Não principiamos com a idéia de para onde esta forma de educação nos está conduzindo porque, se o fizéssemos, estaríamos impondo nossas idéias à criança; preferivelmente, começamos com cada criança individualmente, vendo-a trabalhar dramaticamente e tentando conduzi-la gradativamente - no seu próprio passo e no seu próprio tempo.

A diferença entre essas duas abordagens pode ser observada na atitude com relação ao "teatro": na primeira, a criança é instruída em técnica teatral, dicção, movimentação de cena, e assim por diante, de acordo com um programa específico - estes elementos são ensinados em idades e graus de aptidão específicos, considerados "adequados" por um adulto; na segunda, a criança joga dramaticamente e é introduzida em habilidades técnicas específicas, como e quando necessitá-las para seu próprio desenvolvimento pessoal.

Em uma situação escolar, devemos dintinguir entre os dois principais componentes da Educação Dramática:

1. Método Dramático - utilização do jogo dramático na aprendizagem de várias disciplinas (experiência e conhecimento de história, geografia, matemática etc.)

2. Teatro como tal - jogo dramático com fim em si mesmo, voltado apenas para o desenvolvimento pessoal da criança, e como disciplina independente no currículo; e aqui encontramos os vários elementos da matéria:

Improvisação - teatro criativo
Movimento criativo.
Discurso criativo
Teatro - com estudantes mais velhos.

Esta maneira de encarar a educação é relativamente nova, tendo-se desenvolvido natural e paulatinamente, e está na corrente principal do pensamento moderno europeu. Suas origens, na filosofia, se remetem a Platão, Aristóteles, Rabelais e Rousseau. Fundamenta-se tanto na antropologia e psicologia sociais quanto na psicanálise e psicoterapia infantil. Origina-se, em parte, nas modernas teorias do conhecimento, nas teorias behavioristas da imitação, na psicolinguística e na psicologia do desenvolvimento de Piaget. Neste contexto, é o centro da eduação criativa moderna: dela brotam todas as artes e todos os métodos científicos se desenvolvem através dela.

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Fragmento extraído do livro Jogo, teatro & pensamento, de Richard Courtney (Editora Perspectiva, coleção Estudos/1980.