quarta-feira, 31 de maio de 2017

Teatro/CRÍTICA

"ELA"

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Sensível abordagem do amor e da finitude

Lionel Fischer



"Clara e Isabel são lindas, jovens, talentosas e vivem um grande amor. Mas o sentido da vida entra em xeque diante do diagnóstico de ELA. Cada vez mais ausente fisicamente, o tempo de Clara se expande em sua vida interior, comparecendo em cena através de memórias e delírios que nos fazem pensar no que seja a mente humana. Enquanto isso, com apoio de Paula, médica e amiga de infância, Isabel dá conta da realidade, galgando íngremes fronteiras com poder e coragem que jamais soube que poderia ter. Embora a doença as tenha enfraquecido, ELA fortaleceu os laços que as une".

Extraído do release que me foi enviado, o trecho acima sintetiza o enredo de "ELA", de autoria de Marcia Zanelatto. A montagem esteve em cartaz até o último domingo no Teatro III do CCBB, e retorna à cena em 31 de Julho, no Teatro Sesi, com a mesma equipe - Paulo Verlings na direção e elenco formado por Carolina Pismel, Elisabeth Monteiro e Patrícia Elizardo.

Ao contrário do que parece - ao menos para os que não assistiram a montagem - ELA não é um pronome e sim o nome de uma doença degenerativa incurável, que aos poucos, mas de forma inexorável, paralisa os movimentos, ainda que mantendo o cérebro intacto. Ou seja: o portador de tal moléstia jamais perde a consciência do final que o aguarda, assim configurando um quadro terrivelmente trágico.

Como explicitado no parágrafo inicial, estamos diante de uma bela história de amor, teoricamente fadada a durar por muito tempo - o casal alimenta, inclusive, o desejo de ter um filho. Mas aí entra em cena o mais indesejado dos personagens, que podemos chamar de Destino ou simplesmente a Vontade de Deus - há uma cena em que Isabel implora a Deus para que Clara não lhe seja levada, até que, finalmente convencida de que seus apelos são inúteis, lança terríveis imprecações contra o Senhor.   

Como todos sabemos, tudo pode acabar a qualquer momento. Mas a certeza de que existe um curto prazo e que nada pode alterá-lo, gera normalmente duas escolhas. A primeira: uma espécie de resignação, de aceitação do inevitável. A segunda: o desejo desesperado de encontrar uma saída, de acreditar que possa existir algum tipo de tratamento, ainda que não testado o suficiente, mas que talvez dê algum resultado. 

E é isso que Isabel faz, apelando à amiga médica para que tente tudo, insistindo não ser possível a inexistência de uma ínfima possibilidade senão de cura, mas ao menos de retardamento do inevitável. Mas não existe essa possibilidade e Clara acaba propondo que ambas se separem, assim objetivando evitar o atroz sofrimento de Isabel. Mas esta não aceita, como jamais aceitaria alguém que ama verdadeiramente.   

Estamos, portanto, diante de um contexto de alta dramaticidade, que a autora enfatiza através de alternâncias no tempo - se por um lado logo percebemos que a personagem está condenada, tal condenação se torna ainda mais dolorosa quando vemos as personagens felizes, fazendo planos ou até mesmo se desentendendo, o que sempre ocorre com todos os casais. 

Ou seja: se a estrutura narrativa fosse cronológica, a peça nos mostraria o início da relação entre Isabel e Clara, o aprofundamento desta relação, a decisão de morarem juntas e assim por diante, até o momento do diagnóstico. A partir daí, e sempre respeitando a cronologia, tudo se limitaria à forma como as personagens lidariam com a doença. Essa estrutura não seria equivocada e também poderia gerar um texto do mais alto interesse. Mas as já mencionadas idas e vindas no tempo nos obrigam a uma permanente alternância de emoções - ora nos encantamos com o amor entre as personagens, e torcemos por este amor, ora nosso coração se aperta, pois já sabemos o que vai acontecer. Neste sentido, Marcia Zanelatto chega a ser cruel, mas como sua crueldade é de natureza artística, está completamente perdoada.

Outro fator a destacar neste ótimo texto diz respeito às memórias e delírios de Clara, às reflexões que faz sobre seu passado e sobre sua condição atual, as primeiras impregnadas de encantamento e doçura, as segundas de uma lucidez que a leva a perceber que, se por um lado seu corpo se paralisou, em contrapartida sua mente se expandiu. Se não fosse a doença, Clara jamais teria se conhecido tão profundamente. E é isso que contribui ao menos para minimizar sua consciência da própria e próxima finitude.

Bem escrito, contendo ótimos personagens e diálogos que traduzem exemplarmente todos os conteúdos em jogo, ELA recebeu excelente versão cênica de Paulo Verlings. E aqui não me refiro tanto às marcações, ainda que expressivas, mas sobretudo à sua atuação junto ao elenco. E neste particular gostaria de manifestar minha admiração pela coragem do diretor no que diz respeito à valorização dos silêncios. Há momentos em que palavras não são capazes de expressar uma dor que as transcende e então o encenador aposta tudo no grito que não sai, no corpo petrificado pela angústia, nas lágrimas que a alma despeja e que escorrem lentamente por um rosto dilacerado. Sob todos os aspectos, Paulo Verlings evidencia notável capacidade de extrair o máximo do elenco.

Na pele de Isabel, Carolina Pismel exibe a melhor performance de sua carreira, valorizando de forma impecável as principais características da personagem, dentre elas sua personalidade forte, algo intempestiva e autoritária, mas também capaz de amar de forma incondicional e de ser incondicionalmente solidária nos momentos mais dolorosos. Elisabeth Monteiro também exibe atuação irrepreensível, tanto nas passagens amorosas e divertidas quanto naquelas em que se vê obrigada a lidar com a tragédia que sobre ela se abateu. No papel da médica, Patrícia Elizardo funciona como uma espécie de contraponto entre Clara e Isabel, vivendo de forma intensa e convincente os momentos mais dolorosos e, quando o contexto permite, evidenciando ótimo potencial de comediante.

Na equipe técnica, parabenizo com o mesmo entusiasmo as preciosas colaborações de Mina Quental (cenografia), Marcelo H (direção musical), Lavínia Bizzotto (direção de movimento), Flavio Souza (figurino), Fernanda e Tiago Mantovani (iluminação), Verônica Machado (preparação vocal) e Vini Kilesse (visagismo).

ELA - Texto de Marcia Zanelatto. Direção de Paulo Verlings. Com Carolina Pismel, Elisabeth Monteiro e Patrícia Elizardo. A montagem volta ao cartaz em 31 de julho, no Teatro Sesi.









quinta-feira, 25 de maio de 2017

Teatro/CRÍTICA

"Minha vida em Marte"

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Olhar acurado sobre o universo dos afetos


Lionel Fischer


Em "Os homens são de Marte...e é pra lá que eu vou", Fernanda procurava desesperadamente encontrar o grande amor. Agora a personagem está de volta, só que casada há oito anos com Tom e mãe de Joana, de cinco anos. Mas o tão almejado objetivo passa por uma crise: Fernanda não está conseguindo lidar com algumas questões que inevitavelmente surgem em uma longa relação. E então recorre à terapia de grupo, onde expõe variados assuntos de sua intimidade, ao que parece ainda acreditando que os problemas podem ser sanados.

Eis, em resumo, o contexto de "Minha vida em Marte", de autoria de Mônica Martelli, em cartaz no Teatro dos Quatro. A atriz volta a encarnar a personagem, estando a direção do espetáculo a cargo de Susana Garcia.

Como todos sabemos, da mesma forma que é impossível levar um barco sem temporais, só alguém possuidor de extrema ingenuidade pode acreditar que um longo relacionamento jamais sofrerá qualquer abalo. No entanto, há abalos e abalos. Alguns superáveis, outros não. Às vezes o barco pode seguir seu curso, ainda que meio avariado. Mas às vezes o naufrágio é inevitável. 

E se isso acontece, o que se pode fazer para retomar o leme da própria vida? Como seguir adiante quando a ilusão de que o amor seria eterno já se desfez completamente? Como evitar a sensação de fracasso, mesmo que o casamento tenha tido ótimos momentos? Como banir a falsa impressão de que o outro (a) levou consigo o que de melhor possuíamos e que agora estamos vazios, e portanto incapazes de gerar interesse? 

Desconheço a trajetória amorosa de Mônica Martelli. Mas acredito que muito do que viveu esteja presente neste delicioso texto, afora passagens certamente inventadas. Mas o que importa ressaltar é a sua capacidade de mergulhar profundamente no universo dos afetos, ora priorizando o humor, ora permitindo que a dramaticidade prevaleça. 

Em dados momentos, Fernanda exibe um furor em tudo semelhante ao das grandes tempestades. Em outras passagens, a carência e a desproteção a convertem em uma adolescente atribulada e atônita. E é essa permanente alternância de climas emocionais que tornam Fernanda tão humana, tão próxima de todos nós. E se porventura alguém não se identificar com o que é exibido, certamente é porque nunca foi ou não está casado...

Com relação ao espetáculo, Susana Garcia impõe à cena uma dinâmica em total sintonia com o material dramatúrgico. Valendo-se de marcações criativas e imprevistas, a encenadora contribui de forma decisiva para a máxima valorização de todas as questões contidas no texto. Além disso, exibe o mérito suplementar de haver contribuído para a ótima performance da atriz. Possuidora de grande carisma, forte presença cênica, impecável domínio vocal e corporal, e dotada de um tempo de comédia realmente admirável, Mônica Martelli é uma atriz completa, e vê-la em cena constitui um verdadeiro privilégio. 

Na equipe técnica, considero irretocáveis as contribuições de todos os profissionais envolvidos nesta divertida e emocionante empreitada teatral - Flávio Graff (cenografia), Marcella Virzi 
(figurino), Maneco Quinderé (iluminação) e Marcia Rubin (direção de movimento).

MINHA VIDA EM MARTE - Texto e interpretação de Mônica Martelli. Direção de Susana Garcia. Teatro dos Quatro. Sexta e sábado, 21h. Domingo, 20h.







   

segunda-feira, 22 de maio de 2017

Teatro/CRÍTICA

"Adeus, palhaços mortos"

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Inesquecível encontro no Sesc

Lionel Fischer


"A obra expõe de maneira provocativa e impactante três velhos palhaços de circo que acidentalmente se reencontram, depois de muitos anos, na antessala de uma agência de empregos. Eles sabem que só um será escolhido. Então suas amizades, memórias, segredos, pequenezas e vilanias serão expostos, criando, dessa maneira, uma ode ao ofício do ator e uma profunda reflexão sobre os fundamentos filosóficos da carreira artística. A sala de espera desse teste de casting, que nunca acontece, se revela um não-lugar, um limbo onde estas três figuras se veem condenadas a rever suas escolhas éticas e estéticas, num exercício infinito de reflexão sobre a resiliência do artista, a urgência da Arte e a sacralidade do ofício".

O trecho acima, extraído do release que me foi enviado, expõe o contexto e os principais temas de "Adeus, palhaços mortos", de autoria de Matei Visniec. Após cumprir belíssima temporada em São Paulo, onde colecionou prêmios e indicações, o espetáculo está em cartaz no Sesc Copacabana (Mezanino). José Roberto Jardim responde pela adaptação do texto e direção da montagem, mais recente criação da companhia Academia de Palhaços. No elenco, Laíza Dantas, Paula Hemsi e Rodrigo Pocidônio. 

Antes de mais nada, devo confessar que muitas das considerações que faria já estão expostas no parágrafo inicial, como já disse extraído do (ótimo) release que me foi enviado. Mas talvez ainda possa fazer breves conjecturas, quem sabe possuidoras de alguma pertinência. Vamos, pois, a elas.

Curiosamente, ao menos para mim, o espetáculo começa fora do Mezanino. E isto se dá da seguinte maneira: uma jovem, cuja beleza equivale à sua simpatia, oferece a cada espectador a possibilidade de levar consigo um protetor auricular, prevenindo que a dita oferta se deve ao fato de que o som do espetáculo é muito alto e alguém poderá se sentir incomodado. Diante disto, me vi tomado por hamletiana dúvida: levo ou não levo? Acabei levando, basicamente por temor de que uma recusa poderia gerar irremediável arrependimento. Mas acabei não usando o delicado protetor e lamentavelmente me esqueci de devolvê-lo ao final do espetáculo...

Uma vez instalado em meu lugar, duas coisas me chamaram a atenção. A primeira: no lado esquerdo do espaço, um homem manipulava uma gigantesca mesa de som. A segunda: a presença de um cubo de três faces que me levou a acreditar que a montagem aconteceria ali dentro - estava parcialmente certo. De repente, o som se torna mais violento e começam a ser projetados, na face frontal do cubo, trechos de vídeos em um ritmo alucinado, que não permitem, a meu ver propositadamente, uma confortável apreensão do que é exibido - mas é possível que as imagens exibam registros da trajetória do grupo. 

Finalmente, esses vídeos são interrompidos e uma luz permite que se veja uma figura dentro do cubo. A partir daí, e com o desenrolar da peça, grafismos abstratos se incorporam à iluminação, e somos sempre surpreendidos com imprevistos cortes e deslocamentos, que contribuem de forma decisiva para alterar nossa percepção do que é exibido, eliminando qualquer possibilidade de nos sentirmos confortáveis - neste sentido, não custa nada enfatizar que o fenômeno teatral pode gerar tudo, menos conforto. 

Até que chega o momento em que a montagem parece haver terminado. Uma atriz permanece dentro do cubo manipulando um celular, outra sai do espaço, descansa, se alonga e bebe água; o ator se senta junto aos espectadores e ali permanece sem fazer nada. Passado um tempo - talvez excessivo, única ressalva que faço ao espetáculo - a atriz e o ator voltam ao cubo e tudo recomeça, só que agora num ritmo ainda mais alucinado e com as partes faladas reduzidas. É a segunda sessão, que só não chega à terceira porque a atriz, que antes saíra, é impedida de fazê-lo por aquela que, no intervalo, manipulava o celular. Trata-se, sob todos os aspectos, de uma ideia brilhante, em total sintonia com o material dramatúrgico. 
E por que se dá essa sintonia?

Os personagens estão à espera de alguém que jamais chegará, como em "Esperando Godot", e como se mostram impotentes para tomar qualquer decisão quanto ao futuro, estão como que imobilizados no tempo e assim condenados à eterna repetição de falas e de gestos dos quais não conseguem se libertar, assim como fracassam ao apelar para as respectivas memórias em busca de algum alento. Mas é tudo inútil, pois o suposto e glorioso passado de cada um é sempre contestado pelos outros, e jamais se chega a saber se algum deles tem efetivamente algo do que se orgulhar de sua carreira. 

Assim, como que reduzidos à condição de náufragos de si mesmos, os personagens, ao menos em alguma medida, parecem dar razão a Jean-Paul Sarte, que em "Entre quatro paredes" sustenta que o inferno são os outros. No entanto, e mesmo que vitimados pela mesma desesperança, os personagens ainda conseguem empreender profundas reflexões sobre a Arte e o ofício do ator, o que confere especial grandeza ao maravilhoso texto de Matei Visniec.

Responsável pela excelente adaptação e por uma dinâmica cênica que se insere entre as mais brilhantes que já assisti, José Roberto Jardim exibe o mérito suplementar de haver extraído excelentes performances do elenco, tanto em termos vocais como corporais. Laíza Dantas, Paula Hemsi e Rodrigo Pocidônio são intérpretes cuja expressividade não advém apenas de seus vastos recursos, mas também da plena compreensão da obra em que atuam e de sua visceral capacidade de entrega. A todos, portanto, agradeço o inesquecível encontro que me proporcionaram.

Na equipe técnica, parabenizo a todos com o mesmo entusiasmo - Tiago de Mello (direção musical e trilha sonora original ao vivo), BijaRi (cenografia e vídeo-instalação), Lino Villaventura (figurino), Leopoldo Pacheco (visagismo) e Paula Hemsi e José Roberto jardim (iluminação).

ADEUS, PALHAÇOS MORTOS - Texto de Matei Visniec. Direção e adaptação de José Roberto jardim. Com Laíza Dantas, Paula Hemsi e Rodrigo Pocidônio. Sesc Copacabana (Mezanino). Quinta a sábado, 21h. Domingo, 20h. 








Amigos,
Nesse mês de maio, no dia 26, às 18 h, na Sala Vera Janacópulos da UNIRIO, discutiremos um filme surpreendente, tanto pelos prêmios obtidos como pela temática bem construída e interpretada, que nos coloca diante de algumas questões instigantes. Um sucesso do diretor e roteirista  Kenneth Lonergan  que investiga os conflitos de jovem faz-tudo que regressa à sua cidade natal – MANCHESTER À BEIRA-MAR – para cuidar de seu sobrinho, cujo pai havia falecido. Esse retorno ao passado de Lee Chandler é o início de um enfrentamento das razões que o fizeram ir embora e deixar sua família há muitos anos atrás. A razão é desvendada aos poucos, em flashbacks longos, que cortam a narrativa sem aviso, mas com profundidade.
Como sempre, aguardamos todos vocês para mais um debate instigador e contamos com a divulgação aos amigos e aos interessados no viés cultural e psicanalítico.
Um abraço de Ana Lúcia de Castro e Neilton Silva.

terça-feira, 16 de maio de 2017

Teatro/CRÍTICA


"Hollywood"

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O eterno conflito entre Arte e Comércio



Lionel Fischer



Tony Miller acaba de ser promovido a diretor de produção de um grande estúdio cinematográfico, cuja função reside basicamente em selecionar projetos capazes de fazer sucesso. E é o que lhe oferece seu amigo Daniel Fox - uma história ridícula, mas que pode ser protagonizada por um grande astro. Nesse meio tempo, ambos entram em contato com Karen, uma jovem e atraente secretária, que está ali apenas para substituir por um dia a titular do cargo. Tony a encarrega de ler um livro (que poderia se converter em roteiro) e propõe encontrá-la em sua casa. Isso acaba acontecendo e Tony fica totalmente mobilizado com a narrativa que lhe é resumida pela tal secretária. No dia seguinte, comunica a Daniel que não está mais interessado no projeto que ele lhe apresentou. E a partir daí, os conflitos se estabelecem.

Eis, em resumo, o enredo de "Hollywood", terceira peça da Trilogia Mamet, idealizada pelo diretor Gustavo Paso e a Cia. Teatro Epigenia. De autoria de David Mamet, o texto está em cartaz no Teatro Poeira, com direção de Paso e elenco formado por Cláudio Gabriel (Tony Miller), Luciana Fávero (Karen) e Gustavo Falcão, que faz o papel de Daniel Fox às quintas e sextas, cabendo a Ricardo Pereira representá-lo aos sábados e domingos - assisti o espetáculo com Gustavo Falcão.

Se por um lado fica claro, como bem exposto no release que me foi enviado, que o tema central da peça é o eterno confronto entre Arte e Entretenimento, com digressões a respeito do papel das artes no mundo e qual seria a fronteira entre arte e comércio, acredito que o mundialmente aclamado texto de David Mamet contém aspectos bastante questionáveis. Vamos, pois, a eles.

Estamos diante de um homem que trabalha há 11 anos na indústria cinematográfica e que acaba de ser promovido ao importante cargo de diretor de produção, como já foi dito. Ao tomar conhecimento do projeto que lhe é apresentado por seu amigo, e embora o considere ridículo, percebe seu potencial de gerar dinheiro, desde que protagonizado por um astro e então se mostra disposto a dar seu aval. Até aí, nenhuma questão, nenhuma novidade, pois de uma maneira geral os grandes estúdios cinematográficos norte-americanos, quando trabalham com vultosos orçamentos, visam fundamentalmente o lucro.

No entanto, quando Tony Miller está na casa da secretária e ela lhe resume o conteúdo do livro - fala-se de amor, fraternidade, de significativas descobertas interiores, da relação que podemos ter com o planeta e assim por diante -, o executivo fica tão tocado que resolve produzir a história, abortando a que lhe foi proposta por seu amigo. E mesmo que, ao longo das discussões posteriores que ambos travam, fique claro que Tony detém poder suficiente para produzir filmes de baixo orçamento sem consultar seu chefe, me pareceu totalmente implausível o abalo que ele sofre com uma história que aborda questões que, ao menos em princípio, não seriam capazes de abalar um homem cujo perfil é o de alguém cuja função não é a de levar em conta belos sentimentos e sim o lucro.

Outra questão diz respeito à reviravolta final. Ainda no início da trama, e diante de uma secretária jovem e atraente, os dois executivos fazem uma espécie de aposta: Tony garante ao amigo que ainda naquela noite irá se encontrar com Karen na casa dela. Com que objetivo? Ouvir o que ela achou do livro? É óbvio que não, o que já indicaria o caráter em geral execrável daqueles que detêm um grande poder. Mas ambos acabam não transando, possivelmente em função do já mencionado abalo do executivo. 

No entanto, e já perto do desfecho, Daniel pergunta à secretária se ela teria se envolvido com Tony se ele se dispusesse a produzir um filme baseado no livro. Ela diz que sim. Atônito, Tony faz a pergunta inversa, ou seja, se ela teria se envolvido com ele mesmo que o livro jamais chegasse às telas. Ela responde que não. E então é expulsa da sala com grande virulência. E os dois amigos, após terem trocado insultos e agressões, acabam se entendendo - afinal, são essencialmente homens de negócio...

Ressalvas feitas, é inegável a habilidade de David Mamet de criar excelentes diálogos e explorar pertinentes contradições inerentes à contemporaneidade. E a montagem de Gustavo Paso, em termos de dinâmica cênica, valoriza com vigor os conflitos em causa, valendo-se de marcações que surpreendem ora pela virulência, ora pela imprevisibilidade. No entanto, no que concerne ao seu trabalho junto ao elenco, me permito um questionamento, referente à performance de Gustavo Falcão.

Falcão é um ator de reconhecido mérito, que sempre se entrega de forma visceral a todos os personagens que interpreta. No entanto, aqui ele trabalha numa chave (certamente aprovada ou estimulada pela direção) tão exasperada, tão paroxística, seja em termos vocais quanto corporais, que acaba reduzindo Daniel Fox a um ser cuja permanente histeria inviabiliza qualquer tipo de sutileza. Luciana Fávero defende uma personagem em cuja essência repousa a dubiedade. Se por um lado Karen aparenta ser uma mulher do bem, supostamente interessada em preciosas questões relativas ao afeto e a comunhão entre as pessoas, ao mesmo tempo, quando é desmascarada, exibe uma impressionante frieza. Em ambas as situações a atriz exibe segura e precisa atuação. Quanto a Cláudio Gabriel, e mesmo levando-se em conta meus questionamentos a respeito da essência do caráter do personagem, ainda assim o ator o valoriza ao máximo, tanto nas passagens em que encarna o cínico e frio executivo quanto naquelas em que ameaça se desestruturar em função de algo que, como já foi dito, em minha opinião jamais o desestruturaria.

No tocante à equipe técnica, considero de excelente nível as contribuições de Flávio Marinho e Gustavo Paso (tradução), Gustavo Paso (cenografia), Sônia Soares (figurinos), Paulo Cesar Medeiros (iluminação) e André Poyart (trilha sonora).

HOLLYWOOD - Texto de David Mamet. Direção de Gustavo Paso. Com Ricardo Pereira e Gustavo Falcão (alternando-se no mesmo personagem), Cláudio Gabriel e Luciana Fávero. Teatro Poeira. Quinta a sábado, 21h. Domingo, 19h.    






     



segunda-feira, 15 de maio de 2017

Teatro/CRÍTICA

"E se eu não te amar amanhã?"

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Sensível e divertida comédia romântica


Lionel Fischer


"Samantha, atriz de novelas, e Gustavo, escritor sem inspiração, acabaram de se separar por causa de uma aparente bobagem. E parecem aceitar o fato de que o casamento deles não tem mais volta. Mas o amigo Zé Roberto não consegue conceber que aquele casal, que ele tanto amou, não estará mais junto. E através de sua tentativa frustrada de unir novamente os dois, e de Suelen, garota de programa transsexual contratada por Gustavo, a peça mergulha num quebra-cabeças em que os personagens aos poucos vão descortinando seus medos e desejos. E a trama, que antes parecia uma comédia romântica inofensiva, se revela como uma profunda reflexão das relações amorosas contemporâneas".


Extraído (e levemente editado) do release que me foi enviado, o trecho acima resume o enredo de "E se eu não te amar amanhã?", em cartaz no Teatro do Leblon. Julia Spadaccini assina o texto, estando a direção a cargo da cineasta Sandra Werneck, que faz sua estreia como diretora teatral - Michel Blois responde pela codireção. No elenco, Luana Piovani, Leonardo Medeiros e Marcelo Laham.

Como se sabe, muitas peças já foram escritas sobre relacionamentos amorosos, e nada me impede de acreditar que o tema continue a ser explorado. E embora o resumo do enredo, exposto no parágrafo inicial, aborde o que ele possui de mais essencial, me permito discordar da afirmativa a trama, que antes parecia uma comédia romântica inofensiva, se revela uma profunda reflexão das relações amorosas contemporâneas.

Antes de mais nada, não sei exatamente o que se pretendeu dizer com "comédia inofensiva" - é possível que o objetivo tenha sido o de classificá-la como leve, sem maiores pretensões. Mas quanto a profunda reflexão das relações amorosas contemporâneas, em nenhum momento consegui detectar tal profundidade, pois embora os conflitos abordados não deixem de ser pertinentes, a leveza e o humor com que são tratados inviabiliza a profunda reflexão pretendida. No entanto, isso não significa que a peça careça de méritos, muito pelo contrário: Julia Spadaccini criou uma narrativa fluente, ótimos personagens e diálogos que prendem a atenção do espectador ao longo de toda a montagem.

Com relação ao espetáculo, Sandra Werneck faz uma ótima estreia como diretora teatral, criando uma dinâmica cênica que aproveita sua sólida experiência como cineasta, pois temos sempre a sensação de que tudo ocorre em um set de filmagem - todos os ambientes são vistos ao mesmo tempo, contrarregras colocam e recolocam objetos, fazem ajustes de luz e assim por diante. Afora isto, cabe à encenadora o mérito suplementar de haver extraído ótimas performances do elenco.

Luana Piovani, mais linda do que nunca, convence plenamente tanto na pele de Samantha quanto na da garota de programa transexual, estabelecendo impecável diversidade vocal e corporal entre ambas. Leonardo Medeiros, ator de bela trajetória profissional, trabalha com grande sensibilidade as principais características de Gustavo, tais como sua insegurança, amorosidade e, em alguma medida, o humor com que lida com sua aparente falta de talento. Com relação a Marcelo Laham, este converte Zé Roberto em um personagem adorável, pleno de afeto e acossado por dúvidas que aqui não cabe revelar, pois isso privaria o espectador de muitas surpresas, cabendo também registrar o excelente tempo de comédia do ator. 

No tocante à equipe técnica, parabenizo com o mesmo entusiasmo as preciosas colaborações de Aurora dos Campos (cenografia), Tomás Ribas (iluminação), Kika Lopes (figurinos), Diego Nardes (visagismo) e João Nabuco (trilha sonora original).

E SE EU NÃO TE AMAR AMANHÃ? - Texto de Julia Spadaccini. Direção de Sandra Werneck. Com Luana Piovani, Leonardo Medeiros e Marcelo Laham. Teatro do Leblon. Quinta a sábado, 21h. Domingo, 19h.












terça-feira, 9 de maio de 2017

ASPECTOS POÉTICOS E PEDAGÓGICOS NAS CRIAÇÕES TEATRAIS DE PETER BROOK E ARIANE MNOUCHKINE 

Gabriela P. Fregoneis 1 Luciana Paula Castilho Barone2 
Perspectiva, 20O Mosaico – Rev. Pesquisa em Artes/FAP, Curitiba, n.2, p.1-10, jul./dez. 2009 1 

RESUMO: Este artigo aborda um estudo comparativo entre os procedimentos teatrais do diretor inglês Peter Brook, fundador do Centro Internacional de Pesquisa Teatral, e da francesa Ariane Mnouchkine, diretora do Théâtre du Soleil, a partir da interculturalidade, dos processos de criação (e sua condução pedagógica) e da atualização de Shakespeare – analisando as diferenças entre as abordagens dos encenadores em cada um destes aspectos. PALAVRAS-CHAVE: Processos criativos; Pedagogia; Poética. 

ATUALIZAÇÃO DE SHAKESPEARE 


Quando comecei a trabalhar com Shakespeare, acreditava até certo ponto na possibilidade de uma música clássica das palavras, onde cada verso possuía seu som correto, apenas com leves variações, depois, a experiência prática me ensinou que isso era absolutamente falso. Quanto mais musical for a sua abordagem musical de Shakespeare – ou seja, quanto mais sensível você for à música-, tanto mais verá que não existe maneira, a não ser por puro pedantismo, de fixar a música a um verso. (BROOK, 1995, p.132) 

Outro ponto relevante para o diretor é a presença concomitante de poesia e prosa que os textos do dramaturgo oferecem, já que os versos livres dão grande margem à criação teatral. Para Brook, a temática das peças de Shakespeare é simples e complexa, humana e universal, fazendo com que elas ultrapassem a barreira do tempo, tornando-as eternamente contemporâneas. Essa riqueza em suas obras, faz com que encontremos personagens literários na vida cotidiana. Ele explica que “podemos ouvir o ritmo peculiar de sua fala (personagem), pelos quais nós o reconheceríamos de imediato como uma personagem da vida real, com um nome, como se a encontrássemos na rua.” (BROOK, 1995, p.119). 

Segundo o diretor, Shakespeare consegue desmascarar a sociedade e entregar mazelas humanas de maneira espetacular. Isso ocorre com maestria na peça A tempestade, última obra do escritor. Mas quando vemos que nada na peça é o que aparenta ser, como ela acontece em uma ilha e não numa ilha, de dia e não de dia, com uma tempestade que gera uma série de acontecimentos que ainda estão numa tempestade mesmo quando o temporal acabou, que a encantadora pastoral para crianças naturalmente abrange estupro, assassínio, conspiração e violência, quando começamos a exumar os temas que Shakespeare enterrou com tanto cuidado, verificamos que se trata da sua declaração derradeira e que abrange toda a condição humana. (BROOK, 1970, p.99).

Já para Ariane Mnouchkine, a importância de Shakespeare está na abordagem social e política de seus textos, pois sabemos que o dramaturgo escreveu muitas peças que relatavam fatos históricos e a sociedade em que eles estavam inseridos. Sendo assim, Ariane explorou essa forma dramatúrgica no Ciclo de Shakespeare, montado pelo Théâtre du Soleil no início da década de 80. “Shakespeare estava sendo visto como um modo de descobrir técnicas sobre relatos políticos e históricos, e a companhia começou a pesquisar a relação da história da Inglaterra com o texto de Ricardo II”. 

Outro ponto relevante diz respeito às temáticas abordadas em suas obras, a exemplo de Ricardo II (primeira encenação do Ciclo de Shakespeare). A estrutura dos textos serviu de base para descobrir formas dramatúrgicas que abordam relatos políticos e históricos. A companhia estabeleceu relações entre o texto Ricardo II e a história da Inglaterra para posteriormente relacionar esse texto com a cultura oriental, mais especificamente a japonesa. Assim surgiu o Ciclo que contou com mais duas peças: Noite de Reis (1982), que se apropriou de formas teatrais da Índia e Pérsia e Henrique IV (1984), também montado dentro das bases formais do teatro asiático. 

Ariane tratou este paralelo relacionando duas formas em constante amadurecimento: os textos de Shakespeare, que abordam temas inesgotáveis e têm uma dramaturgia rica (unindo prosa e verso) e o teatro asiático, que preserva uma teatralidade, apoiada em convenções e codificações, na transformação da realidade por meio de uma estética não realista. Patrice Pavis, em seu livro O teatro no cruzamento de culturas, distingue a visão dos dois encenadores frente às obras de Shakespeare, ressaltando que Brook vê nele um autor muito próximo e imediato, um “contemporâneo”, e já Mnouchkine está impressionada preferencialmente pela forma poética de sua escritura e pela mistura de proximidade e distância, de individualidade e coletividade. Focando o processo de criação dos espetáculos e sua condução pedagógica, iniciaremos analisando o trabalho desenvolvido por Peter Brook dentro de sua companhia. 

Antes de estudar os processos que envolvem especificamente espetáculos, destacaremos a trajetória do encenador pela busca da compreensão dos elementos que formam a ação cênica. Em 1971, o encenador viaja para o Irã com o intuito de estudar a força da linguagem na encenação, sendo que a maioria das improvisações era realizada em um gramelô. Essa pesquisa concretizou-se com a montagem da peça Orghast de Ted Hughes. 

Em dezembro de 1972, Brook viaja para a África com um grupo de 30 pessoas, para descobrir as condições reais para se formar uma platéia, qual o melhor jeito de chamar o público, qual o melhor período do dia, o que fazer quando há um pingo de gente (BROOK, 1995, p.157). Foi montada a peça A Conferência dos Pássaros para compreender com mais plenitude os vínculos existentes entre a verdade de uma forma e a qualidade daquilo que o público recebe. 

"Em 1973 apresentamos três versões diferentes. A apresentação das 20 horas poderia ser classificada como teatro bruto: vulgar, cômica, cheia de vida. A da meia-noite aproximou-se de uma busca do sagrado: profunda, sussurrada, à luz de velas. A versão final iniciou-se no escuro, às cinco da manhã, e terminou com o raiar do dia – assumiu a forma de um coral, e tudo aconteceu através do canto improvisado". (BROOK, 1995, p.207) 

Partindo para os processos de criação, o ator japonês Yoshi Oida em seu livro Um Ator Errante descreve procedimentos utilizados frequentemente pelo diretor em suas montagens, podendo destacar a não determinação de papéis na peça, sendo que os atores realizavam improvisações sobre todos os personagens, até o momento em que ele descobre, entre as múltiplas construções, a melhor. 

No começo dos ensaios, ele explica ao conjunto da equipe, incluindo cenógrafo, músicos, etc. qual a ideia do todo. Cada um parte para seu próprio trabalho criador, segundo a própria visão. Brook não interfere, a não ser que haja distanciamento da orientação de base. (OIDA, 1999, p.33) Objetivaremos agora processos de criação que permeiam algumas de suas montagens, iniciando com Orghast do inglês Ted Hughes. 

A peça conta as histórias de Prometeu, Hércules e Édipo, por meio de um texto escrito em uma língua fictícia, já destinada a uma companhia plurinacional, mesclando esperanto, grego arcaico, latim e avesta. A peça não conta com nenhum cenário nem figurino, apenas com uma necrópole em ruína. Nesta fase do trabalho, Brook direciona suas investigações para o Teatro sagrado, buscando trabalhar na preparação dos atores principalmente a sonoridade e intenção do texto e não o seu significado propriamente dito. 

Passado um tempo, nota-se que a peça estava focada apenas na sonoridade, carecendo dos movimentos do corpo. Logo, Brook levou seus atores para se apresentarem em uma escola de crianças surdas, para perceberem a vivacidade, eloqüência e rapidez de suas linguagens corporais. O objetivo de Brook era investigar o que acontece quando gesto e som tornam-se palavras. (BROOK, 1995, p.150). 

Processo semelhante acontece com a peça A tempestade, de Shakespeare, na qual Brook apresenta peças em escolas infantis, pois sabe que a espontaneidade das crianças (expressa por suas reações) indica os fatores mais relevantes da encenação. Os atores se adequam ao lugar (geralmente um porão velho e apertado) e aos objetos que os alunos possuem na sala de aula. É a partir dessas experiências que ele dá  continuidade a seu processo de criação, iniciado anteriormente com exercícios diários de improvisação, sem partir de idéias preconcebidas, realizando experimentações e análise racional do texto, para posteriormente apresentar às pessoas fora da companhia (BROOK, 2002, p.62). 

Para a montagem do espetáculo The Man Who, peça baseada no livro de Oliver Sacks O homem que confundiu sua mulher com seu chapéu, que trata de problemas neurológicos, o primeiro passo foi estudar os distúrbios mentais e visitar um hospital neurológico para observar e conversar com pacientes, para só posteriormente iniciar o trabalho com o texto. (OIDA, 2001, p.82). 

Uma peça que teve um processo criativo singular foi Os iks - representação sobre o modo de vida de um vilarejo africano ao norte da Uganda. Para a preparação dos atores, foi convidada Monika Pagneux, da escola Lecoq, para auxiliar nas construções corporais. Juntamente com o trabalho de corpo, foram vistos documentários e fotos sobre os iks, observando a maneira que eles sentavam, caminhavam... depois eram imitadas as posições de corpos e expressões faciais. O andar leve, o controle dos movimentos era experimentado pelos atores, já que os iks tinham esses comportamentos devido à fome. Só foi realizado o estudo de texto na última etapa, quando as características físicas e psicológicas das personagens já estavam bem fixadas. 

A concepção deste espetáculo foi trabalhada dentro do modelo realista de representação, pois houve uma tentativa de reprodução fiel à da realidade de Uganda. Destacaremos duas peças que partiram de um ponto em comum: a montagem de A Tempestade de Brook (já citada acima) e L’Age D’Or de Mnouchkine, sendo que ambos voltaram-se para a visão de crianças e adolescentes para melhor estruturação das peças. 

Ariane Mnouchkine, quando estava montando seu espetáculo L’Age D’Or (que relata episódios publicados cronologicamente desde a epidemia da cólera em 1973 em Naples até a morte de 42 mineradores no Norte da França em 1974), foi a uma escola para conversar com adolescentes sobre problemas familiares e drogas. A peça, enfatizando temas humanos, traz à tona brigas, injustiças e fatalidades nas indústrias e no comércio, prisões, repressões governamentais, racismo, dentre outros. Logo, a diretora buscou as figuras reais da sociedade como trabalhadores, mineradores, pessoas que trabalham em hospitais e escolas para ajudar a enriquecer a dramaturgia da peça. 

Apesar de partir de um ponto comum, é importante ressaltar que Brook focou-se na pedagogia do ator dentro deste processo de criação e já Ariane centrou-se na construção de uma dramaturgia tendo como suporte o contexto social. Quanto aos processos criativos de Ariane Mnouchkine, reunimos alguns de seus aspectos encontrados na escassa bibliografia sobre a diretora a que tivemos acesso. 

Ariane ressalta que todas as atitudes que dizem respeito ao futuro da companhia são tomadas coletivamente, sendo que o trabalho dela é executar essas decisões. Existem algumas regras que devem ser seguidas como pontualidade, igualdade salarial, não fumar durante as apresentações, etc. Os figurinos são criados coletivamente e JeanClaude Barriera refaz o que foi criado nos ensaios. Partindo para as montagens, explicitaremos Ricardo II, de Shakespeare. Mnouchkine afirma a influência que o Théâtre du Soleil sofre de Artaud, no que diz respeito à ênfase corporal que ele destaca no teatro balinês (KIERNANDER, 2008, p.5). 

Baseada nesta perspectiva, Ariane busca um treinamento atlético e fortemente físico para a montagem de Ricardo II, todavia não foi possível identificar a pedagogia aplicada à formação de seus atores para esta montagem. Para concluir este tópico, citaremos a comparação entre a pedagogia teatral utilizada pelos dois encenadores feita por Pavis: "A preparação dos atores no Soleil não está centrada no aprendizado de técnicas indianas nem sobre a sua universalização, como em Brook. Ela parte da pesquisa de personagem, graças a uma impregnação das técnicas corporais de diferentes grupos étnicos e religiosos".

No que se refere ao trabalho de interculturalidade, pode-se afirmar que Brook se dedica intensamente à análise daquilo que dá vida própria a uma forma de cultura, não estudando a cultura em si mesma, mas o que está por trás dela, o que é essencial ao ser humano. Para isso, o ator tem de tentar despir-se de sua própria cultura e, sobretudo de seus estereótipos. Conhece-se o gosto de Brook pelos textos e símbolos que não são legíveis para uma cultura em particular, mas que são uma parte da cultura da humanidade e, portanto, acessível a qualquer um. 

Desse modo, na Conferência dos Pássaros, o pássaro é um símbolo acessível a todos, mesmo que ele permaneça ao mesmo tempo inexplicável. "O pássaro pertence aos símbolos que não estão ligados a qualquer cultura em particular. Por certo, cada cultura, provavelmente por essa mesma razão, tem um mito do pássaro profundamente enraizado nela. Porém, o pássaro, enquanto tal, é uma parte da cultura da humanidade e um símbolo da humanidade; é a coisa mais simples que tem efeito em qualquer criança, mas que igualmente é difícil de ser compreendido ou apreendido”. 

Não podemos tratar o interculturalismo sem relacioná-lo com alguns procedimentos pedagógicos utilizados na companhia. A ideia de sonorização das palavras (aprendidas com os textos de Shakespeare) foi aplicada no primeiro dia de trabalho no Centro Internacional de Pesquisas Teatrais (CIPT), com os atores de diversas nacionalidades, já que não havia uma língua em comum para que houvesse uma comunicação. Os atores fechavam os olhos e descobriam o espaço e seus amigos através do toque e emissão de sons que retratassem a sensação que sentiam naquele momento, até que se unissem em um só grupo. 

Um outro exercício realizado foi a troca de injúrias, na qual cada ator dizia palavrões na sua língua de origem, como aho (imbecil), baka (cretino), cunt (idiota), etc, visando a expressão através de uma pura matéria sonora (OIDA, 1999, p.63-64). "Trocávamos movimentos de dança de várias tradições, praticávamos palavras e sílabas das línguas de cada um, deixávamos que gritos simples se desenvolvessem gradualmente em padrões rítmicos, depois em canções de uma só nota, deixávamos nossas vozes vibrarem juntas harmoniosamente ou em dissonância deliberada, até que se tornassem verdadeiramente perturbadoras, usávamos varas de bambu para fazer geometrias silenciosas no ar. Convidávamos crianças surdas, e a seguir adultos surdos, para unirem-se a nós, improvisando juntos, como se com eles o motivo da comunicação viesse não da arte, mas da necessidade instantânea". (BROOK, 2000, p.232).

Já Mnouchkine busca meios teatrais, não naturalistas e não psicológicos, direcionando suas investigações para a composição de diferentes “formas” teatrais. Foi a partir dessa busca estética que a encenadora francesa começou a estudar mais profundamente o teatro asiático, já que para ela, esse é o teatro que mais preservou sua forma artística. Percebemos que a importância do interculturalismo em seu trabalho não se encontra na essência de cada cultura, ou seja, não há uma busca pelo entendimento do que é particular a cada tradição, e sim um interesse frenético por entender técnicas do corpo, voz, música, texto, figurino, cenografias que são singulares a cada cultura. 

Um aspecto importante para ser explicitado como exemplo de interculturalidade, é o fato de os membros do grupo escolherem os cardápios da cozinha do Soleil, e como existem pessoas de muitos países diferentes, a comida acaba refletindo o caráter internacional do grupo. Pode-se concluir, a partir dos elementos em comum encontrados nos trabalhos de Peter Brook e de Ariane Mnouchkine, que suas diferentes abordagens conduzem a poéticas singulares; a de Brook, pautada pela busca da “essência” e a de Mnouchkine, por uma “forma” que valorize a teatralidade. Logo, por meio deste Projeto, foi possível fazer um estudo comparado e aprofundado sobre estes dois grandes encenadores do teatro atual. 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BROOK, Peter. A Porta Aberta. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000. ______. Fios do tempo: memórias. Rio de Janeiro: Bertrand. 2000. ______. O ponto de mudança: quarenta anos de experiências teatrais 1946- 1987. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. 1995. ______. O Teatro e seu Espaço. Rio de Janeiro: Vozes. 1970 KIERNANDER, Adrian. Ariane Mnouchkine and the Théâtre du Soleil. Cambridge: Cambridge University Press, 2008. O Mosaico – Rev. Pesquisa em Artes/FAP, Curitiba, n.2, p.1-10, jul./dez. 2009 10 NEUSCHÄFER, Anne. Jacques Copeau et Le Théâtre du Soleil. [Jacques Copeau e O Teatro do Sol], p. 225-231, In PAVIS, Patrice & THOMASSEAU, Jean-Marie (org.) Copeau l´Éveilleur [Copeau, aquele que desperta]. Tradução de José Ronaldo FALEIRO Lectoure: Bouffonneries, n.34, 1995. OIDA, Yoshi. O Ator invisível. São Paulo: Beca Produções Culturais, 2001. ______. Um Ator Errante. São Paulo: Beca Produções Culturais, 1999. PAVIS, Patrice. O teatro no cruzamento de culturas. São Paulo: 
08. WILLIAMS, David. The Théâtre du Soleil Sourcebook.Londres: Routledge, 1999.

sexta-feira, 5 de maio de 2017

Teatro/CRÍTICA

"Perdoa-me por me traíres"

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Maravilhosa versão de obra-prima

Lionel Fischer



"O marido traído que pede desculpas por ter sido enganado pela mulher é o mote do texto. Depois de matar a cunhada infiel, Raul passa a vigiar ferozmente a sobrinha, sob o pretexto de preservar sua castidade. Mas Glorinha acaba conhecendo o mundo dos bordéis ao mesmo tempo em que prepara uma terrível vingança contra o tio. Nesta peça estão presentes todos os ingredientes da obra rodriguiana: desejos, traições, morte, sexo, vingança, violência física e moral, prostituição e todos esses sentimentos que regem a humanidade até os dias de hoje e estão longe de serem datados".

Extraído do release que me foi enviado, o trecho acima resume o enredo (além de mencionar os principais temas da obra rodriguiana) de "Perdoa-me por me traíres", de Nelson Rodrigues, em cartaz no Teatro Laura Alvim. Daniel Herz assina a direção da montagem, que tem elenco formado por Bebel Ambrosio, Bob Neri, Clarissa Kahane, Ernani Moraes, gabriela Rosas, João Marcelo Pallotino, Rose Lima, Tatiana Infante e Wendell Bendelack.

Como se sabe, tratados já foram escritos sobre a obra de Nelson Rodrigues, incluindo esta que acaba de entrar em cartaz. E tais escritos, assinados por renomados pensadores, dramaturgos, psicanalistas e críticos (nacionais e estrangeiros) não me permitem acrescentar nada de especial ao que já foi dito. Portanto, limito-me ao óbvio, quem sabe ululante: "Perdoa-me por me traíres" é uma obra-prima cujo maior mérito talvez seja o de nos mostrar, com cirúrgica precisão, a inutilidade de acreditarmos que, com lama até o pescoço, seja suficiente manter limpas as unhas nas pontas dos dedos. 

Ou seja: isto talvez nos ajude a manter uma aparência de normalidade, em sintonia com a moral vigente e os bons costumes. Mas quase sempre chega o momento em que essa epidérmica dissimulação, alimentada pela hipocrisia, acaba sendo sobrepujada por impulsos irrefreáveis, advindos de camadas não raro ignoradas de nossa personalidade. 

Portanto, e não desejando me estender mais do que pretendia (embora já o tenha feito), acredito que Nelson Rodrigues, como todo autor dotado de inegável genialidade, compactua com o pensamento do dramaturgo e poeta romano Publio Terêncio Afro (195a.C- 159 a.C), expresso na obra Heaautontimorumenos: "Homo sum: nihil humani a me alienum puto" ("Sou homem: nada do que é humano me é estranho").  Ou seja, é da natureza do humano conter tudo, e negar esta evidência equivaleria a contestar o oceano pela inconstância de suas marés. 

Com relação ao espetáculo, acredito que a direção de Daniel Herz seja uma das melhores de sua brilhante carreira. E não vou me deter em aspectos puramente técnicos, pois o encenador os domina há muito tempo. Quero enfatizar sua capacidade de imprimir à cena uma atmosfera ao mesmo tempo austera e sóbria, mas nem por isso isenta da virulência e da passionalidade inerentes ao texto. Quero registrar a forma como potencializa a permanente alternância entre entre a lucidez e o delírio, sendo tal dualidade um dos pilares da obra. Quero, enfim, parabenizar o encenador por ter nos brindado com uma montagem que valoriza ao máximo o trágico inerente a uma das peças mais vigorosas escritas por Nelson Rodrigues.

No tocante ao elenco, Bebel Ambrosio está muito bem na pele da adolescente Nair, o mesmo aplicando-se à sua performance como Ceci. Wendell Bendelack, cuja trajetória sempre esteve mais voltada para o humor, não deixa de estar engraçado vivendo Pola Negri, mas ao mesmo tempo imprime ao personagem um tom ameaçador em total sintonia com o contexto. E também está irretocável quando encarna o frio e virulento médico que se dedica ao aborto. 

Tatiana Infante exibe atuação impecável como a cafetina Madame Luba, mulher depravada, cínica e cuja transbordante sexualidade se equipara à asquerosa frieza com que conduz seu negócio. A atriz também convence plenamente na pele da enfermeira do execrável aborteiro. Rose Lima é uma forte presença vivendo a enlouquecida Tia Odete, que ao longo da peça vaga como um espectro que parece oriundo de tempos imemoriais. Também irrepreensível é a performance de Bob Neri, que encarna o patético e ensandecido deputado Jubileu de Almeida, que só consuma seu prazer ao tecer considerações sobre átomos, prótons e moléculas.

Com relação aos protagonistas, Clarissa Kahane consegue extrair o máximo de Glorinha, jovem dividida entre o pudor e o desejo, a necessidade de obedecer e ao mesmo tempo a ânsia de transgredir, materializando com grande sensibilidade toda a curva emocional da personagem. O mesmo brilho e eficiência se fazem presentes na atuação de João Marcelo Pallotino (Gilberto), personagem inicialmente ciumento e violento e que, com o transcorrer da peça, sobrevive à loucura e passa a exibir desconcertante lucidez, o que o leva a pedir perdão à mulher por ela tê-lo traído (daí o título da peça). Na pele de Judite, Gabriela Rosas materializa com notável sensibilidade o caráter de uma mulher que consegue dissimular a essência do seu caráter - na aparência, uma esposa fiel e digna de toda a confiança; na realidade, uma mulher que às escondidas não refreia sua insaciável sexualidade. 

Finalmente, chego a Ernani Moraes. Ator de porte avantajado, propensão histriônica e dotado de uma voz que em tudo se assemelha ao furor das grandes tempestades, aqui o ator consegue refrear sua indômita natureza e desenhar, pouco a pouco e com grande riqueza de detalhes, a evolução emocional do mais complexo personagem do texto, o famigerado e asqueroso Tio Raul. Sem a menor dúvida, uma das melhores atuações da longa e significativa trajetória deste excelente intérprete.

Na equipe técnica, Fernando Mello da Costa responde por brilhante e econômica cenografia, composta basicamente de persianas que se abrem e fecham, que revelam e ocultam, em total sintonia com o material dramatúrgico. O mesmo brilho e economia se fazem presentes na iluminação de Aurélio de Simoni, que sutilmente consegue valorizar ao máximo todos os climas emocionais em jogo. Igualmente notáveis as contribuições de Ricco Viana (direção musical), Duda Maia (direção de movimento) e Antônio Guedes (figurinos). 

PERDOA-ME POR ME TRAÍRES - Texto de Nelson Rodrigues. Direção de Daniel Herz. Com Bebel Ambrosio, Bob Neri, Clarissa Kahane, Ernani Moraes, Gabriela Rosas, João Marcelo Pallotino, Rose Lima, Tatiana Infante e Wendell Bendelck. Teatro Laura Alvim. Quinta a sábado, 21h. Domingo, 20h.