segunda-feira, 31 de maio de 2010

"Atendimento ao consumidor"
de Fabio Porchat
PERSONAGENS:
Deucimara
Cliente
Argeli
Doris
Máquina
Sueli
Bernardete
(Este esquete foi concebido para dois atores. Um deles interpreta o Cliente, o outro os demais presonagens)
DEUCIMARA - Lojas Bernardo Franco Deucimara boa tarde em que posso ajudá-lo um momento por favor...
CLIENTE - Alô?
DEUCIMARA - Lojas Bernardo Franco Deucimara boa tarde um momento, por favor...
CLIENTE - Está bem........................Alô? Alô!
DEUCIMARA - Alô Deucimara boa tarde...
CLIENTE - Eu sei quem você é!
DEUCIMARA - Em que posso ajudá-lo, um momento por...
CLIENTE - Espera!
DEUCIMARA - Por favor.
CLIENTE - Alô, Deucimara? Eu só queria...
DEUCIMARA - Alô, Deucimara, boa tarde.
CLIENTE - Oi, boa tarde. Eu gostaria de uma informação...
DEUCIMARA - Informações é no setor nove vou transferi-lo obrigado sua ligação é muito importante para nós um momento, por favor.
CLIENTE - Não, eu só queria saber como...Alô? Alô? Alô, Deucimara?
ARGELI - Não, aqui quem fala é Argeli, Deucimara é no setor quatro, atendimento vou transferi-lo...
CLIENTE - Não!!!
ARGELI - Um momento, por favor.
CLIENTE - Eu quero falar com qualquer um!!!
DEUCIMARA - Lojas Bernardo Franco Deucimara...
CLIENTE - Deucimara, fala comigo!
DEUCIMARA - Pois não, em que posso ajudá-l0?
CLIENTE - Pelo amor de Deus, não desliga!
DEUCIMARA - Pois não.
CLIENTE - Nem me transfere.
DEUCIMARA - Pois não, senhor.
CLIENTE - Deucimara...
DEUCIMARA - Pois não.
CLIENTE - Eu gostaria de saber...
DEUCIMARA - Pois não.
CLIENTE - Pare de falar "pois não" e me deixe falar!
DEUCIMARA - Pois não, senhor.
CLIENTE - Eu comprei uma televisão e...
DEUCIMARA - Televisão é no setor sete, eletrodomésticos vou transferi-lo...
CLIENTE - Não, Deucimara! Eu quero falar com você!
DORIS - Pois não.
CLIENTE - Obrigado Deucimara.
DORIS - Não, aqui quem fala é Doris, Deucimara é no setor quatro, atendimento...
CLIENTE - AHHH!!!!
DORIS - Vou transferi-lo, um momento por favor.
CLIENTE - Deucimara, é você?
DEUCIMARA - Lojas Bernardo Franco Deucimara...
CLIENTE - Por que, meu Deus?
DEUCIMARA - Boa tarde em que posso ajudá-lo?
CLIENTE - Deucimara?
DEUCIMARA - Pois não, senhor.
CLIENTE - Eu só quero saber se...
MÁQUINA - Bem vindo a nossa central de atendimento. Nesse momento todos os nossos atendentes estão ocupados.
CLIENTE - Não!!!
MÁQUINA - Aguarde e dentro de instantes você será atendido.
CLIENTE - Cadê a Deucimara?
MÁQUINA - Sua ligação é muito importante para nós.
CLIENTE - Socorro!!!
MÁQUINA - Para facilitar o atendimento digite o número do seu CPF, para confirmar tecle estrela.
CLIENTE - Meu Deus, pera aí.
MÁQUINA - CPF inválido, por favor digite pausadamente o número do seu CPF, para confirmar tecle estrela.
CLIENTE - Mas meu CPF é esse!!!
MÁQUINA - CPF inválido, por favor, digite pausadamente o número do seu CPF, para confirmar teche estrela.
CLIENTE - Mas eu nem digitei.
MÁQUINA - Por favor, digite pausadamente o número do seu CPF, para confirmar tecle estrela. CPF inválido, por favor...
CLIENTE - Eu não vou digitar mais porra nenhuma! Deucimara!!!!!!!
DEUCIMARA - Lojas Bernardo Franco Deucimara boa tarde em que posso ajudá-lo?
CLIENTE - Deucimara, que saudades!
DEUCIMARA - Boa tarde, senhor.
CLIENTE - Boa tarde Deucimara, tudo bem?
DEUCIMARA - Tudo ótimo, senhor.
CLIENTE - Me ajuda, Deucimara.
DEUCIMARA - Pois não, senhor.
CLIENTE - Eu quero saber como é que eu faço para poder instalar o cabo do áudio que liga na televisão para eu poder gravar...Deucimara você tá aí?
MÁQUINA - CPF inválido.
CLIENTE - Não!!!
MÁQUINA - Por favor, digite pausadamente o número do seu CPF, para confirmar tecle estrela.
CLIENTE - Cadê a Deucimara? Agora que a gente tava se entendendo. Deucimara, volta!
MÁQUINA - Se você deseja adquirir o nosso cartão Bernardo Franco, tecle 1.
CLIENTE - Não, não, tá tudo errado...
MÁQUINA - Para dúvidas em relação a pagamentos, tecle 2.
CLIENTE - Cadê a opção Deucimara?
MÁQUINA - Para saber sobre novidades, tecle 3. Ou aguarde na linha para falar com um de nossos atendentes.
BERNADETE - Lojas Bernardo Franco Bernadete boa tarde em que posso ajudá-lo?
CLIENTE - Bernadete?
BERNADETE - Sim, senhor.
CLIENTE - Me passa pro setor quatro atendimento Lojas Bernardo Franco Deucimara boa tarde em que posso ajudá-lo.
DEUCIMARA - Lojas Bernardo Franco deucimara boa tarde em que posso ajudá-lo?
CLIENTE - Deucimara, nesse tempo todo que eu fiquei que nem um babaca segurando esse telefone, falando com cem pessoas diferentes, inclusive com uma máquina...
DEUCIMARA - Pois não.
CLIENTE - Eu decidi que...
DEUCIMARA - Pois não.
CLIENTE - Que eu vou me matar.
DEUCIMARA - Suicídios é no setor dez vou transferi-lo obrigada, sua ligação é muito importante para nós, um momento por favor.
SUELI - Sueli suicídios em que posso ajudálo? Alô? Alô? Xi, acho que a linha caiu...
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quinta-feira, 27 de maio de 2010

"Variações sobre a morte de Trotsky"

Texto de David Ives
Tradução de Ana Bernstein


PERSONAGENS:

Trotsky
Sra. Trotsky
Ramon

(Escritório de Trotsky em Coyacan, México. Uma escrivaninha, coberta com livros e papéis. Um espelho pendurado na parede. Uma porta à esquerda. Janelas com venezianas ao fundo, através das quais podemos vislumbrar viçosas copas de árvores e plantas tropicais. Um grande calendário de parede marca que hoje é dia 21 de agosto de 1940. Luzes em Trotsky sentado à sua escrevaninha, escrevendo furiosamente. Ele tem cabelos bastos e cavanhaque, pequenos óculos, um terno escruto. O cabo de uma picareta está saindo da parte de trás de sua cabeça)

VARIAÇÃO I

Trotsky (escrevendo) - "O proletariado está certo. O proletariado deve estar sempre certo. E a revolução do proletariado contra a opressão precisa continuar...para sempre!" (entra a Sra. Trotsky, maternal e doce, trajando um vestido comprido até o calcanhar e botinas abotoadas. Ela está segurando um enorme livro)

Sra. Trotsky - Leon.

Trotsky - "E sempre e sempre...!"

Sra. Trotsky - Leon, eu estava agora há pouco lendo a enciclopédia.

Trotsky - O verbete?

Sra. Trotsky - "Trotsky, Leon".

Trotsky - Ótimo. É sobre mim.

Sra. Trotsky - Escute isso. (Lê) "No dia 20 de agosto de 1940, um comunista espanhol chamado Ramon Mercader golpeou com uma picareta o crânio de Trotsky em Coyoacan, subúrbio da cidade do México. Trotsky morreu no dia seguinte".

Trotsky - Qual é o ano desta enciclopédia?

Sra. Trotsky - 1997.

Trotsky - Estranho.

Sra. Trotsky - Sim.

Trotsky - Mas interessante. Eu sou Trotsky.

Sra. Trotsky - Sim, querido.

Trotsky - E esta é a nossa casa em Coyoacan.

Sra. Trotsky - Sim.

Trotsky - E temos um jardineiro espanhol chamado Ramon...

Sra. Trotsky - Mercader. Sim.

Trotsky - Não há nenhuma outra família Trotsky vivendo em Coyoacan, há?

Sra. Trotsky - Acho que não. Não sob este nome.

Trotsky - Que dia é hoje?

Sra. Trotsky - 21 de agosto de 1940.

Trotsky - Então eu estou salvo! Este artigo diz que aconteceu no dia 20, o que significa que teria acontecido ontem.

Sra. Trotsky - Mas Leon...

Trotsky - Será que a imprensa capitalista nunca vai escrever as coisas certas? (Volta a escrever)

Sra. Trotsky - Mas Leon, não é o cabo de uma picareta que está saindo da sua cabeça?

Trotsky (Olha no espelho) - Com certeza parece com uma...E você sabe, Ramon esteve aqui ontem, me contando sobre sua escalada. E agora que eu estou pensando no assunto, ele estava carregando sua picareta. Não consigo lembrar se ele ainda a tinha quando deixou a sala...Ramon veio trabalhar hoje? (Trotsky morre. Uma campainha toca)


VARIAÇÃO II

Trotsky (Escrevendo) - "Ninguém está a salvo. O uso da força é necessário. E a revolução do proletariado contra a opressão deve continuar para sempre e sempre..."

Sra. Trotsky - Leon...

Trotsky - "E para sempre!"

Sra. Trotsky - Leon, eu estava agora há pouco lendo a enciclopédia.

Trotsky - É a Britãnica?

Sra. Trotsky - Escute isso.

Trotsky (Para o público) - O universo visto pelos vencedores.

Sra. Trotsky - "No dia 20 de agosto de 1940, um comunista espanhol chamado Ramon Mercader golpeou com uma picareta o crânio de Trotsky em Coyoacan, subúrbio da cidade do México. Trotsky morreu no dia seguinte".

Trotsky - Sim, e...?

Sra. Trotsky - Eu acho que há uma picareta no seu crânio neste exato momento.

Trotsky - Eu sabia disso! Quando eu estava me barbeando esta manhã, notei um cabo saindo por trás da minha cabeça. Por um momento eu pensei que era um furador de gelo, então a princípio eu fiquei preocupado.

Sra. Trotsky - Não, não é um furador de gelo.

Trotsky - Nem mesmo pronuncie a palavra, por favor. Você sabe do meu pesadelo recorrente.

Sra. Trotsky - Sim, querido.

Trotsky - Sobre o furador de gelo que se enterra em meu crânio.

Sra. Trotsky - Mas Leon...

Trotsky - Ninguém pode ser visto com um furador de gelo nesta casa. Especialmente comunistas espanhóis.

Sra. Trotsky - Mas Leon...

Trotsky - Podemos nos virar sem gelo. Beberemos nosso licor puro e nossa Coca-Cola quente. Quem se importa se estamos em Coyacan e é agosto? Não é um mau título para uma canção: "Coyacan em agosto". (Anota) Ou nós teremos gelo mas apenas não o partiremos. Gelo será permitido nesta casa em blocos, mas não deverá ser picado ou lascado sob nenhuma circunstância - pelo menos, não com um furador de gelo. Bandejas de gelo também seriam permitidas, se já tivessem sido inventadas. Aposto como este artigo não diz nada sobre uma bandeja de gelo no meu crânio, diz?

Sra. Trotsky - Não...

Trotsky - Diz?

Sra. Trotsky - Não.

Trotsky - HA! Fui mais esperto do que o destino! (Para o público) O que é apenas uma explicação capitalista para o status quo!

Sra. Trotsky - Leon...

Trotsky - Também, olhe para isso. (Abre uma gaveta e tira um crânio) Você sabe o que é isso?

Sra. Trotsky - Não.

Trotsky - É um crânio.

Sra. Trotsky - Bem, isso eu sabia, mas...

Trotsky - Eu comprei este crânio. Eu possuo este crânio. Então o que isto o torna?

Sra. Trotsky e Trotsky - O crânio de Trotsky.

Trotsky - Se algum comunista espanhol disfarçado de jardineiro quiser enterrar alguma coisa em meu crânio ou qualquer outra coisa, isto estará aqui como uma isca. Ele verá esse crânio, enterra alguma coisa nele, e seguirá o seu caminho enquanto eu sigo o meu. Não é engenhoso?

Sra. Trotsky - Até certo ponto.

Trotsky - Mais 50 anos de Trotsky!

Sra. Trotsky - Tenho más notícias para você, Leon. (Mostra a ele a enciclopédia)

Trotsky - Uma picareta? Engenhoso! (Trotsky morre. Campainha)


VARIAÇÃO III

Trotsky - Engraçado. Sempre pensei que fosse um furador de gelo.

Sra. Trotsky - Uma picareta! Uma picareta! Será que eu não consigo enfiar isso na sua cabeça? (Trotsky morre. Campainha)


VARIAÇÃO IV

Trotsky - Essa é uma péssima notícia. Isso é sério.

Sra. Trotsky - O que é sério, Leon?

Trotsky - Eu tenho uma picareta enterrada no meu crânio!

Sra. Trotsky - Na verdade, ele está esmagado. Aqui diz que Mercader esmagou o seu crânio com a picareta, não diz "enterrou"...

Trotsky - Certo, certo. O que eu vou fazer?

Sra. Trotsky - Talvez um chapéu possa cobrir o cabo. Você sabe. Um daqueles lindos chapéuzinhos Alpinos, com uma ponta e uma pena...?

Trotsky - A encicloplédia diz que eu morro hoje?

Sra. Trotsky - Dia 21. É hoje.

Trotsky - Diz a que horas?

Sra. Trotsky - Não.

Trotsky - Bem se vê a inutilidade dessa enciclopédia. Certo, então eu tenho até a meia-noite o mais tardar.

Sra. Trotsky - O que eu devo dizer à cozinheira sobre o jantar?

Trotsky - Bem...ela pode esquecer a sopa de entrada.

Sra. Trotsky - Nyet, nyet, nyet! (Campainha)


VARIAÇÃO V

Trotsky - Mas este homem é um jardineiro.

Sra. Trotsky - Sim.

Trotsky - Pelo menos ele tem posado de jardineiro.

Sra. Trotsky - Sim.

Trotsky - Isso não o torna um membro do proletariado?

Sra. Trotsky - Eu diria que sim.

Trotsky - Então o que ele está fazendo enterrando uma picareta no meu crânio?

Sra. Trotsky - Eu não sei. Você andou oprimindo ele?

Trotsky - Por que Ramon faria isso comigo? (Ele segura o crânio, tipo Hamlet)

Sra. Trotsky - Talvez ele seja um literalista.

Trotsky - O que?

Sra. Trotsky - Um literalista. Talvez Ramon tenha encontrado com Manuel ontem. Você sabe...Manuel? O jardineiro chefe?

Trotsky - Eu sei quem é Manuel.

Sra. Trotsky - Eu sei que você sabe quem Manuel é. Mas talvez Ramon tenha perguntado a ele, "O Sr. Trotsky terá tempo de olhar os nasturtiums hoje?" E talvez Manuel tenha dito, "O Sr. Trotsky? Só morto". Ha, ha, ha...

Trotsky - Muito engraçado.

Sra. Trotsky - Ou talvez ele estivesse apenas querendo pregar um Trotsky.

Trotsky - Ah muito, muito engraçado.

Sra. Trotsky - Ou talvez ele apenas quisesse cultivar seus miolos!

Trotsky - Pare com isso! Pare com isso! (Ele morre)

Sra. Trotsky - Ha, ha, ha...(Campainha)


VARIAÇÃO VI

Trotsky - Chame Ramon aqui.

Sra. Trotsky - Ramon!

Trotsky - Melhor você achá-lo depressa. Eu tenho uma picareta em meu crânio!

Sra. Trotsky - Ramon! Venha rápido! (Entra Ramon: sombrero, serape, huaraches e violão)

Trotsky - Bom dia, Ramon.

Ramon - Bom dia, señor.

Trotsky - Sente-se, por favor (Para a Sra. Trotsky) Você vê? Nós temos aqui uma ótima relação patrão-empregado. Ramon, você enterrou essa picareta em meu crânio?

Ramon - Eu não enterrei, señor. Eu esmaguei seu crânio com ela.

Trotsky - Perdão?

Ramon - Entende? Você ainda pode ver o cabo.

Sra. Trotsky - É verdade, Leon. A picareta não está totalmente fora de vista.

Ramon - Então nós não poemos dizer "enterrada", podemos apenas dizer "enfiada" ou talvez "entalada".

Trotsky - Certo, certo. Mas por que você fez isso?

Ramon - Eu acho que li sobre isso numa enciclopédia.

Trotsky (Para o público) - O poder da palavra impressa!

Ramon - Eu queria usar um furador de gelo, mas não havia nenhum aqui na casa.

Trotsky - Mas por que? Você sabe quem eu sou? Você se dá conta de que você esmagou essa picareta no crânio de uma grande figura histórica? Eu ajudei a Revolução Russa! Eu combati Stalin! Eu era um grande teórico político! Por que você fez isso? Foi discordância política? Recuo anti-contra-revolucionário?

Ramon - Na verdade, foi amor, señor.

Sra. Trotsky - É verdade, Leon. (Ela e Ramon dão-se as mãos) Apenas lamento que você tenha sabido dessa forma.

Trotsky - Oh, Deus! Que tolo eu tenho sido! (Ele morre. Campainha)


VARIAÇÃO VII

Trotsky - Por que você fez isso realmente, Ramon?

Ramon - Você nunca saberá, señor Trotsky.

Trotsky - Isso é um pesadelo!

Ramon - Mas felizmente para você, sua noite acabará logo. (Trotsky morre. Campainha)


VARIAÇÃO VIII

Trotsky - Certo, Ramon. Obrigado. Você pode ir. (Ramon começa a sair. Pára)

Ramon - Señor Trotsky?

Trotsky - Sim?

Ramon - O sr. acha que terá tempo de olhar para os nasturtiums hoje? Eles estão realmente lindos.

Trotsky - Acho que não, Ramon. Mas eu vou tentar.

Ramon - Obrigado, señor. Hasta la vista. Ou deveria dizer, buenas noches. (Sai)

Trotsky - Bem...está bem então. O vigésimo primeiro dia de agosto de 1940. O dia que eu vou morrer. Interessante. E pensar que eu passei por tantos vinte e um de agosto em minha vida, como um homem andando sobre sua própria cova.

Sra. Trotsky - Tem sido maravilhoso ser casada com você, Leon.

Trotsky - Obrigado, sra. Trotsky.

Sra. Trotsky - Embora tenha sido um fardo algumas vezes, ser casada com uma importante figura histórica.

Trotsky - Eu lamento ter ficado ausente de casa com freqüência, cuidando da revolução.

Sra. Trotsky - Eu comprendo.

Trotsky - Eu sinto muito se eu não demonstrei mais meus sentimentos.

Sra. Trotsky - Não...por favor...

Trotsky - E se me foi sempre tão difícil expressar minhas emoções.

Sra. Trotsky - Oh, eu não tenho sido tudo que eu deveria.

Trotsky - Bem...é um pouco tarde para lamentar, com uma picareta enterrada no cérebro de alguém.

Sra. Trotsky - Enfiada, na verdade.

Trotsky - Então não foi a velhice, ou câncer, ou mesmo o furador de gelo que eu temi por tantos anos. Foi uma picareta brandida por um comunista espanhol disfarçado de jardineiro.

Sra. Trotsky - Você realmente não poderia ter imaginado isso, Leon.

Trotsky - Então mesmo assassinos podem cultivar flores. O jardineiro era falso e ainda assim o jardim que ele cuidou era real. Como poderia saber que ele era meu assassino quando eu passava por ele todo dia? Como poderia saber que o homem que cuidava dos nasturtiums me privaria de saber como será o tempo amanhã? Como poderia saber que eu jamais veria "Casablanca", que não seria feito até 1942 e que eu desprezaria, de qualquer forma? Como eu poderia saber que jamais saberia sobre a bomba ou sobre os 80 mil mortos de Hiroshima? Ou rock and roll, ou Gorbachev, ou o Estado de Israel? Como eu poderia saber que eu seria apagado dos livros de História da minha própria terra?

Sra. Trotsky - Mas reintegrado, ao menos parcialmente, um dia.

Trotsky - Um dia, para todo mundo, há um aposento em que você entra, e este é o quarto que você nunca deixa. Ou então você sai de um aposento e é o último aposento que você jamais deixará. Este é meu último aposento.

Sra. Trotsky - Mas você nem mesmo está aqui, Leon.

Trotsky - Esta escrivaninha, estes livros, este calendário...

Sra. Trotsky - Você nem mesmo está aqui, meu amor.

Trotsky - O sol entrando por estas persianas...

Sra. Trotsky - Isso foi ontem. Você está num hospital, inconsciente.

Trotsky - As flores no jardim. Você em pé aí...

Sra. Trotsky - O que você está vendo é ontem.

Trotsky - O que a entrada diz? Você leria de novo?

Sra. Trotsky - "No dia 20 de agosto de 1940, um comunista espanhol chamado Ramon Mercader golpeou com uma picareta o crânio de Trotsky em Coyacan, subúrbio da cidade do México. Trotsky morreu no dia seguinte".

Trotsky - Isso lhe dá um pouco de esperança em relação ao mundo, não é? Que um homem tenha uma picareta esmagada em seu crânio e ainda assim viva por um dia inteiro...? Talvez eu vá olhar os nasturtiums. (Trotsky morre. O jardim do lado de fora da janela com persianas começa a se iluminar. As luzes diminuem até se apagarem)

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quarta-feira, 26 de maio de 2010

Quem???
Lionel Fischer
Outro dia, uma jovem aluna me pediu que lhe recomendasse alguns livros. Imaginando tratar-se de leitura voltada para o teatro, sendo ela minha aluna de teatro, comecei a citar alguns autores básicos e imprescindíveis. Mas logo ela me interrompeu, dizendo que isso eu já havia feito - em outras palavras, a jovem aluna estava como que insinuando que, dada a minha avançadíssima idade, minha memória já dava sinais de lamentável desgaste.
Mas, enfim...O que ela queria era ler romances importantes. Então, só para vingar-me, comecei a enumerar alguns de Dostoiévski - o autor que mais amo - e que supunha que ela não os tivesse lido. Mas antes de chegar ao terceiro romance, ela me interrompeu e, após erguer de forma extremamente curiosa a sobrancelha esquerda, me fez a desconcertante pergunta: "Desculpe, mestre, mas esse Dostoiévski...é quem mesmo?"
Pálido de espanto, como um personagem de soneto, recuei dois passos, só não dando um terceiro porque minhas costas se chocaram com uma pilastra. E assim permaneci por alguns segundos, tentando me refazer do impacto de constatar que alguém, ainda que jovem, jamais tivesse ouvido falar do genial escritor russo.
Mas finalmente a coloração de minhas faces voltou e eu, com a infinita paciência que me caracteriza (ao menos em algumas ocasiões), dei à tal aluna um breve seminário, de uns três minutos, sobre o dito autor. Como ela me pareceu interessada (ou simulou interesse, quem sabe para evitar uma morte que talvez tenha lhe parecido iminente), recomendei-lhe a leitura de "Notas do subsolo", uma novela curta que considero absoltamente fascinante e que venho relendo, de tempos em tempos, desde os 15 anos - e cada vez mais me maravilhando com a inteligência e sensibilidade deste artista maior, a meu ver insuperável no que concerne à compreensão da alma humana e de todas as suas contradições.
Não sei se minha aluna lerá essa obra. Não sei se todos os parceiros deste blog a leram. Mas na hipótese de que alguns a desconheçam, recomendo com total entusiasmo que a adquiram na banca mais próxima de suas residências - acho que já disse aqui que, de uns tempos para cá, as bancas de jornal (ao menos algumas) estão publicando obras de autores célebres, como Dostoiévski, Tolstói, Maquiavel, Neruda etc., em formato de bolso, por um preço médio equivalente a duas cocas e um desses sanduíches gigantes que antecipam a morte a cada dentada.
Então, à guisa de aperitivo e estímulo, transcrevo a seguir o primeiro capítulo de "Notas do subsolo". A obra tem um caráter confessional e está dividida em duas partes: 'O subsolo' e 'A propósito da neve úmida', sendo este segundo título extraído de um poema de Nekrássov.
* * *
O subsolo
1
Sou um homem doente...Sou mau. Não tenho atrativos. Acho que sofro do fígado. Aliás, não entendo bulhufas da minha doença e não sei com certeza o que é que me dói. Não me trato, nunca me tratei, embora respeite os médicos e a medicina. Além de tudo, sou supersticioso ao extremo; bem, o bastante para respeitar a medicina. (Tenho instrução suficiente para não ser supersticioso, mas sou). Não, senhores, se não me quero tratar é de raiva. Isso os senhores provavelmente não compreendem. Que assim seja, mas eu compreendo. Certamente, não poderia explicar a quem exatamente eu atinjo, neste caso, com a minha raiva; sei perfeitamente que, não me tratando, não posso prejudicar os médicos; sei perfeitamente bem que, com isso, prejudico somente a mim e a mais ninguém. Mesmo assim, se não me trato, é de raiva. Se o fígado dói, que doa ainda mais.
Faz muito tempo que vivo assim - uns vinte anos. Agora estou com quarenta. Antes eu trabalhava no serviço público, mas agora não trabalho mais. Fui um funcionário cruel. Era grosseiro e encontrava prazer nisso. Já que não aceitava propinas, devia me recompensar ao menos dessa maneira. (Isso foi um gracejo infeliz, mas não vou apagá-lo. Eu o escrevi pensando que ia sair algo muito espirituoso, mas agora, quando constatei que, de maneira infame, estava apenas querendo me vangloriar, de propósito não vou apagar).
Quando os solicitantes se aproximavam da minha mesa para pedir uma informação, eu rangia os dentes para eles e sentia um prazer infinito quando conseguia contrariar alguém. Quase sempre conseguia. Na maior parte, era gente tímida, como são de hábito os solicitantes. Mas, entre os almofadinhas, particularmente eu não podia suportar um certo oficial. Ele não queria de modo algum submeter-se e fazia tinir seu sabre de maneira asquerosa. Por causa desse sabre, nós estivemos em guerra durante um ano e meio. Ganhei, finalmente. Ele parou com os tinidos.
Aliás, isso se passou ainda na minha mocidade. Mas sabem os senhores em que consistia o ponto principal de minha raiva? A questão toda, a minha maior canalhice, se resumia a que a todo momento, até no instante do ódio mais intenso, eu percebia, envergonhado, que não só não era mau, como não era nem mesmo uma pessoa enfurecida, apenas assustava pardais sem nenhum propósito e com isso me divertia. Minha boca espumava, mas se me trouxessem um brinquedinho ou um chazinho com açúcar, na certa eu me acalmaria. Ficaria até enternecido, embora depois, provavelmente, rangeria os dentes para mim mesmo e, de vergonha, passaria alguns meses com insônia. Esse é o meu jeito de ser.
Eu menti antes, quando disse que era um funcionário cruel. Menti de raiva. Apenas me divertia com os solicitantes e o oficial, mas no fundo nunca me tornei mau. Constantemente observava em mim uma enorme quantidade de elementos contrários a isso. Sentia-os fervilhar dentro de mim. Sabia que em toda a minha vida eles fervilharam dentro de mim e ansiavam por sair, mas eu não deixava. Não deixava, de propósito não os soltava. Eles me torturavam a ponto de me dar vergonha; até convulsões eu tive por causa deles - e finalmente fiquei farto. Como fiquei farto! Não lhes parece que agora estou me arrependendo de alguma coisa diante dos senhores, que estou a lhes pedir perdão? Estou certo de que parece...Aliás, asseguro-lhes que para mim tanto faz, se isso assim lhes parece...
Não apenas não consegui tornar-me cruel, como também não consegui me tornar nada; nem mau, nem bom, nem canalha, nem homem honrado, nem herói, nem inseto. Agora vivo no meu canto, provocando a mim mesmo com a desculpa rancorosa e inútil de que o homem inteligente não pode seriamente se tornar nada, apenas o tolo o faz. Sim, senhores, o homem do século XIX que possui inteligência tem obrigação moral de ser uma pessoa sem caráter; já um homem com caráter, um homem de ação, é de preferência um ser limitado. Essa é a minha convicção aos quarenta anos. Tenho agora quarenta.
E quarenta anos é toda uma vida, é a velhice mais avançada. Depois dos quarenta é indecoroso viver, é vulgar, imoral! Quem vive além dos quarenta? Respondam-me sincera e honestamente. Pois vou lhes dizer quem vive: os tolos e os canalhas. Direi isso na cara de todos os anciãos, dos anciãos respeitáveis, perfumados e de cabelos brancos! Direi isso na cara de todo mundo! Tenho direito de dizer isso porque eu mesmo vou viver até os sessenta. Até os setenta! Até os oitenta! Esperem! Deixem-me tomar fôlego!
Acaso os senhores estão pensando que quero fazê-los rir? Enganaram-se também quanto a isso. Não sou absolutamente esse sujeito brincalhão que os senhores imaginam, ou que talvez os senhores imaginem. Aliás, se os senhores, irritados com toda essa tagarelice (eu já senti que estão irritados), inventarem de me perguntar: quem é o senhor, exatamente? - eu lhes responderei: sou um assessor colegial. Eu tinha esse emprego para ter alguma coisa para comer (mas somente para isso) e quando, no ano passado, um dos meus parentes distantes deixou-me seis mil rublos no seu testamento, imediatamente me aposentei e mudei para este canto.
Meu quarto é detestável, nojento e fica quase fora da cidade. Já vivia aqui antes, mas agora me instalei definitivamente. Minha criada é uma mulher da aldeia, velha, raivosa devido à ignorância e, além de tudo, tem um fedor insuportável. Dizem que o clima de Petersburgo está se tornando prejudicial para mim e que, com os recursos insignificantes de que disponho, é muito caro viver aqui. Sei de tudo isso melhor do que esses conselheiros e protetores experientes e sábios. Mas permaneço em Petersburgo; não vou sair de Petersburgo! Não vou sair porque...Ora! Não faz diferença nenhuma se vou sair ou não.
Mas sobre o que um homem de bem pode falar com mais satisfação?
Resposta: sobre si mesmo.
Então, vou falar sobre mim.
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Teatro/CRÍTICA

"A carpa"
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Temperando o entendimento
Lionel Fischer
Duas épocas, dois países (Rússia e Brasil), duas personagens que se revezam em quatro papéis. Como eixo central da ação, a preparação do peixe tradicional a ser saboreado no dia seguinte, a páscoa judaica (Pessach). Enquanto temperam a carpa, mãe e filha se destemperam, pois a primeira defende ardorosamente a preservação das tradições e a segunda as contesta, tendo inclusive se casado com um goy (um não judeu).
No entanto, mais do que os embates entre duas diferenciadas visões de mundo, o que parece estar em jogo é o resgate de adormecidos afetos, quem sabe estremecidos por pontos de vista aparentemente inconciliáveis. Em cartaz no Teatro do Leblon (Sala Marília Pêra), "A carpa", de autoria de Denise Crispun e Melanie Dimantas, chega à cena com direção de Ary Coslov e elenco formado por Ivone Hoffmann e Carolyna Aguiar.
Se por um lado me parece correto afirmar que um povo - qualquer que seja ele - não pode sobreviver sem suas tradições, por outro julgo um tanto perigoso a ferrenha prática de uma ortodoxia com relação a elas, pois isso pressupõe uma imobilidade contrária à dialética da vida. Ao mesmo tempo, trata-se de uma questão delicada: até que ponto as tradições podem ou devem ser mudadas, sem serem descaracterizadas em sua essência?
Mas a peça, como já foi dito, gira mais em torno do encontro afetivo entre mãe e filha - é evidente que ambas sempre se amaram, mas tal amor fora constantemente abalado por suas diferentes posturas. E aqui reside o principal: o que as autoras deste belo, irônico, amargo e finalmente otimista texto sustentam, em última instância, é a possibilidade de entendimento, desde que as partes envolvidas consigam perceber que não existe uma verdade absoluta, que todos os conceitos são passíveis de alguma maleabilidade. Quando a ortodoxia prevalece, o abismo torna-se intransponível.
Com relação ao espetáculo, Ary Coslov impõe à cena uma dinâmica simples e eficiente, totalmente centrada nas relações entre as personagens. E estas são interpretadas de forma irretocável por Ivone Hoffmann (Mãe) e Carolyna Aguiar (Filha), cabendo ressaltar a forte contracena que estabelecem e a verdade com que defendem seus pontos de vista, quase sempre diametralmente opostos.
Na equipe técnica, são de excelente nível a cenografia de Marcos Flaksman, a iluminação de Aurélio de Simoni, os figurinos de Kalma Murtinho e a trilha sonora do diretor.
A CARPA - Texto de Denise Crispun e Malanie Dimantas. Direção de Ary Coslov. Com Ivone Hoffmann e Carolyna Aguiar. Teatro do Leblon. Terça e quarta, 21h.

terça-feira, 25 de maio de 2010

Esclarecimento

Devido ao meu formidável domínio no que diz respeito a este abominável senhor chamado Computador, por razões misteriosíssimas consegui deletar do blog a crítica de "Corte seco", enquanto me empenhava em enviá-la a uma amiga, a seu pedido. Então, como a mesma está publicada no jornal Folha Zona Sul (Dezembro de 2009), não encontrei outra alternativa a não ser redigitá-la. (LF)


Teatro/CRÍTICA

"Corte seco"
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Qual é o meu lugar?
Lionel Fischer
Como todos sabemos, um dos aspectos mais fascinantes do teatro é sua infinita capacidade de nos surpreender, de nos gerar dúvidas, inquietações, eventuais reflexões passíveis de serem convertidas em atos que transformam nossas vidas, nos facultam um novo olhar sobre nós mesmos e o mundo que nos cerca. No presente caso, estamos diante de um espetáculo que, se por um lado, talvez não preencha todos os quesitos acima mencionados, por outro já seria imperdível "apenas" por nos colocar diante da seguinte e fundamental questão: qual é o meu lugar?
Sim, pois numa época em que as fronteiras entre o público e o privado praticamente desapareceram, em que certezas da véspera se convertem em dúvidas no dia seguinte, em que incidentes de toda a espécie interferem no nosso cotidiano - para o bem ou para o mal, pouco importa - e as relações se tornaram cada vez mais confusas, imprecisas e fugazes, e todas as histórias sofrem imprevistas interferências e não raro se desviam de seu curso natural, como se sentir minimamente confortável em um tal contexto? Qual poderia ser, afinal, o lugar de cada um de nós?
Encerrando a trilogia iniciada com "Conjugado" e "A falta que nos move", agora Christina Jatahy e a Cia. Vértice de Teatro nos mostram "Corte seco", em cartaz no Espaço Cultural Sérgio Porto. Christiane assina a direção e dramaturgia, estando o elenco formado por Cristina Amadeo e Daniela Fortes (integrantes da companhia) e mais os atores convidados Eduardo Moscovis, Thereza Piffer, Felipe Abib, Ricardo Santos, Stella Rabello, Branca Messina, Paulo Dantas e Leonardo Netto.
Tendo como referências o livro "Passagens", de Walter Benjamim, e o filme "Short Cuts", de Robert Altman, além do trabalho de improvisação e construção dramatúrgica do espanhol José Sanchis Sinisterra, Christiane Jatahy oferece ao público uma espécie de mosaico, de furtivos olhares sobre múltiplos aspectos da ralidade, cabendo destacar que os atores decoraram todos os papéis e a ordem das cenas pode ser alterada a cada novo espetáculo, que também possibilita uma grande margem de improvisação, embora a improvisação não seja a principal linha adotada, conforme consta do release que nos foi enviado.
E embora o espetáculo conte com recursos tecnológicos, por sinal muito bem utilizados, como câmeras que mostram as adjacências do teatro ou alguns de seus espaços internos, o que cabe destacar é a unidade conseguida entre forma e conteúdo, e também a progressiva desconstrução de algumas expectativas iniciais. Por exemplo: logo no início da montagem, vemos várias cadeiras nas quais constam informações sobre o papel a ser exercido por aqueles que as ocuparem. Mas logo torna-se evidente a impossibilidade de "papéis fixos", como também a inutilidade de se marcar o chão com fitas adesivas, como se fossem fronteiras a serem preservadas. Nada é fixo, nada pode ser preservado.
E essa sensação, inicialmente apenas um tanto desconfortável, assume conotações cada vez mais inquietantes, pois torna-se literalmente impossível não se identificar com os personagens e seus descaminhos e desencontros - falando apenas em meu nome, devo confessar que, embora tenha amado o espetáculo, quando saí do Sérgio Porto estava tão desnorteado que esqueci onde havia estacionado meu carro, ou por outra, onde havia estacionado o carro de minha namorada, já que no momento não possuo este precioso meio de locomoção.
Quanto aos atores, e mesmo correndo o risco de ser (ou parecer) monótono, vou repetir pela enésima vez: como são bons os nossos intérpretes! Como é comovente ver um grupo de profissionais se entregar com tanta paixão e inteligência cênica à árdua tarefa de materializar na cena conteúdos tão dolorosos, ainda que os mesmos, eventualmente, sejam expressos através do humor. A todos, portanto, agradeço o privilégio de tê-los visto em uma montagem que só desinformados ou invejosos de plantão deixarão de assistir.
Com elação à equipe técnica, Marcelo Lipiani assina uma cenografia tão brilhante como original, com Paulo César Medeiros iluminando a cena com sua habitual competência e sensibilidade. Destacamos ainda as músicas de Rodrigo Marçal e a orientação corporal de Dani Lima, sem dúvida também responsáveis pelo êxito indiscutível do presente espetáculo.
CORTE SECO - Texto e direção de Christiane Jatahy. Com a Cia. Vértice de Teatro. Espaço Cultural Sérgio Porto. Sexta e sábado, 21h. Domingo, 20h.

segunda-feira, 24 de maio de 2010

Teatro/CRÍTICA



"Sade em Sodoma"



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Sarcasmo, virulência e nervosismo




Lionel Fischer




Aristocrata e escritor libertino, Donatien Alphonse François de Sade (1740-1814), mais conhecido como Marquês de Sade, conseguiu o prodígio de desagradar a todos que detiveram o poder em sua época. A monarquia (Antigo Regime) o perseguiu, os revolucionários vitoriosos de 1789 também e mais ainda Napoleão Bonaparte, que o mandou encarcerar várias vezes, sendo uma delas por ter se ofendido com uma sátira que Sade lhe escrevera. Esteve confinado nas prisões de Vincennes e da Bastilha, tendo falecido no hospício de Charenton, onde encenou várias de suas obras tendo os loucos como atores.


Mais conhecido do grande público por sua obra de maior repercussão, "120 dias de Sodoma", Donatien Alphonse escreveu muitas outras, tais como: "Justine", "Juliette de Sade", "Zaloa e suas amantes", "Os estratagemas do amor", "Os crimes do amor", "A filosofia na alcova", "Contos libertinos", "Diálogo entre um padre e um moribundo" e "A crueldade fraternal". Por muitos considerado precursor do surrealismo, até mesmo a psicanálise extraiu de Sade o termo "sadismo", definido como perversão sexual de ter prazer na dor física ou moral dos parceiros ou parceiras.


Mas por que será que um homem, aparentemente só interessado em desvios e perversões, continua sendo tão lido, estudado e muitas de suas obras adaptadas para o teatro e o cinema? Trata-se, sem dúvida, de uma questão de difícil resposta. Em todo caso, estamos aqui diante de "Sade em Sodoma" (Caixa Cultural), adaptação teatral do livro homônimo de Flávio Braga, que fez uma releitura do romance "120 dias de Sodoma". Contando com direção e dramaturgia de Ivan Sugahara, o texto chega à cena com intepretação a cargo de Guta Stresser (Madame Duclos), Tárik Puggina (soldado Mathieu) e dois personagens de apoio, vividos por Edson Santos e Mayara Travassos.

Convertendo a platéia no próprio Marquês de Sade, tudo que aconteceu nos tais "120 dias" é para ele narrado pelos protagonistas, o que não chegamos a entender por quê, já que ele fora o autor da história e portanto a conhecia em seus mínimos detalhes. Seja como for, os espectadores são informados das inimagináveis perversões, crueldades, escatologias, estupros, torturas, assassinatos etc. de que são vítimas jovens sequestrados (de ambos os sexos), todos pertencentes à mais alta aristocracia parisiense. Além deles, uma imensa horda de prostitutas, cafetões e outros representantes da escória são também convocados por quatro amigos poderosos, que objetivam promover, ao longo de quatro meses, algo que faria de um Nero uma criança inocente.

E aqui voltamos à questão formulada acima: qual seria o interesse do leitor nesta bizarra e dantesca sucessão de horrores? E também, como já foi dito, por que tantos estudiosos se dedicaram (e ainda se dedicam) à análise desta obra? Em minha opinião - e, como toda opinião, sujeita a todos os enganos - Sade elegeu a perversão como uma espécie de metáfora das perversões de sua época, por sinal as mesmas de todas as épocas, já que o mundo sempre foi e, ao que parece, continuará sendo dominado pelos que detêm o poder.

Neste sentido, as atrocidades perpetradas no contexto da obra não me parecem muito diferentes, em sua essência, das que são cometidas atualmente com todas as minorias - num passado nem tão remoto, Hitler, por exemplo, decidiu exterminar judeus, ciganos e homossexuais. E se ao invés de orgias optou por câmaras de gás, isto me parece irrelevante, posto que sua finalidade era o exercício de um poder que julgava ilimitado e legítimo. Mas Hitler, naturalmente, era um psicótico, enquanto Sade era um artista. E aqui reside toda a diferença entre ambos.

Com relação ao texto, e apesar da ressalva feita acima no que tange à sua estrutura narrativa, ele é de excelente qualidade, tendo o autor criado dois ótimos personagens, interpretados com apropriadas doses de sarcasmo e virulência por Guta Stresser e Tárik Puggina, sendo corretas as participações de Edson Santos e Mayara Travassos.

Quanto ao espetáculo, Ivan Sugahara prioriza a narrativa, eventualmente enriquecendo-a com passagens dançadas e outras em que os protagonistas comem, bebem e simulam estar a ponto de transar diante da platéia - esta, por sinal, alterna risos com estupefação, afora um nervosismo mais do que justificado.

Na equipe técnica, a correção é a tônica dos trabalhos de todos os profissionais envolvidos neste curioso projeto - Olívia Teixeira (coreografia), Rose Gonçalves (preparação vocal), Nello Marrese (cenografia), Paulo César Medeiros (iluminação), Patrícia Muniz (figurinos) e Nervoso (?) direção musical.

SADE EM SODOMA - Texto de Flávio Braga. Direção e dramaturgia de Ivan Sugahara. Com Guta Stresser, Tárik Puggina, Edson Santos e Mayara Travassos. Caixa Cultural. Quinta, sexta e domingo, 20h. Sábado, 18h e 20h.

sexta-feira, 21 de maio de 2010

Aprendizagem de Memória

Richard Courtney


Lembrar que "William, o Conquistador, venceu a Batalha de Hastings em 1066" ou que "12 x 12 = 144" é um ato de memória. O processo envolvido tem três fases: experiência, retenção e recordação.

Primeira fase: Experenciar (memorizar)

Confiar um fato à memória deve envolver alguma experiência ou atividade. Eu ouço uma nota; eu presencio um acontecimento; eu dirijo um carro. Meus sentidos devem ser ativados de um modo ou de outro antes que o ato de memorização possa se dar. O menino aprendendo a tabuada ou decorando um trecho de um poema irá ler e reler o item, irá recitá-lo e repetí-lo (dominá-lo). Isto não é algo simples ou passivo. Exige tempo e envolve um complexo de atividades resultantes do aprendizado anterior.


Segunda fase: Reter

Devemos reter o item que estamos tentando memorizar durante o intervalo de tempo ocupado com muitas outras atividades, talvez por dias, meses ou anos. Pouco sabemos sobre os métodos de retenção, mas as experiências são retidas provavelmente pela modificação no sistema nervoso (que podem ser de caráter estrutural, quando a retenção visa um tempo maior que apenas uns poucos minutos).


Terceira fase: Recordar (rememorar)

Quando recordamos alguma experiência, nós, efetivamente, estamos atuando. O processo de recordação é uma atividade. Estamos reexperienciando. Se fôssemos incapazes de evocar nossa experiência original (esquecimento) isso se deveria a: (1) memorização inadequada; (2) malogro na retenção - embora isso não seja considerado um aspecto comum; e (3) esquecimento sem malogro de retenção, porque todos experimentamos a súbita recordação de um fato (geralmente anos mais tarde) que julgávamos esquecido.

Devemos observar, de passagem, que há uma correspondência entre o processo envolvido na memória e o processo envolvido na identificação e personificação imaginativas. A memorização baseia-se na experiência sensível, sendo afetada diretamente por dois fatores: significado e repetição. James afirmou:

A maioria dos homens tem boa memória para os fatos vinculados a suas próprias atividades. O colegial atleta que se mantém relapso frente a seus livros poderia nos surpreender com seu conhecimento sobre "recordes" em variados feitos e competições, e pode chegar a ser um dicionário ambulante de estatísticas desportivas. A razão está em que ele, constantemente, revolve essas proezas em sua cabeça, comparando e acumulando-as. Elas compõem para ele não apenas curiosidades, mas um sistema de conceitos - e assim, se impõe. Da mesma maneira o comerciante recorda os preços, o político os discursos e votos de outros políticos, com uma prolixidade que diverte aos de fora, mas que é facilmente explicado pela intensidade com que se dedicam a tais assuntos.

Um fato deve ser significativo para que seja memorizado. Todos nós já experimentamos períodos de "falta de interesse" em guardar qualquer coisa na memória, e isto se deve basicamente a que o material não tinha interesse, valor ou relevância para nós. O jogo e a atividade dramática têm importância direta para nós: são coisas que realmente queremos fazer. A utilização deles, portanto, ajuda consideravelmente o desenvolvimento da memória. Isto é revelado pelo que acontece quando tentamos memorizar algo que não apresenta nenhum interesse para nós (como material non sense ou jogos de palavras desconexos): tratamos de traduzir tal material para termos familiares - relacionando-o com nossa experiência prévia. O jogo dramático é apenas um exercício desse tipo. William James demonstrou que a memorização é mais fácil quando o material a ser apreendido pode relacionar-se com material que já nos é familiar.

Ainda que concordemos com as teorias Conexionista ou Cognitiva, não há dúvidas de que a repetição exerce um importante papel em nossa habilidade de retenção. Mas, para ser realmente eficiente, a repetição deve ser ativa, de algum modo: aquele que aprende deve fazer algo com relação à informação - usando-a de alguma maneira. Por exemplo: ler-recitando auxilia uma memorização mais rápida que a simples leitura, e Hunter afirma que as razões disso são: (1) a necessidade de antever trechos sucessivos da lição assegura que aquele que memoriza está ativamente envolvido na tarefa e não recai em releitura desatenta; (2) deve empenhar-se na recordação do material, isto é, começar a praticar exatamente aquela atividade que é seu objetivo máximo a realizar; (3) a recitação dá àquele que memoriza um conhecimento imediato dos resultados, dando-lhe uma idéia de seu progresso e estimulando-o para um progresso constante.

Este é, naturalmente, um outro nível de "aprender fazendo"; o estudante está exteriorizando o material e fazendo-o "funcionar". Não apenas é mais efetivo recitar o que deve ser aprendido, ao invés de simplesmente lê-lo, mas é mesmo mais efetivo atuá-lo - a prova disto está em que resulta mais fácil aprender o texto de uma peça que textos de poesia lírica.

Mas, a atuação em si ilustra um outro fator importante na memorização efetiva: aprender pelo todo. A psicologia da Gestalt demonstrou que há uma tendência geral da mente de aprender as coisas em relação a outras, e que a habilidade para apender desse modo é geralmente aceita como um sinal de comportamento inteligente. Um ator, memorizando um papel, a princípio, se familiariza com a peça como um todo; ele lê toda a peça primeiro buscando compreender os elementos básicos do enredo, construção, caracterização, e assim por diante. Chega, então, à compreensão de seu próprio papel e a relação deste com as outras personagens, com a situação etc.

No primeiro ensaio, ele "tateia" seu papel, com o texto nas mãos, agarrando-se aos traços mais salientes de seu papel. Principalmente, relaciona o que diz com o que faz: ele poderá dizer um trecho sentado e no seguinte pôr-se de pé - a relação entre a palavra e a ação é a chave do processo de memorização. Essencialmente, a compreensão e a familiaridade com o contorno do todo fornece um contexto de significado para cada uma das partes; propicia, também, uma lembrança imediata do que vem a seguir.

Enquanto que a memorização é bastante auxiliada pelo significado e pela repetição, um fator importante no processo de recordar é a imagem. Quando os órgãos dos sentidos são acionados pelos estímulos apropriados, são conduzidos à percepção. Mais tarde, quando desejamos recordar a percepção "através dos olhos da nossa mente" nos dizem para imaginar, ou formar imagens. Isto é também uma atividade, não algo estático, e há diferenças consideráveis na habilidade das pessoas em compor essas imagens.

A formação visual de imagens parece ser o processo mais comum e mais vívido (como quando nos recordamos de um amigo, pensando na imagem de seu rosto); em ordem de freqüência, viria a formação de imagem auditiva, tátil, cinestésica, gustativa, orgânica e olfativa. Embora cada um de nós utilize todos esses métodos na formação de imagens, não usamos o mesmo método para cada imagem específica (e isso pode, casualmente, criar dificuldades para professores que, com uma classe, utilizam um tipo de imagem quando alguns alunos podem necessitar o uso de outro método de formação de imagem).

Uma ou duas outras diferenças individuais são importantes. É quase certo, por exemplo, que nossa habilidade na formação de imagens varie de acordo com aquilo que estamos tentando recordar: funciona melhor quando estamos tentando recordar um objeto concreto (um rosto, uma cidade) do que de idéias abstratas, argumentos ou decisões. Isto pode estar relacionado com o fato de que a conformação de imagens parece ser mais vívida com crianças do que com adultos. E, também, pessoas que estão muito empenhadas, em seu cotidiano, com o pensamento abstrato, parecem apresentar uma habilidade média inferior na formação de imagens. Mas, há tantas exceções que isso está longe de ser uma regra.

Não há dúvida quanto à importância da formação de imagens para o processo de memorização. A eficácia de bons recursos visuais no ensino é uma evidência; facilita o aprendizado e fornece um referencial que pode ser recomposto em imagens posteriormente. Idéias tais como pensar no passado, no futuro, ou possíveis objetos e eventos necessitam do amparo de imagens. Muitas pessoas empregam, também, imagens de palavras, números e outros símbolos no pensamento matemático ou outro tipo de pensamento abstrato.

Não sabemos ao certo se a capacidade de formação de imagens pode ser incrementada, mas sabemos que a habilidade em recordar imagens pode ser estimulada por vários fatores: objetivo e interesse; freqüência com que se prolonga a recordação; a força com que a experiência original criou a imagem. Esta última, naturalmente, pode ser afetada de forma direta pelo jogo dramático: de certo modo, "viver um fato é conhecer o fato". Mas o jogo imaginativo é calcado na formação de imagens e, assim, a freqüência de tal experiência se relaciona com a freqüência da recordação; se, como professores, dirigimos e canalizamos o jogo das crianças de modo a que se relacionem com uma experiência valiosa, as crianças recordarão imagens valiosas.

Com propósito e interesse retornamos mais uma vez à motivação, que, na medida em que o jogo é um fator muito importante na atitude da criança, é a razão mais poderosa para o uso da imaginação dramática no aprendizado.
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O presente artigo, aqui um pouco resumido, foi extraído do livro "Jogo, teatro e pensamento", de Richard Courtney/ Editora Perspectiva/1968.

quinta-feira, 20 de maio de 2010

Teatro/CRÍTICA

"Tempo de solidão"

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Bela e onírica visão do amor


Lionel Fischer


Criado em 2006 pelo Centro Cultural Banco do Brasil, o projeto Seleção Brasil em Cena tem como principal objetivo a revelação de novos autores. Estes enviam seus textos e os 12 finalistas têm suas obras exibidas ao público na forma de leituras dramatizadas. Então, um júri popular seleciona as três melhores - que recebem prêmios em dinheiro no valor de 5 mil, 3 mil e 1 mil reais, respectivamente - e a vencedora ganha o prêmio suplementar de ver sua obra encenada no próprio CCBB.

Em 2009, "Tempo de solidão", de Márcia Zanelatto, foi a escolhida entre os 162 textos escritos e agora chega à cena (Teatro III do CCBB) com direção de Ivan Sugahara e elenco formado por jovens atores que participaram da leitura e foram para ela indicados por algumas das melhores escolas de teatro do Rio de Janeiro - Bruno Dubeux, Carol Garcia, Fábio Cardoso, Marília Misailidis, Samuel Paes de Luna e Victor Mattos.

"Tempo de solidão" é ambientada numa estação ferroviária. E esta, como sabemos, é um local de passagem, de embarque e desembarque. Isto, evidentemente, no plano real. Mas aqui, e ainda que mantendo, em certa medida, suas características essenciais, a estação criada pela autora deve ser encarada mais como uma metáfora, posto que os possíveis embarques ou desembarques não visam uma geografia específica, mas uma outra bem diversa: um possível (ou não) reencontro com um grande amor que se foi.

E aqui, em função do que assisti ontem, cabe uma breve reflexão. Em 99% dos casos, quando um casal se separa é porque algo de grave e irremediável ocorreu, ou então simplesmente porque o amor se esgotou. No entanto, Márcia Zanelatto trabalha este tema de forma absolutamente diversa: existiria, como de fato existe, a possibilidade de um casal se separar não porque deixou de se amar, mas porque uma das partes estaria precisando de um tempo para se reencontar, um tempo de solidão interna que possibilitaria uma avaliação de suas prioridades, estando aí incluída a opção amorosa. E sem esse distanciamento da pessoa amada, isto seria literalmente impossível.

Entretanto, a autora deixa implícito, de certa forma, que todo adeus pode conter ao menos a promessa de um encontro futuro, desde que a dor do afastamento não se converta em melancolia, pois esta paralisa e impossibilita todas as reflexões passíveis de gerar as almejadas transformações.

No presente caso, estamos diante de um casal e seu duplo (concepção criada pelo diretor) que se depara com chegadas e partidas, assim como interage com personagens lúdicos, como o mensageiro e o bilheteiro da estação. Mas o que está realmente em causa só diz respeito aos dois. E mesmo quando explicitam em palavras as causas da separação e a eventual possibilidade de um reencontro, existem passagens altamente expressivas, criativas e oníricas, como aquela em que a mulher conversa com o homem, convertido em boneco que emerge de uma caixa trazida pelo mensageiro: ele se confessa pequeno, impotente para se doar plenamente ao amor, assim justificando sua partida. Mas depois de ouvi-lo, a mulher não joga fora a caixa, pois sabe que nela existe a possibilidade do "pequeno" voltar a ser "grande", o que viabilizaria o retorno daquele que se foi.

Bem escrita, contendo ótimos personagens e pertinentes reflexões sobre múltiplos temas, sendo os principais o amor e o tempo, a peça de Márcia Zanellato chega à cena com irrepreensível versão de Ivan Sugahara, que teve a sagacidade de perceber que estava diante de uma obra que, para atingir efetivamente o coração do espectador, demandaria uma encenação que desse grande ênfase ao onírico, renunciando (ao menos parcialmente) a uma compreensão centrada na lógica, em uma análise meramente cerebral dos fatos materializados na cena. E foi graças a esta sábia opção que eu, particularmente, tive o privilégio de me "anular" como crítico e embarcar nesta inesquecível jornada, impregnada de sonho e fantasia.

Com relação ao elenco, todos exibem segurança e grande capacidade de entrega, afora, em muitos momentos, conseguirem preencher de sentimentos e forte carga dramática os propositais e longos silêncios criados pela direção. Assim sendo, nada me resta a não ser desejar que os sempre caprichosos deuses do teatro abençoem a trajetória artística deste jovem grupo que agora dá início à sua jornada artística.

No tocante à equipe técnica, Ruy Cortez assina uma cenografia atemporal e altamente poética, em total sintonia com as propostas do texto e da direção, sendo igualmente irretocáveis os figurinos que criou. Renato Machado ilumina a cena com grande sensibilidade, conseguindo enfatizar os múltiplos climas emocionais em jogo, sendo também irrepreensível a expressiva trilha sonora do diretor.

TEMPO DE SOLIDÃO - Texto de Márcia Zanellato. Direção de Ivan Sugahara. Com Bruno Dubeux, Carol Garcia, Fábio Cardoso, Marília Misailidis, Samuel Paes de Luna e Victor Mattos. Teatro III do CCBB. Quarta a domingo, 19h30

quarta-feira, 19 de maio de 2010

Ionesco: da revolta à submissão?

Bernard Dort


Vamos ler uma peça de Ionesco. Vamos ler, por exemplo, "Jacques ou A submissão", que Robert Postec acaba de nos apresentar no Théâtre de la Huchette. Falas curtas se sucedem, sem grande ordem, sem necessidade aparente. Os representantes de uma família burguesa lançam uns aos outros frases mancas. A linguagem que usam vai sucessivamente se desconcertando. Seus lugares-comuns se deterioram golpeados. Nem diálogos, nem monólogos: pedaços de frases, refrãos que parecem vir de uma vitrola rouca...Ionesco rompeu todo comércio com a literatura - com esta "boa literatura" na qual o teatro, desde o início do século, se alimentou com excesso, ao ponto de chegar a produzir um Jean Giradoux.

No espetáculo (sobretudo quando é tão cuidado, tão acertado, como o do La Huchette) estas falas que pareciam sem respostas, estas cenas das quais toda lógica parecia ausente, entregues somente ao prazer do arbitrário, reencontram sua coerência, se cobrem de evidência e adquirem vida. Do livro ao palco, a linguagem de Ionesco sofreu uma metamorfose: no livro parecia vazia, resultado de um jogo, da aposta de um escritor animado quase por um rancor solitário contra a literatura; no palco, adquire um sentido e uma função.

O leitor poderia se obstinar em negá-la. O público reconhece-a imediatamente: é a sua linguagem. Possui até mesmo a lógica da linguagem cotidiana. Não tem o peso de nenhuma verdade, de nenhuma mensagem psicológica ou metafísica. E mais, possui um significado em si mesma. Significa um mundo dividido, retalhado: um mundo esmagado pelo peso do passado, da estupidez e da hipocrisia sociais.

Pois aqui as personagens contam muito pouco. Das duas famílias reunidades em "Jacques..." é suficiente mencionar que o avô é paralítico, que a avó é louca, os pais, nobres, as mães, alcoviteiras...nunca saberemos mais que isso. O essencial não é isto. O essencial é a grande quantidade de palavras deformadas e de locuções tornadas absurdas à força de terem sido repetidas. O essencial é que Jacques pronuncia uma frase: "Eu gosto de batatas com toucinho" e que assim se submeta, volte para a ordem familiar, uma ordem que possui suas regras, suas palavras, sua linguagem própria, irredutível a qualquer outra ordem. Isto o espectador compreende à primeira vista: esta linguagem que se desdobra diante dele, com suas palavras bizarramente reunidas, revela ao mesmo tempo a ordem desta família e a desordem deste mundo, do nosso mundo, no qual semelhantes ordens são possíveis.

A aventura de Jacques será, como declarou Ionesco, "conduzida pouco a pouco através da recusa da condição humana - isto é, desta ordem familiar - até a mais completa submissão...até chegar ao ponto de se resignar a uma espécie de quietute biológica" - esta aventura se desenvolve inteiramente no plano das palavras. Tendo recusado, pelo silêncio, a linguagem e a ordem familiar, Jacques, entretanto, se deixa apanhar pela armadilha de uma outra linguagem, de uma outra ordem: a ordem, opressiva e úmida, de sua noiva Roberte. Ele penetra, enfim, num mundo onde "para designar as coisas não existe senão uma palavra: gato" - num mundo infantil, o equivalente do ventre materno...(é a espécie de quietude "biológica" de que falava Ionesco).

É neste ponto que se produz uma transposição: a linguagem ionesquiana passa do negativo ao positivo. Antes não passava de uma rejeição: agora reencontra a função do discurso teatral tradicional, a função da palavra trágica. Assim as "antipeças" de Ionesco (é o subtítulo que ele deu a "A cantora careca") voltam a ser peças. E este antiteatro se transforma num teatro, no sentido mais clássico do termo. Esta linguagem de derrisão, que existia apenas por referência à nossa linguagem, assim como o tornassol numa experiência química só vale pelo que nos revela, esta linguagem passa a existir por si mesma e arrasta os heróis em seu movimento.

Eis aqui um mundo sem saída, fechado, no qual Ionesco nos faz penetrar astuciosamente. Desde o princípio é a estranheza deste universo que nos atinge, nos surpreende e quase deslumbra; em seguida, sua profunda, sua literal semelhança com o nosso universo. Mas, além disso, pretende fazer "surgir o insólito" neste universo no qual reconhecemos nossa mais familiar realidade. A operação é difícil: às vezes tem êxito ("Jacques..."), às vezes fracassa (vejam "O Retrato" onde tudo permanece superficial, onde a própria linguagem, ao mesmo tempo flexível e mais descosturada, está privada desta coerência na desordem, desta força de persuasão que fazem o êxito de "Jacques..."). Ionesco tenta inutilmente velar a ironia desta metamorfose, ela permanece suspeita. Esta metamorfose não corre o risco, em última instância, de anular o que constitui a força do teatro de Ionesco?

Uma vez que vanguarda significa primeiramente destruição, compreende-se que Ionesco e Adamov tenham atacado o teatro em seu ponto mais sensível: o da representação da família. E também que tenham, cada um à sua maneira, procurado substituir a família tradicional (a das peças de André Roussin) por uma imagem mais dura: não mais a imagem de um ambiente onde tudo se arranja mas, sim, a imagem de um combate moral. E os diálogos feitos com piscadelas de olhos de nossas comédias de boulevard, são substituídos pela linguagem descarnada, despojada até restar só a trama (e a trama é o significante) de "A invasão" ou pela linguagem pletórica, efervescente, de "Jacques...".

Mas enquanto que, chegando ao beco sem saída de "Como nós fomos", onde a peça desaparece no silêncio, cada personagem estando de certa forma transida por seu passado, Adamov se esforçava com "Pingue-pongue" para escapar à miragem das "mães", Ionesco parece mergulhar num mundo elementar, regido por algumas grandes figuras arquetípicas. Longe de nos mostrar, para além da cpelula familiar, as relações que esta mantém com a sociedade, Ionesco reduz esta sociedade à família. E faz do policial, um pai; do capitalista, ainda um pai; do operário ou do artista (vejam "O retrato") um filho que, fugindo do pai, regressa à mãe - para no final elaborar uma condenação geral e deixar o universo inteiro submegir nos sonhos infantis.

Até o momento, portanto, a obra de Ionesco permanece como que desmembrada entre duas ambições: uma tomada de consciência social (o reconhecimento, nesta linguagem que gira no vazio, de nossa linguagem: uma palavra alienada e as fontes desta alienação) e a descoberta de um inconsciente tirânico, a consagração da servidão humana, abolida toda a sociedade, aos deuses e às deuas da Noite. Nesta última hipótese, ao mesmo tempo que nos proporia a imagem de um mundo absurdo, Ionesco procuraria significar também a fatalidade quase psicológica deste absurdo. Então não passaria de um Strindberg de três vinténs: um autor "moral" reduzido a mimar o inevitável afogamento do Homem solitário na ordem das essências malditas do sexo e da morte.
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Artigo extraído do livro "O teatro e sua realidade"/Editora Perspectiva, 1977/tradução de Fernando Peixoto.

terça-feira, 18 de maio de 2010

O teatro de Jean-Paul Sartre

León Mirlas


Em seu teatro, como em seus romances, Jean-Paul Sartre expôs os ângulos essenciais de seu existencialismo. Naturalmente, o exame de suas teorias está fora de lugar aqui; mas sua concepção do homem e do mundo impregna a tal ponto seus dramas, que não poderíamos deixar de abordá-la. Em sua tragédia "As moscas", por exemplo, Sartre não apela simplesmente ao mito para infundir-lhe um espírito moderno, como Anouilh, ou para recriá-lo, como Cocteau. Ele pega o mito clássico de Orestes, que regressa para vingar a morte de seu pai Agamenón, como pretexto para explicitar sua visão trágica do mundo.

Mais que tudo, trabalha aqui o conceito da liberdade, fundamental em Sartre. O povo de Argos, apesar de ser inocente de qualquer delito, tem a obsessão de compartilhar a culpa de Egisto, porque este havia cultivado durante muitos anos, na alma de seus súditos, a idéia de que são participantes de seu delito. Na realidade, são mais livres que ele, só que não o sabem; são atormentados pelo remorso de uma culpa inexistente, esses remorsos materializados pelas negras nuvens de moscas que são as vingadoras Erineas que os acossam.

Orestes venceu, precisamente, para libertá-los. Como libertador se coloca diante de Júpiter e se rebela, reivindicando sua condição humana. O rei dos deuses poderá reinar sobre as estrelas e os mares; mas ele, o homem, escapa a esse domínio. Ele é livre, orgulhosamente livre. É verdade que sua liberdade é ao mesmo tempo sua miséria, essa miséria do homem de que fala Pascal; mas isso já não interessa a Júpiter, esse é o segredo de Orestes que o filho de Agamenón levará orgulhosamente para o túmulo.

O mesmo conceito desempenha um papel crucial no drama "As mãos sujas". Aqui Sartre enfoca outro ângulo do mesmo tema: o da liberdade de escolha. O protagonista é um intelectual que milita em um partido extremista, que quer agir e não limitar-se a escrever e que se debate em sua impotência. Ele é encarregado de matar um dos dirigentes do partido e Hugo se sente incapaz de cometer um delito destituído de motivo, eliminar um homem a quem não só não odeia como por ele até nutre simpatia e admiração.

Aparece aqui a idéia do ato gratuito que formula André Gide em sua novela "Les caves du Vatican": a do ato sem motivo, totalmente desinteressado. Acossado pela necessidade de matar, o Hugo de "As mãos sujas" vacila, se detém, se frustra. Seu oposto, o homem de ação, pode agir sem inibições porque, como ele mesmo diz, submerge suas mãos sem temor nem repulsa na imundície humana, coisa que o intelectual puro jamais poderá fazer. Hugo não se rende a este crime gratuito e, finalmente, se mata.

"Entre quatro paredes" é uma das peças mais representativas do teatro moderno e, ao mesmo tempo, do pensamento de Sartre. O dramaturgo apresenta aqui uma imagem pessoal do inferno: uma casa sem janelas, de luz eternamente acesa, aonde se encontram pessoas que não podem suportar-se mutuamente e que dizem toda a verdade sobre elas mesmas. Entra aqui em jogo uma dupla idéia sartriana: por um lado, a da solidão irremediável dos homens, reclusos em si mesmos, sem esperanças de sair de si, donos de uma liberdade paradoxal que não podem usar; e, por outo lado, a idéia tão típica em Sartre de que o olhar dos outros, que nos persegue e acossa, é ao mesmo tempo nosso único alívio, já que só esse olhar nos valora, e também nosso castigo.

Quando o Garcin de "Entre quatro paredes" quer fazer amor com Estela, o detém o olhar de Inês, que é o olhar da multidão, como ela mesma diz, o olhar de todos os outros. "O inferno são os outros", diz Sartre com essa frase terrivelmente precisa. O dramaturgo nos encarcera na jaula mais terrível de nossa verdade; nos desnuda uns dos outros, sem a menor possibilidade de fuga. Neste caso trata-se de um desertor, uma infanticida e uma lésbica. E a peça é uma imagem terrível da personalidade humana, que se debate em um céu de quatro paredes.

O importante é o dantesco tormento de estarmos sós e reclusos a nós mesmos, sem que nada possa ajudar-nos, e, sem dúvida, de não podermos ficar sós, de ter que suportar o espetáculo dos outros. Há aqui a negação mais contundente da liberdade: não podemos estar sozinhos e isso basta para que não possamos ser livres.

Em "A prostituta respeitosa", uma peça de intenso laconismo dramático, Sartre apresenta outro caso de liberade condicionada, de falseio da liberdade, ao nos mostrar uma mulher a quem obrigam a calar a verdade que ela quisera gritar desesperadamente. Em "Os mortos sem sepultura" joga com o mesmo conceito nihilista da vida: estamos inseridos em uma sociedade sem esperanças e condenados a uma liberdade que não nos serve de nada, já que entre os homens não existe solidariedade, e todos os seres humanos são mortos em vida, mortos sem sepultura. A morte não dá sentido à nossa vida, pois morremos como temos vivido: sem nenhum motivo.
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Texto extraído do livro "Panorama do Teatro Moderno/ Editorial Sudamericana, Buenos Aires, 1956. Tradução de Lionel Fischer.
Teatro/CRÍTICA

"A natureza do olhar"

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Emocionado encontro no Sesi


Lionel Fischer


Certamente um dos maiores poetas de língua portuguesa, Fernando Pessoa (1888-1935) deixou uma obra vasta e diversificada, e também marcada por uma curiosidade: grande parte dela é assinada por heterônios criados pelo autor. Estes poetas "imaginários" possuíam nome, data de nascimento, data de morte, profissão e, curiosidade maior, um estilo literário e personalidade distintas das de seu criador.

No presente caso, tudo gira em torno do encontro entre Álvaro de Campos e Alberto Caeiro.
O primeiro, contrariando a natureza de seus versos, surge em cena como um homem angustiado ainda à procura de sua personalidade poética; o segundo, desconcertantemente simples, tenta aplacar as angústias de seu discípulo.

Eis, em resumo, o enredo de "A natureza do olhar", em cartaz no Teatro Sesi, após cumprir temporada em São Paulo. Elisa Lucinda e Geovana Pires assinam a adaptação, e encarnam Álvaro de Campos e Alberto Caeiro, respectivamente, com o espetáculo contando com supervisão de Amir Haddad.

Trata-se, sem a menor dúvida, de uma proposta bastante original, posto que foge por completo da estrutura de um recital, já que os vários fragmentos poéticos são incorporados aos diálogos. Além disso, cabe ressaltar que o espetáculo nos faculta o acesso não apenas a algumas poesias do genial autor, mas também - e sobretudo - à sua personalidade, obviamente "repartida" entre esses dois heterônimos.

Delicada e poética, contendo passagens bem humoradas e outras mais amargas, a presente montagem certamente poderá ser usufruída, com o mesmo prazer e encantamento, tanto por aqueles já familiarizados com a obra de Pessoa quanto por outros que a desconhecem. E isto também se deve à ótima peformance das duas atrizes, impecáveis na pele dos "personagens" que interpretam - Elisa Lucinda dá vida a Álvaro de Campos e Geovana Pires a Alberto Caeiro.

Na equipe técnica, Colmar Diniz e Francisco Leocádio assinam uma cenografia encantadora e funcional, sendo igualmente irretocáveis a sensível iluminação de Djalma Amaral, os irrepreensíveis figurinos de Colmar Diniz e Maria Duarte, a música original de Carlos Malta e os adereços de Elysio Filho.

A NATUREZA DO OLHAR - Adaptação e interpretação de Elisa Lucinda e Geovana Pires. Supervisão de Amir Haddad. Teatro Sesi. Sexta a domingo, 19h30.

terça-feira, 11 de maio de 2010

História do Teatro

Lionel Fischer

O que se segue é um resumo (e bota resumo nisso!) da História do Teatro desde sua criação até o início do século XX. Este texto é dirigido sobretudo a jovens estudantes que, com uma constância comovente, têm me pedido para colocar neste blog "uma geral do que rolou desde o começo". Após relutar o quanto pude, acabei me rendendo aos múltiplos apelos. Mas no tocante ao século XX e XXI, fica para uma próxima ocasião - digamos, daqui a uns 10 anos...

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O Nascimento

Tudo se inicia na praça do velho mercado de Atenas, a mais importante cidade-Estado da Grécia no século VI a. C. Contra a vontade de Sólon, tirano e legislador eficaz mas nem sempre dedicado às sutilezas da sensibilidade, o povo preferiu acreditar em cada gesto de Téspis - um homem estranho, que ousava imitar os deuses e os homens.

Grossa túnica nos ombros e tosca máscara sobre o rosto, Téspis desceu solene e grave os degraus do altar que improvisara sobre uma carroça. E sem esperar que os circundantes se refizessem do inesperado, afirmou: "Eu sou Dionisio". Foi um sacrílego e surpreendente momento das festas que a tradição reservava ao deus da alegria; foi também o instante em que, pela primeira vez, um obscuro e arrogante grego se fez aceitar como deus de carne e osso pelos atenientes do mercado. E foi o começo de uma aventura espiritual que atravessaria os séculos, mesclando - à imagem do próprio homem - verdade e fantasia, risos e lágrimas: o nascimento do Teatro.

No século seguinte, V a. C., quando a democracia se instalou na Grécia, começaram a ser organizados concursos que premiavam quem melhor falasse a sua linguagem e distraísse a multidão.


A tragédia grega

Na Atenas democrática do século V a. C., os grandes autores trágicos usariam de maneira mais racional, embora carregados de emocionalismo, os elementos que Téspis desorganizadamente vislumbrara nas suas imitações. À túnica, à máscara, à luz das tochas e aos eventuais recursos de encenação improvisada incorporou-se a poesia como núcleo. Ao mesmo tempo, em substituição à pequena carroça de Téspis, implantou-se a grande plataforma fixa, um palco verdadeiro sobre o qual já se podia organizar um espetáculo, com atores, coro e arquibancadas, anualmente levantadas para um imenso público.

Esse dimensionamento ganhou ainda maior proporção quando se escolheu um local para as representações: o terreno consagrado a Dionisio na encosta sudeste da Acrópole. Ali Ésquilo, Sófocles e Eurípedes tiveram encenadas quase todas as suas tragédias, sempre marcadas pelo mesmo tom ritualístico com que os clãs da Grécia arcaica celebravam Dionisio, a boa divindade da paixão e da embriaguez, capaz de traduzir a ilusão mágica de que os mortais comungam com a natureza divina.


Como eram as tragédias

Versando sobre realidades e mitos, as histórias das tragédias eram conhecidas de todos. Falavam de heróis legendários em luta contra o Destino inexorável, e dos deuses, sempre presentes para recompensar a coragem e punir a rebeldia. A partir do comportamento do herói diante das imposições do Destino, organizava-se toda a ação dramática.


A Catarse

A catarse foi definida pelo filósofo Aristóteles como um fenômeno que purifica a alma das paixões sufocantes. De acordo com ele, "ao inspirar, por meio da ficção, certas emoções penosas ou malsãs, especialmente a piedade e o terror, a catarse nos liberta dessas mesmas emoções".


A primeira estética
da arte dramática

Baseado na observação crítica das tragédias, Aristóteles construiu a primeira estética da arte dramática: a "Poética". Nela acham-se definidos o pensamento, a fábula, o caráter, a linguagem, a melodia e a encenação - os seis elementos essenciais da obra teatral. Todos eles deveriam estar subordinados à regra das três unidades - ação, tempo e lugar - observadas de certa maneira pelos autores gregos e pelos clássicos franceses muitos séculos depois. Uma curiosidade: o teatro grego é responsável pela invenção de dois termos para designar caracteres opostos: "protagonista" (herói) e "antagonista" (vilão).


Comédia: o Teatro
como brincadeira

Originada da parte mais alegre do ditirambo - cântico improvisado das primitivas procissões dionisíacas - a comédia encerrava os festivais atenienses mostrando aos espectadores que o teatro é uma grande brincadeira.

Os gregos associavam a comédia a personagens ridículas representadas como pessoas absurdas e ofensivas. Apresentada como uma forma burlesca da tragédia que a precedera, a comédia nem por isso deixava de dirigir críticas mordazes às instituições e às pessoas notáveis. Os próprios deuses eram objeto de sua contundente jocosidade. O maior comediógrafo grego foi Aristófanes, e dentre os romanos citamos Plauto e Terêncio.


Roma domina o mundo e
o Cristianismo se impõe

Durante todo o período de expansão política de Roma e na fase em que o império mostrava sinais de decadência, a comédia popular manteve um público certo. E nem mesmo a adoção do Cristianismo - impondo seus valores a um mundo que se fragmentava - foi suficiente para mudar de imediato os costumes. O povo continuava vibrando com a licenciosidade do mimo e da pantomima, forma dramática sem palavras, baseada na imitação mais ou menos estilizada. No século V, numa de suas primeiras manifestações de autoridade, a Igreja acabaria por excomungar os atores, medida que não foi suficiente para terminar com os espetáculos. Assim, no século seguinte, os teatros foram rigorosamente proibidos de funcionar.


Teatro Medieval: uma
fantástica visão de sonho

Nessa época, a Igreja detinha o monopólio da educação. Mas os espetáculos profanos não perderam sua força, apenas eram confinados no interior dos feudos, mais precisamente dentro dos castelos senhoriais. É aí que surge a figura do Menestrel. Ele era um misto de cantor da corte da primitiva Idade Média e do antigo jogral dos tempos clássicos. Dotado de impressionante versatilidade, o Menestrel ocupou o lugar do poeta culto, especializado na balada heróica. Mas não assumiu apenas a função de poeta e cantor. Era a um só tempo músico, dançarino, dramaturgo, ator, palhaço e acrobata, executando divertimentos de todos os gêneros, desde as canções de baile às histórias de fadas e lendas dos santos. O Menestrel tentava o sensacional, as grandes tiradas, a poesia viva. O Menestrel também sofreu a hostilidade do clero, diante do qual sucumbiram os cantores nos séculos VII e IX. Assim, a partir dessa época, multiplicaram-se os artistas errantes e vagabundos, que se viam obrigados a procurar seu público nas estradas e feiras.


Cultura: patrimônio da Igreja

Aos camponeses convocados para festejar as datas católicas, eram didaticamente apresentadas as chamadas Moralidades, em que abstrações como a gula e a luxúria, consideradas pecados capitais, surgiam na forma de terríveis demônios. Esse apavorante teatro a serviço de idéias religiosas continha ao mesmo tempo rústicos traços de tragédia, comédia e farsa. O programa cultural da Igreja atingiu completamente seu objetivo no fim do século X. Com a aproximação do ano 1.000 passou-se a pregar o fim do mundo, o julgamento final e o terror da morte. Os homens viviam em constante estado de excitação religiosa, com peregrinações, cruzadas e excomunhões de imperadores e reis.

O incipiente teatro medieval de inspiração religiosa é o resultado de uma fantástica visão de sonho. Com o reflorescimento do comércio e da vida urbana, no século XI, aparecem novas cidades e mercados, novas ordens e escolas, mas por muito tempo ainda se respirou a atmosfera apocalíptica do Juízo Final. Sobretudo na Espanha, a técnica das Moralidades passou a ser utilizada no drama litúrgico que se desenvolveu entre os séculos XII e XIII. O mais antigo exemplo que se conhece em língua castelhana é o "Auto dos Reis Magos", peça que integrava o ciclo de Natal.

Objetivando indicar os caminhos de salvação da alma, os Autos falavam dos episódios bíblicos e exaltavam a vida dos santos e mártires que haviam tombado em nome da fé. Eram geralmente peças em um ato, com indisfarçável caráter alegórico, que integravam as encenações cíclicas; na Espanha, tornaram-se famosos os ciclos de "Corpus Christi" (que celebrava o mistério do Eucaristia) e o da "Paixão" (quando se rememorava a tragédia de Cristo). As representações da "Paixão" compunham-se de numerosas cenas em seqüência, com centenas de atores. Elas duravam diversos dias e seus episódios, muito mais do que simples situações dramáticas, demonstravam o gosto pelo espetacular e pelo movimento.


O espaço de representação
na Idade Média

A Idade Média não criou um edifício teatral próprio. No início, os espectadores se confundiam com o próprio ofício religioso. Tinham lugar dentro ou diante do pórtico das igrejas. Mais tarde, foram transferidos para a praça pública. Uma tela imensa, fixada por cordas, cobria os espectadores. Os privilegiados dispunham de camarotes especiais, mas essa hierarquia não destruía o espírito de celebração de caráter eminentemente religioso. A praça estimulava o comparecimento do povo, que se mostrava arredio a locais fechados. Assim, o drama religioso estava destinado a se fundir com os gêneros profanos.

Os Autos Sacramentais começaram a ser montados sobre carroções, nos quais se armavam complicados cenários e engenhosos maquinismos, capazes de proporcionar a ilusão de milagres e aparições de santos e diabos. E, além dos truques técnicos, o teatro incorporou o luxo dos figurinos. Renovado anualmente, o traje dos atores era então de uma riqueza extraordinária. Embora os artistas itinerantes se vissem obrigados a atuar nessas peças didáticas e maniqueístas, em que o catolicismo levava à salvação e a irreligiosidade à danação eterna, muitos deles já começavam a ganhar certo prestígio em repertórios que prenunciavam a liberação renascentista.


Renascença: o homem como
medida de todas as coisas

Desde o final da Idade Média, as grandes casas senhoriais contratavam seus próprios atores em substituição aos antigos menestréis. Nas datas festivas, sobretudo no Natal e nos casamentos, esses comediantes encenavam peças especialmente escritas para a ocasião. Mas mesmo quando se organizavam em companhias independentes, continuavam respeitando a relação de serviço, pois submetendo-se ao patronato ganhavam proteção contra a animosidade das autoridades da cidade. Além disso, recebiam uma pequena anuidade e somas extras quando representavam na casa do amo.

Os atores domésticos são herdeiros diretos dos menestréis e bobos da corte e estabelecem o elo com os artistas profissionais da Renascença, do Barroco e da Idade Moderna. Com a gradual decadência das velhas famílias e o fortalecimento do poder real, os comediantes tiveram a princípio que se sustentar por si mesmos. No entanto, a centralização da vida cultural e palaciana em cidades como Florença, Londres, Madri e Paris serviu de poderoso incentivo para a formação de companhias regulares de teatro. Os países europeus achavam-se então em plena Renascença quando as artes começaram a se emancipar dos dogmas eclesiásticos para se ligar intimamente à filosofia humanista.

O teatro sofreu de alguma forma essa evolução, embora o drama religioso despontasse ainda com certa insistência na obra de portugueses (com Gil Vicente) e espanhóis do chamado "Século de Ouro" (XVI e XVII), sendo os mais renomados Lope de Vega e Calderón de la Barca - o Brasil também conheceu esse drama teatral didático e religioso na época da colonização, através dos Autos do jesuíta e poeta espanhol José de Anchieta. Instrumento de catequisação, o teatro jesuíta apoiava-se nas lendas dos mártires e dos santos, incluindo histórias do Velho Testamento e da mitologia clássica, mostrando em cenas horripilantes as conseqüências da heresia e da maldade.


Lope de Vega: criador da
moderna dramaturgia

A Lope de Vega se deve o estabelecimento das fórmulas da Comedia Nueva, que reduziu a três o número de atos, fundiu os elementos trágicos e cômicos, dinamizou a ação e a intriga, e repeliu as unidades aristotélicas de tempo e lugar. A Comedia Nueva era encenada nos corrales, teatros públicos urbanos surgidos na Espanha. Consistiam de um pátio cercado de casas, que as ordens religiosas alugavam às companhias. Tratava-se de um teatro a céu aberto, com um pequeno palco coberto e um cenário simples. As funções duravam duas ou três horas, terminavam antes do pôr-do-sol e eram repetidas três vezes por semana. Esse foi um dos primeiros teatros a se diferençar das representações da Igreja e dos espetáculos encenados na corte.


Commedia dell' Arte:
Teatro do povo

Na Itália, onde uma rica classe de banqueiros e comerciantes havia estabelecido as premissas do desenvolvimento capitalista do Ocidente, a nova cultura artística aflorou mais rapidamente. Assim, já em meados do século XVI, os atores e as companhias se profissionalizaram através da Commedia dell' Arte, uma forma de teatro popular surgida em oposição à comédia literária e erudita de autores como Ariosto, Aretino e Maquiavel, que seguiam fielmente o modelo clássico romano estabelecido por Paluto e Terêncio.

A Commedia dell' Arte vulgarizou a trama, as intrigas e as situações, aproveitando máscaras e trajes carnavalescos e os grandes recursos da pantomima popular. Permitindo ao ator ilimitados recursos de improvisação, o gênero fez do intérprete o mais importante elemento do gênero teatral. Embora os intérpretes devessem seguir os achados cômicos (lazzi) e respeitar os roteiros básicos (canovacci), havia extrema liberdade de variações. Assim, era válida a idéia de que os diálogos se conjugassem de acordo com a fantasia do momento.

Essa liberdade criadora, paradoxalmente, confina-se por outra limitação: os atores fixavam-se sempre numa "máscara", especializando-se em determinado papel, pelo qual ficavam famosos até a morte. Com base num esquema, os cômicos davam largas à sua imaginação. Mas, na realidade, eles acabavam por ser autores de um só tipo. Geralmente, o espetáculo mostrava um casal de namorados em luta contra a proibição dos pais, em meio a intrigas e acrobacias dos criados e intervenções do Arlequim, da Colombina, de Pantaleão, do Doutor e do Capitão.

As companhias itinerantes fizeram da Commedia dell' Arte um dos gêneros mais populares de toda a Itália, com profundos reflexos no teatro europeu da época. Contudo, a pobreza do texto, provocando desequilíbrios no espetáculo, constituiu o principal fator de sua decadência. No século XVIII, Goldoni, autor máximo do teatro veneziano, iria se inspirar na Commedia dell' Arte para escrever suas principais peças de costumes, mas teria o cuidado de limitar a palhaçada gratuita e a improvisação arbitrária. De qualquer forma, a Commedia dell' Arte pode ser considerada o ponto de partida das diferentes e posteriores formas de teatro do povo, que culminaram no drama shakespeariano.


O Teatro Elisabetano

O drama medieval, que consistia principalmente em festas públicas e pantomimas, fora transformado pelos humanistas num trabalho de arte literária. Shakespeare - que dispensa maiores apresentações - adotou essa inovação, conservando ainda a separação medieval entre palco e platéia, além da mobilidade de ação do drama religioso. Mas no conteúdo e na tendência, seu teatro foi determinado pela estrutura social e política da época - época do realismo político, que leva o conflito dramático da própria ação à alma do herói.

Um fato importante aconteceu com a dramaturgia inglesa: os primeiros dramaturgos profissionais do país já não escreviam exclusivamente para a corte e passaram a apresentar suas peças nos pequenos teatros londrinos recém inaugurados: The Theatre, The Rose, The Globe e The Fortune. E a platéia era bastante heterogênea, embora as classes superiores constituíssem a grande maioria.


O Classicismo francês

No mesmo momento em que o teatro renascia em Londres, os autores franceses lançavam sérias críticas à obra de Shakespeare, a quem não perdoavam o desprezo pelas regras aristotélicas, principalmente à unidade de tempo e espaço e à nítida separação de elementos trágicos e cômicos. Ou seja: os dramaturgos franceses do século XVII seguiam fielmente as regras estabelecidas pela "Poética" de Aristóteles. Mas sua obra, quando comparada à dos gregos, é repleta de artificialismo e arbitrariedade, pois faltava-lhe o sentido trágico que os atenienses haviam encontrado naturalmente em sua comunidade. Apesar de tudo, o teatro de Corneille e Racine atingiu momentos de grande perfeição formal.


Molière

É o maior nome do teatro francês da época. Embora pertencesse à classe média, como a maioria dos escritores do período, Molière conquistou os salões porque não era um simples executante de trabalho manual, a cujo respeito a nobreza nutria seu mais antigo preconceito. Além disso, não punha em xeque a instituição da monarquia, a autoridade da Igreja e os privilégios da corte. Mas, ao colocar em cena heróis que reagiam com empenho diante de um problema - Em "O tartufo", diante da religião; em "Don Juan", diante do amor; em "O misantropo", diante da sociedade - e ao descrever impostores, falsos devotos e maus cristãos, Molière angariou a fúria dos censores. Suas peças continham mais verdade do que seria desejável. Mas, sempre que pôde, o autor de "O burguês fidalgo" não deixou de criticar a estupidez dos nobres com a mesma irreverência com que mostrou a vulgaridade de camponeses, pequenos comerciantes e burgueses.


Século XVIII: dramas burgueses
e tragédias político-históricas

Neste século surge o drama burguês. Esse teatro exprimia anseios romântico-emocionais, mas acaba insistindo nas convenções herdadas do classicismo. Sem compreender a verdadeira diferença entre tragédia e tristeza, o público preferia sempre um desenlace satisfatório. Os principais nomes do drama burguês - Lilo, Diderot e Lessing - escreveram peças em que o indivíduo era condicionado pela realidade do cotidiano. Ao mesmo tempo, na corte de Weimar (Alemanha), Schiller e Goethe desenvolviam o classicismo alemão, criando dramas e tragédias político-históricas movidos por intenções idealistas.


Século XIX

Neste século, numa tentativa de desmistificar a figura do herói romântico e idealista, e certamente visando conferir à cena uma maior carga de verdade e atualidade, surge o Naturalismo. Um dos pilares desse movimento foi o escritor francês Émile Zola, que dizia que o artista deveria descrever objetivamente a realidade, transformando-se em verdadeiro pesquisador com intenções pedagógicas e críticas. O primeiro grande dramaturgo a trabalhar com conceitos naturalistas foi o sueco Strindberg em obras como "O pai" e "senhorita Julia". Esse naturalismo foi convertido mais adiante em Realismo, cujo maior nome é o norueguês Ibsen - temos também Gogol, Shaw, Tchecov etc.


Qual a diferença entre
Naturalismo e Realismo?

O conceito de Naturalismo pressupõe uma cópia fiel da realidade. O Realismo dispensa essa rigidez quase que fotográfica.


Antoine:
encenações naturalistas

Um dos primeiros grandes encenadores do teatro moderno foi Antoine (1859-1943). Fundador do Teatro Livre de Paris e do Teatro Antoine, ele introduziu o Naturalismo na encenação. Ele pretendia copiar a vida em todas as suas minúcias, empregando para isso recursos de iluminação e cenários que transformavam o palco numa grande fotografia. Se a ação se desenrolava num açougue, por exemplo, fazia do palco um verdadeiro açougue. Dos atores exigia não apenas que interpretassem, mas que vivessem os personagens com total identificação. A ele se deve a introdução do conceito de "quarta parede", um dos pontos básicos da interpretação naturalista: os atores deveriam considerar a boca de cena como a quarta parede do cenário, a fim de ignorarem o público e atingirem a plena verdade dos personagens.


Os simbolistas:
rejeição ao Naturalismo

Mas essa obsessão por copiar a realidade acabou sendo contestada pelos adeptos do Simbolismo - escola literária que pregava a expressão subjetiva através de símbolos. No teatro, os artistas contrários aos naturalistas sustentavam que eles, no fundo, padeciam de falta de imaginação. Ao invés, por exemplo, de copiar em cena um açougue, os simbolistas achavam muito mais válido e teatral apenas sugeri-lo por meio de abstrações, ou seja, apresentar uma idéia estilizada que dele se fazia. Essas idéias, que também seriam aproveitadas pelos expressionistas, possibilitaram o nascimento de uma estética teatral que utilizava muito mais recursos de luz, som, movimento, cor e volume como instrumentos a serviço da projeção da ação dramática.

E os maiores responsáveis pela rejeição ao rígido esquema naturalista foram encenadores como Stanislavski, Meyerhold, Max Reinhardt, Adolphe Appia, Gordon Craic, Jacques Copeau, Artaud, Brecht, Piscator, Dullin, Jouvet, Jean Louis Barrault, Jean Villar, Roger Planchon, Gaston Baty e mais adiante Victor Garcia, Julien Beck e Judith Malina, Tadeuz Kantor, Eugenio Barba e o maior de todos, Peter Brook.