sexta-feira, 30 de agosto de 2013

CAMPANHA: VEM PARA O TEATRO, VEM!

        Há mais de 10 anos a APTR, zela pelos interesses coletivos, morais, culturais e materiais dos que exercem a produção teatral no Brasil, além de promover a representação dos produtores de espetáculos de artes cênicas perante órgãos públicos e privados, visando garantir, divulgar e incentivar o exercício da produção teatral e em especial para desenvolver a arte, a formação e a ampliação do público teatral.
O movimento VEM PARA O TEATRO, VEM! nasceu porque há na produção cultural carioca uma imensa pluralidade de gêneros, estilos artísticos e de modos de produção; o público carioca está aberto e receptivo a esta diversidade, mas percebemos que a cultura teatral, enquanto entretenimento, não está na lista de prioridades do cidadão carioca.
         Como destacar as qualidades únicas da produção teatral carioca? Como colocar o teatro carioca no seu lugar de merecimento ao lado de outras maravilhas da cidade do Rio de Janeiro? Diante de tantas belezas geográficas, nossa cidade tem uma vocação natural para o turismo ecológico e para os esportes de maneira geral. No entanto, também é notória a importância de diversos artistas e espetáculos que são nascidos ou acolhidos pelo Rio de Janeiro e que fazem ressoar sua arte daqui para os palcos de todo Brasil. Como aliar esta importância?  Como mostrar ao turista (e ao próprio carioca) que o Rio de Janeiro é o lugar ideal para se divertir na praia, nos estádios de futebol e, também, no teatro?
         E tomando como base as constantes e recentes reivindicações do cidadão carioca no tocante a educação de qualidade: como mostrar ao cidadão (incluindo, em especial, os professores) o poder transformador do teatro e a necessidade de termos a cultura como prioridade para o nosso enriquecimento cultural e para a prática da cidadania?

         Mediados por essas questões, sob o viés de suas próprias experiências, nossos convidados irão explanar suas percepções sobre a produção teatral profissional atual, revisitando antigos caminhos e revelando novos horizontes que poderão nos ajudar a compreender o momento atual da produção teatral e, claro, indicar novos rumos do teatro e de seu público.

        A Associação dos Produtores de Teatro – RJ – APTR - convida a todos para o lançamento da CAMPANHA VEM PARA O TEATRO, VEM!


Data: 03 de setembro de 2013
Local: Teatro do Leblon – Sala Tônia Carrero - Rua Conde Bernadotte, 26 | Leblon - Rio de Janeiro - RJ.
Horário: 10H Coffee Break 11H início
Mesa: aguardando confirmações, será formada por: 1 indicado do jornal O GLOBO, 1 indicado da TV GLOBO, 2 atores/produtores, 1 autor/produtor e o Presidente da APTR Eduardo Barata
Mediador: Andrea Alves (colegiado da APTR)


Informações:

producao@aptr.com.br



quarta-feira, 28 de agosto de 2013

Bob Wilson e o impasse pós-moderno

Trabalho escrito durante o período de doutorado (USP/Sorbonne Nouvelle), por Fernando Kinas.

Uma das referências na análise do teatro do século vinte é o espetáculo Einstein on the beach, dirigido em 1976 por Robert Wilson. A peça (ou ópera, como foi chamada pelo diretor, ou ainda "evento multimídia", quando a expressão não era tão comum) foi criada em parceria com o músico Philip Glass. O espetáculo fez uma importante carreira internacional e pôs de pernas para o ar parte do cânone dramático herdado dos clássicos, abalando muitas das certezas teatrais da época. Einstein on the beach marcou, para muitos, uma espécie de ano-zero do teatro contemporâneo, assim como 1950 marcou o início do teatro do absurdo ou 1881, o drama realista. A revolução, na verdade, poderia ter como data o ano de 1970, quando Bob Wilson dirigiu O olhar do surdo, inspirado na sua relação com uma criança surda-muda, mas este espetáculo, em que pese suas ousadias e qualidades, não teve o mesmo impacto internacional. Mais significativo do que estas datas, no entanto, é entender a natureza do percurso artístico de Bob Wilson como meio de compreender algumas das transformações da arte nas últimas décadas do século 20 e começo do 21. Afinal, a obra deste criador se espalha por três décadas de atividade, sessenta espetáculos e uma quantidade considerável de questões colocadas à arte contemporânea.

Robert Wilson nasceu no Texas em 1941, fez estudos de arquitetura e se interessou pela pintura. Ele já foi chamado de pai do "teatro visual" (a tautologia salta aos olhos), ou do "teatro de imagens" (idem). O rigor matemático das marcações, a criação de grandes espaços plásticos, quase oníricos, a precisão e a sofisticação tecnológica no uso do som e da luz, e a justaposição de cenas aparentemente desconexas, introduziram no teatro algo além do velho conflito dramático, das personagens individualizadas e da narrativa tradicional. Não há dúvida que Bob Wilson enviezou os procedimentos narrativos clássicos do teatro . Segundo Hans-Thies Lehmann:

“A tragédia antiga, os dramas racinianos e a dramaturgia visual de Robert Wilson são, certamente, formas de teatro. Mas pode-se dizer – se nos fundamos na acepção moderna do drama – que a primeira é de natureza ‘pré-dramática’, que os dramas de Racine são inegavelmente teatro dramático, e que as ‘óperas’ de Robert Wilson devem ser qualificadas de pós-dramáticas. Quando manifestamente a ilusão dramática não é mais simplesmente rompida ou substituída pela distância épica; quando, manifestamente, não se tem necessidade nem da ação dramática nem das dramatis personae plasticamente concebidas; quando nem uma colisão dramática/dialética dos valores nem mesmo das personagens identificáveis não são mais necessárias para produzir o teatro (e o novo teatro demonstra tudo isso largamente), então o conceito de drama, mesmo com mil diferenciações, perde seu valor conceitual.” (LEHMANN, 2002, p. 45)

É essa obra inovadora e complexa que influenciou artistas em todo o mundo, incluindo o Brasil, onde Bob Wilson esteve no início e no final dos anos noventa (When we dead awaken, 1991; Time rocker, 1998), e em 1974, quando dirigiu uma remontagem de A vida e a Época de Joseph Stalin, espetáculo monumental com mais de cem artistas e doze horas de duração. Na remontagem brasileira, em plena ditadura militar, o Joseph Stalin do título precisou de um pseudônimo para contornar a censura, Stanley Clark. Mais uma das "contribuições" dos militares brazucas à cultura mundial.

No entanto, da vanguarda norte-americana dos anos 1960 e 1970 até hoje, muita água passou sob a ponte. Bob Wilson se transformou numa das estrelas incontornáveis das artes internacionais, fazendo parte, habitualmente, da mesma lista que inclui artistas como Peter Brook, Merce Cunningham, Pierre Boulez ou Pina Bausch. Suas óperas e peças de teatro, e em menor medida suas instalações, são produtos caros, fartamente subvencionados, integrados à grande indústria cultural e, muitas vezes, mitificados tanto pela crítica, quanto pelo público. Ele ocupa regularmente grandes casas de óperas (Scala de Milão, Metropolitan de Nova York, Ópera de Paris) e apresenta suas peças em alguns dos teatros mais prestigiados do mundo, entre eles o Schaubühne de Berlin e o Odeon de Paris. Talvez uma certa unanimidade tenha contribuído para o estágio atual em que se encontra sua produção. Alguns críticos apontam repetição de fórmula e mesmo auto-paródia. Sem dúvida a deglutição rápida das inovações e um ambiente de “vale-tudo” teórico ajudaram a empurrar seus espetáculos para a roda-viva da grande indústria do entretenimento. Eles acabaram se integrando com relativa facilidade ao ambiente morno e seguro do establishment cultural. De outro lado, não se pode ignorar as resistências do diretor, seja pela insistência em aprisionar o tempo, construindo encenações lentas, que dilatam o espaço-tempo convencional, tão na contramão da vertigem televisiva e cinematográfica dominante, seja pela recusa da significação, resistindo em fornecer imagens acompanhadas dos seus reconfortantes referentes. O significado, em vários espetáculos de Bob Wilson, parece estar em outro lugar, escapando da lógica interpretativa comum ao drama de corte burguês. Neste ponto Bob Wilson se aproxima de Beckett, um dos pouquíssimos autores teatrais que o diretor norte-americano confessou admirar e do qual cogitou montar os textos.

É neste contexto que se pode avaliar alguns dos seus trabalhos dos anos 1990, como Donna del Mare. O espetáculo dirigido por Wilson em 1998 tem texto de Susan Sontag - baseado na peça homônima do dramaturgo norueguês Henrik Ibsen (1828-1906) - e figurinos criados por Giorgio Armani (sic). Em Paris a peça participou do festival EXIT, evento criado em 1994, que procura revelar novas tendências nas artes cênicas internacionais. Ao lado de Bob Wilson, que – é preciso dizer – integra há algum tempo a velha guarda da avant-garde, estavam, por exemplo, o coreógrafo Ron Brown e a vídeo-artista Marianne Weems, ambos de Nova York, as companhias Out of joint (criada em Londres pelo diretor Max Stafford-Clark) e o grupo inglês de teatro de marionetes Faulty optic. Curiosa e sintomaticamente o Festival também programou uma peça-homenagem sobre a vida e a obra de Bob Wilson, Bob, dirigida por Anne Bogart. As experimentações de Bob Wilson parecem estar, definitivamente, absorvidas pelo circuito cultural, a ponto de receberem louvação pública na forma de outras obras de arte. O potencial de transgressão e de inovação definhou a tal ponto que seus últimos trabalhos passaram para a rubrica da arte “consagrada”, com a consequente neutralização do seu eventual efeito estético e potencial crítico.

As reações sobre Donna del Mare foram bastante modestas. O trabalho corresponde àquilo que se pode chamar de tipicamente wilsoniano: ritmo lento, precisão e assepsia técnica, interpretações "frias" (ausência de traços naturalistas e recusa psicológica), criação de uma paisagem, sonora e visual, exuberante. Características, aliás, que estão também na ópera A flauta mágica, de Mozart, com direção cênica de Bob Wilson, que fazia parte, no final dos anos noventa, do repertório da Ópera de Paris. Nos dois casos, peça e ópera, em salas lotadas, o público assistiu trabalhos competentes, visualmente impactantes, mas, digamos assim, combalidos. Em especial nas óperas - talvez em função do gigantismo das produções e dos preços elevados dos ingressos (um bilhete na platéia da Opéra Bastille custava, na época, algo como 500 reais) -, seus trabalhos se aproximem cada vez mais de um ritual cultural, destinado à um público tão chic quanto desinteressado. Acontece com Wilson o que parte do mundo teatral tenta fazer há décadas com Brecht, ou seja, transformá-lo num clássico contemporâneo, devidamente controlado. Exaustão pelo sucesso. Existe melhor forma para tornar um artista inócuo e dócil, seja ele encenador ou dramaturgo, do que integrá-lo ao sistema oficial da grande arte, com suas fartas subvenções, recepções glamourosas, viagens internacionais, coqueteis e coberturas midiáticas que seguem a lógica do business cultural?

Donna del Mare é uma peça que não demora para desaparecer da memória. O público da première francesa foi apático nos aplausos até mesmo quando o diretor subiu ao palco, apesar de não faltarem as ovações de praxe dos fãs incondicionais. Escrita em 1888, com tintas simbolistas e folclóricas, a história é mais evocativa do que factual. Bob Wilson mantém a estrutura linear do texto, exceto pelo resumo shakespeariano da ação, no início da peça. A história conta o drama de Ellida, uma jovem mulher, casada com Hartwig, um médico muitos anos mais velho do que ela. Desde a morte do filho recém-nascido, ocorrido três anos atrás, ela vive insatisfeita e distante do marido. Ellida, que se refugia na paixão pelo mar, encontra um estrangeiro, na verdade um ex-amante, e implora ao marido para partir com este velho conhecido. Quando o marido finalmente consente, livre para escolher, ela decide continuar ao lado de Hartwig, não sem antes, contraditoriamente, imaginar seu assassinato. Susan Sontag fez um trabalho de reescritura apreciável, redimensionando o debate sobre o feminismo. Ela altera o final da peça sem facilitar a obra para um público cem anos mais velho do que aquele de Ibsen. O problema, portanto, não está aí, mas sim na falta de força da encenação. Bob Wilson continua afiado contra o velho jogo das subjetividades em conflito, mas no lugar dele não surge nada de consistente, como ainda era possível se ver em espetáculos imediatamente anteriores, especialmente Hamlet, um monólogo (1995). Não é a estilização que incomod - de Bob Wilson não se esperaria o contrário -, o que não funciona é a forma como ela é realizada. Em Donna del Mare as atuações de Dominique Sanda (Ellida) e Philippe Leroy-Beaulieu (Hartwig), em geral bons comediantes, abundam em clichês claramente definidos pelo diretor. Não bastasse isso, para resolver mudanças no cenário, Bob Wilson utiliza black-outs a cada cinco minutos. Mais do que solução, o recurso vira cacoete. A partitura de luz e som, menos eficiente do que em trabalhos anteriores, não é suficiente para melhorar a sensação incômoda, inutilmente incômoda. O esforço do conjunto soa estetizante, maneirismo que Wilson sempre refutou categoricamente. O nó do problema certamente não está em "começar pela forma", algo que ele afirma fazer e que talvez seja uma das suas pedras de toque como encenador, mas no que se libera dela: a capacidade de mobilizar, ou não, a imaginação e a inteligência do espectador. Nesta como em outras encenações recentes de Bob Wilson, a forma diz pouco, muito pouco.

Bob Wilson, sabidamente, é voraz. Suas produções se sucedem num ritmo vertiginoso e por isso é preciso ficar atento aos caminhos, ou atalhos, que seu trabalho está tomando. Nem sempre é fácil distinguir as reorientações estéticas das concessões estéticas. O rigor artístico com que ele trabalha alimenta a hipótese de uma persistente coerência, ainda que em mutação. Um exemplo, simples, mas revelador, dá a dimensão deste rigor. Trata-se justamente de Hamlet, um monólogo, adaptação do texto de Shakespeare que ele dirigiu e interpretou. A peça é uma complexa partitura com arranjo cênico milimetricamente coreografado. Numa das apresentações em Bobigny, nos arredores de Paris, ele repetia certos gestos meticulosamente (tirar um paletó, virá-lo do avesso, tornar a vesti-lo etc.), quando um espectador tossiu na platéia. O ator-diretor interrompeu a peça e sugeriu que o espectador se retirasse da sala para tossir. Depois do episódio, algo constrangedor, Wilson repetiu a cena e prosseguiu, desta vez com a sala em absoluto silêncio, até o final da representação. Exagero ou não, esta atitude revela o cuidado (preciosismo, para alguns) do encenador/ator não apenas na elaboração, mas também na recepção da sua obra. Este é, sem dúvida, um sinal de alguém que, mesmo dissociando a arte de qualquer atitude política explícita, resiste ao divertimento inconsequente e ligeiro, sugerindo alguma insubmissão, residual, aos apelos do entretenimento de luxo.

No entanto, é em relação à potência de um certo formato teatral (ou à ausência dela, pela fadiga de material, pela circularidade que esvazia o sentido) que vale a pena fazer um esforço investigativo. Ao enviezar a narrativa, colocando contra a parede o modelo clássico da “mimese da ação”, Bob Wilson trouxe ao panorama teatral do século vinte um frescor inegável, mas ele parece ter realmente “perdido seu charme”, seus instrumentos teriam se “tornado mais previsíveis e tomados de um savoir-faire artesanal algo maneirista” (LEHMANN, 2002, p. 121). Mesmo Lehmann, fá de um certo teatro despolitizado e pretencioso na sua vacuidade, constatou o declínio do projeto wilsoniano. É possível que estejamos presenciando o esgotamento de um modelo analítico da realidade que teve seu equivalente na prática (e na reflexão) teatral. É possível que esteja se enfraquecendo, e perdendo a força criativa, um conjunto de idéias que pretendia interrogar com pertinência o mundo atual, mas cujos objetivos se chocam contra uma nova onda que recoloca no centro do debate temas como o sujeito, a história, a emancipação e, portanto, a política. Este movimento não significa, automaticamente, um retorno às velhas formas do fazer teatral, mas provoca um rearranjo de algumas variáveis que ficaram pelo caminho e agora parecem voltar a fazer sentido.

Se “o pós-modernismo não é, por certo, apenas uma espécie de equívoco teórico”, mas, como afirma Terry Eagleton, “entre outras coisas, a ideologia de uma época histórica específica do Ocidente” (EAGLETON, 1998, p. 116), se isto realmente é verdade – e parece ser – então as tensões da época em que vivemos produzem contradiscursos que, por sua vez, traduzem-se em contrapráticas artísticas. Decorre daí que somente ao compreender este panorama social mais geral será possível identificar mutações importantes na produção e na recepção da arte contemporânea. Pensando nos ares neoliberais e ultraconservadores das últimas décadas, do “fim da história” (Francis Fukuyama) ao “mundo plano” (Milton Friedman), passando pela escola Baudrillard (revisionismo cult), o ambiente atual parece menos sombrio, e o teatro talvez reflita - com o costumeiro atraso - esta tendência a evitar o palavrório e as ações vazias, substituindo-os por novas reflexões e novas práticas.


Bibliografia:

COELHO, T. Itaú contemporâneo [brochura de exposição]. São Paulo: Itaú Cultural, 2007.

EAGLETON, T. Ilusões do pós-modernismo. Trad. Elisabeth Barbosa. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.

LEHMANN, H-.T. Le théâtre postdramatique. Trad. de Philippe-Henri Ledru. Paris: L'Arche, 2002.

Fernando Kinas
(text
o original de junho de 2007)
Moraes, Dulcina de (1908 - 1996)

Biografia
Dulcina de Moraes (Valença RJ 1908 - Brasília DF 1996). Atriz. Intérprete de marcado estilo próprio, sobretudo no gesto e no rosto, e de temperamento mais propício à comédia, Dulcina atravessa cinco décadas de montagens sucessivas, três delas à frente de sua companhia, tornando-se um "monstro sagrado" do teatro brasileiro. Na década de 50 cria a Fundação Nacional de Teatro, uma das primeiras escolas de formação em teatro no país.

Filha dos atores Conchita e Átila de Moraes, Dulcina toma parte em representações da companhia mambembe dos pais ainda bebê. A carreira de atriz começa na década de 20, quando assina seu primeiro contrato, com a Companhia Brasileira de Comédia, de Viriato Corrêa. Aos 17 anos, entra para a empresa teatral de Leopoldo Fróes, a mais importante do início do século. Já no começo de carreira, seu desempenho chama a atenção do público e da imprensa, que o define como uma vocação inata. Ao mesmo tempo em que é elogiada pela sinceridade, pela naturalidade e pelo temperamento vivaz, recebe restrições a seus excessos, sua falta de domínio do rosto e dos gestos, incapazes de comedimento.

Em 1934, funda com o marido, o ator Odilon Azevedo, a companhia Dulcina-Odilon. No mesmo ano, protagoniza Amor, de Oduvaldo Vianna. O autor se encarrega da orientação artística da montagem e promove uma lapidação na interpretação da atriz que a faz, segundo o crítico Mário Nunes, transformar seu nervosismo em expressividade e, dessa forma, atingir "a posição mais alta que no nosso meio uma atriz pode alcançar".1

O sucesso da atriz atinge as camadas mais altas da sociedade e Dulcina faz moda: os vestidos que usa em cena servem como modelo para o público feminino. Ganha medalha do mérito da Associação Brasileira de Críticos Teatrais (ABCT), como melhor atriz do ano de 1939 pelo conjunto de trabalhos.

Em 1945, a montagem de Chuva, de John Colton e Clemence Randolph, tem apoio e subvenção do ministro Capanema para uma temporada oficial no Theatro Municipal. O espetáculo se torna um marco em sua carreira, na medida em que se mostra engajado na modernização teatral - principalmente pela ideia de conjunto em que se baseia. A crítica considera o papel de Sadie Thompson um dos melhores da carreira da atriz. Um dos aspectos que mais impressiona o público é a chuva, que durante os três atos cai sem parar no palco. 

Em viagem ao exterior, Dulcina merece destaque na imprensa espanhola e Chuva se torna o carro-chefe da companhia, fazendo parte de seu repertório durante 15 anos. Na remontagem de 1953, a revista Anhembi publica que "Chuva está para os nossos velhos grupos profissionais como Vestido de Noiva está para os novos",2 em função da técnica e do equilíbrio que caracterizava a montagem. Em 1949, ganha novamente o Prêmio ABCT, mas agora como melhor direção por Mulheres, de Claire Boothe.

Em 1952, Dulcina já é a "primeira atriz do teatro brasileiro".3 Volta a ser criticada pela interpretação desmedida em A Doce Inimiga, de André-Paul Antoine, 1953, ano em que ganha o Prêmio Municipal de Teatro de melhor direção por O Imperador Galante, de Raimundo Magalhães Junior.

No final dos anos 50, convencida da necessidade de revestir a profissão de ator de uma preparação técnica, a atriz investe o dinheiro poupado ao longo da carreira na criação da Fundação Brasileira de Teatro (FBT), que realiza cursos e espetáculos. Em 1972, transfere-se com sua fundação para a capital federal.

Dulcina só retorna ao palco carioca em 1981, a convite de Bibi Ferreira, que a dirige em O Melhor dos Pecados, de Sérgio Viotti, escrito especialmente para a atriz. O espetáculo se inicia com uma citação de Chuva: ao se apagarem as luzes, ouve-se a gargalhada da atriz na coxia - o que faz o público, na estréia, ovacionar vivamente, em sinal de reconhecimento. Ganha o Prêmio Molière Especial. 

O crítico Yan Michalski, identificando que toda a razão de ser do espetáculo estava no retorno e na homenagem a Dulcina, a define como "monstro sagrado", termo que identificava os grandes atores, capazes de unir carisma e técnica numa interpretação pessoal. No texto, o crítico define o estilo da atriz: "O instrumental de que Dulcina dispõe, particularmente no gênero da comédia ligeira e sofisticada, sempre foi admirável: ela domina o desenho do gesto com precisão milimétrica, desloca-se pelo palco com uma elegância toda pessoal, dispõe de uma gama bem definida de recursos faciais, elaborou uma musicalidade de inflexões inconfundível, e sobretudo controla à perfeição esse trunfo misterioso - mas eminentemente técnico - chamado 'tempo da comédia'." 4

Notas1. NUNES, Mário. 40 anos de teatro. Rio de Janeiro: Serviço Nacional de Teatro, 1956. v. 4. p. 94.
2. REVISTA Anhembi, abr. 1953. Citado por RABETTI, Beti. Trabalho realizado para o catálogo de inauguração do Teatro Dulcina, Rio de Janeiro, 1984.
3. ABREU, Brício. Citado por RABETTI. Op. cit. p. 10-11.
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Fonte: Enciclopédia Itaú Cultural/Teatro


terça-feira, 27 de agosto de 2013

Teatro/CRÍTICA

"Sexo, drogas & rock'n'roll"

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Divertida e crítica reflexão sobre a realidade

Lionel Fischer


Em um de seus textos mais conhecidos, "Seis personagens à procura de um autor", Luigi Pirandello (1867-1936) parte de uma situação inusitada: em meio ao ensaio de uma peça, surgem seis personagens que, rejeitados pelo dramaturgo que os criou, solicitam ao diretor que encene suas vidas. Estão à procura de um autor.

Aqui, obviamente que o contexto é outro. Mas também estamos diante de seis personagens: um mendigo que intimida a plateia solicitando ajuda, um roqueiro praticamente destituído de neurônios, um jovem completamente desregrado, um empresário calhorda, um consumista de espantosa arrogância e, finalmente, um artista impregnado de curioso cinismo. São seis histórias aparentemente independentes, das mesma forma que os personagens sugerem nada possuir em comum. 

No entanto, saí do teatro com a sensação de que, ao menos em alguma instância, as histórias não seriam assim tão independentes e que os personagens teriam algo em comum. Mas o que seria? Estariam todos eles à procura de algo, ainda que não tenham consciência disto? Ou tudo se limitaria à exposição de personalidades que o autor considera típicas do mundo em que vivemos, que prioriza o sucesso a qualquer preço e que, portanto, conduz inevitavelmente ao egoísmo e à solidão?

Admito que não cheguei a uma conclusão definitiva sobre as questões acima levantadas, mas isso não chegou a me incomodar. O primordial, para mim, foi ter deixado o teatro com a sensação de ter assistido a algo bastante perturbador. E, como todos sabemos, uma das funções primordiais do teatro é justamente a de gerar dúvidas e inquietações.

De autoria do norte-americano Eric Bogossian, "Sexo, drogas e rock'n roll" está cumprindo ótima temporada no Teatro do Leblon (Sala Marília Pêra). Victor Garcia Peralta assina a direção do espetáculo, que tem como único intérprete Bruno Mazzeo.

Embora o texto contenha, em sua maioria, passagens muito engraçadas, para minha total surpresa ri muito pouco - e devo confessar que rio com muita freqüência. Assim sendo, por que permaneci muito mais tenso do que relaxado? Não sei ao certo, mas suponho que o ácido humor do autor me remeteu bem mais ao trágico do que ao cômico, como se pouco a pouco me visse contaminado por uma droga que não desejava tomar. Como se o autor me obrigasse a "ingerir" uma realidade que gostaria que não existisse, mas que é absolutamente real. Enfim...

Bem escrito, contendo ótimos personagens e reflexões mais do que pertinentes sobre o mundo em que vivemos, o texto recebeu exemplar versão cênica de Victor Garcia Peralta. Valendo-se de uma dinâmica cênica despojada, mas nem por isso isenta de sofisticação, o diretor investiu basicamente no que interessa: a capacidade de Bruno Mazzeo de dar vida aos seis personagens e estabelecer fortíssima comunicação com a plateia.

Mais conhecido do grande público por seus trabalhos na TV, em sua maioria voltados para o humor, aqui o ator não deixa de estar engraçadíssimo, mas cumpre registrar que seu registro humorístico contém evidente teor crítico. Ou seja: Bruno Mazzeo não "faz graça", não explora o riso inconsequente, mas aquele que advém do desconforto, da forma como expõe determinadas mazelas que preferimos negar. E por isso sua atuação é tão impactante e se insere entre as mais brilhantes da atual temporada. 

Na equipe técnica, considero irrepreensíveis as contribuições de todos os profissionais envolvidos nesta mais do que oportuna empreitada teatral - Maria Clara Mattos (tradução), Plínio Profeta (trilha sonora), Dina Levy (cenografia), Dani Sanchez (iluminação) e Rico e Renato Vilarouca, responsáveis pelos maravilhosos vídeos.

SEXO, DROGAS & ROCK'IN ROLL - Texto de Eric Bogosian. Direção de Victor Garcia Peralta. Com Bruno Mazzeo. Teatro do Leblon. Sexta e sábado, 23h.  

















sexta-feira, 23 de agosto de 2013

SOBRE O SENTIDO DAS PRÁTICAS DO TEATRO NO MEIO ESCOLAR 
SANTOS, Vera Lúcia Bertoni dos – DAD / UFRGS – verabertoni@terra.com.br 
GE: Educação e Arte / n.01 

Neste trabalho sintetizo algumas idéias discutidas na minha tese de doutorado, em que procurei problematizar o “fazer teatral” no âmbito escolar, frente a alguns aspectos que a condição contemporânea significa à evolução do teatro como fenômeno artístico, ou seja, considerando o teatro como experiência estética e de produção de sentido através do domínio de formas de expressão e comunicação vinculadas ao desenvolvimento da inteligência, à autonomia de pensamento e à ampliação de visões de mundo. 

O ponto de partida da minha discussão é a concepção de “experiência criativa” em teatro, que, no sistema de jogos teatrais de Viola Spolin (1963), relaciona-se à prática do teatro pela via da improvisação e da espontaneidade. Nesse sentido, apresento princípios reunidos por Spolin sob o título de “os sete aspectos da espontaneidade”, buscando enfocar os elementos constitutivos da experiência teatral. Em seguimento à discussão apresento 
uma reflexão sobre o espetáculo de teatro contemporâneo, que se faz através da leitura particular de um objeto específico da nossa cultura teatral. 

E, por fim, faço um breve apanhado das principais formas de abordagem, ou “práticas”, do teatro no meio escolar, das 
condições de emergência dessas diferentes formas, e das concepções epistemológicas que as sustentam, na busca de evidenciar a importância do fortalecimento dos vínculos entre o 
fazer teatral dentro e fora do ambiente escolar. O teatro como experiência lúdica de aprendizagem 

Ingrid Koudela, responsável pela tradução da obra de Spolin no Brasil e empreendedora de diversos estudos acerca do sistema dos jogos teatrais, aproxima a metodologia de Spolin à perspectiva interacionista de Jean Piaget, relacionando a atividade lúdica e as condutas de imitação, em geral, e a prática do teatro, em particular, ao desenvolvimento do sujeito na sua totalidade, dessa forma enfatiza o caráter formativo e estético da aprendizagem do teatro nos mais diferentes níveis de conhecimento e abarcando diversos âmbitos do seu ensino. 2

Ao referir-se à “experiência criativa” relacionada à prática da improvisação teatral, Spolin identifica “sete aspectos da espontaneidade” (SPOLIN, 1963, p. 4-15), que se constituem, segundo a sua teoria, numa relação de complementaridade e interdependência. O primeiro desses aspectos é a estrutura do “jogo”, que permeia o seu trabalho como um todo, insurgindo-se como condição e viabilidade técnica dos exercícios de 
atuação que, por sua vez, se constituem na autodisciplina e no envolvimento individual do “aluno-ator” e do grupo, no qual se inclui o “professor-diretor”. 

O segundo aspecto é a intenção de superação da díade “aprovação / desaprovação” (polarização tão enfatizada nos sistemas tradicionais positivistas e autoritários de ensino, como fator de julgamento dos esforços do indivíduo ou de comparação entre condutas), em 
direção à construção de um sistema de avaliação em que pese, tanto a responsabilidade do professor-diretor, na busca de sustentação de uma postura que promova a tomada de consciência dos alunos-atores sobre o seu fazer, quanto a experiência e a mobilidade do 
pensamento de todos os envolvidos no processo de criação teatral. 

A formação do espírito de “grupo”, que se constrói na interação entre os indivíduos que participam da experiência teatral, constitui um terceiro aspecto dos jogos teatrais na perspectiva de Spolin (1963, p.8). Ele desenvolve-se na medida da transformação das 
condutas predominantemente competitivas inerentes às formas mais precoces dessa interação, em condutas predominantemente cooperativas, próprias às formas mais evoluídas que os jogos teatrais tendem a assumir com o tempo, com a prática e na medida em que os jogadores tornam-se capazes de transformar a sua relação com as regras, inicialmente mais arbitrárias, mais sagradas (inquestionáveis) e mais exteriores e, progressivamente, mais consensuais, mais internalizadas e mais consentidas. 

O quarto caráter dos jogos é a “platéia”, segundo Spolin (1963, p. 13), “membro mais reverenciado do teatro”, compreendido como instituidor do sentido do “fenômeno teatral”. Parte fundante do processo de experimentação das soluções aos problemas de 
atuação que originam as cenas, a platéia impulsiona a pesquisa de propósitos cênicos e as escolhas estéticas, avaliando as suas medidas e cooperando com o processo de improvisação como um todo. 

Um quinto aspecto designa o conjunto, não rígido e tampouco mecânico, mas deliberadamente adotado, de “técnicas teatrais”, justapostas ou sobrepostas, de acordo com o seu nível de dificuldade e que variam conforme a capacidade do grupo e as necessidades evidenciadas na prática; segundo Spolin (1963, p. 20), tratam-se de “problemas para solucionar problemas”; 

O movimento de “transposição do processo de aprendizagem para a vida diária” (SPOLIN, 1963, p. 13) constitui o sexto aspecto apontado pela autora, que caracteriza o processo de criação no teatro por um constante vaivém entre o real, do qual o sujeito que 
joga retira (e, nesse retirar, já transforma) a matéria para a sua ação no palco, e o ficcional, que expressa novos estados dessa matéria (surgidos da manipulação desse sujeito sobre o real), que são “devolvidos”, tornando-se objeto de apreensão (abstração; transformação) de outros sujeitos, os espectadores. 

Por fim, o aspecto da “fisicalização” abrange a expressão física do ator, ou seja, a forma corpórea assumida para mostrar (em oposição a contar) a realidade teatral. Para Spolin (1963, p. 14): 

Um ator pode dissecar, analisar, intelectualizar ou desenvolver uma valiosa história de caso para seu papel, mas se for incapaz de assimilar e comunicá-la fisicamente, terá sido tudo inútil dentro da forma teatral. Isto nem liberta seus pés nem traz o fogo da inspiração aos olhos da platéia. O teatro não é uma clínica, nem deveria ser um lugar para se juntar estatísticas. O artista deve captar e expressar um mundo que é físico mas que transcende os objetos – mais do que a informação e observação acurada, mais do que o objeto físico em si, mais do que seus olhos podem ver. 

Essa bela passagem em que Spolin traduz a relação que o teatro, como processo de significação e de encontro, instaura, bem caberia para ilustrar a relação pedagógica, tão desencontrada e empobrecida de sentido, quando movida pela escusa demonstração e 
verificação de conteúdos isolados da vida do sujeito, e tão acolhedora e significativa, quando motivada pela necessidade da experiência, que cria novas formas para a estruturação dos conteúdos e os reinventa, cheios de significado. 

Assim, considero de suma importância que os processos educacionais compreendam o sentido lúdico do teatro, o que exige a compreensão da arte como fenômeno da cultura, como objeto estético com características próprias e como forma de abordagem relacionada à construção do conhecimento. 

Apoiada nesses princípios e buscando compartilhar algumas idéias sobre a dimensão educativa do teatro, encaminho a minha discussão refletindo sobre o caráter lúdico da experiência teatral, enfocando um modo particular de “leitura” (Ryngaert, 1993) 
do fenômeno teatral calcado na apreciação estética.
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HEINRICH VON KLEIST (1777 – 1811)

Heino Willy Kude
(membro da Academia Rio-Grandense de Letras – cadeira nº 17)
       No dia 21 de novembro de 1811 morreu nas proximidades de Berlim, junto ao lago Wannsee o dramaturgo Heinrich von Kleist (suicídio) aos 34 anos de idade. Depois de Goethe e Schiller, é ele considerado o terceiro maior dramaturgo da literatura alemã, apesar de não se dever esquecer Gotthold Ephraim Lessing, Gerhard Hauptmann e Berthold Brecht como grandes autores deste gênero literário. Claro é que sempre poderíamos discutir precedências ou não, mas não erramos, ao dizer que foi um dos grandes autores dramáticos da literatura alemã e universal.

Pelo que me lembro, aqui em Porto Alegre, apenas apresentaram uma peça dele, seja a comédia A Bilha QuebradaNão quero aqui deixar de lembrar o segundo centenário de sua morte. Estudei minuciosamente a vida deste gênio das letras que em seu tempo nunca fora reconhecido, passando por desconhecido. Bernd Heinrich Wilhelm von Kleist nasceu a 10 ou 18 de outubro de 1777.
       

Mesmo sendo membro de uma tradicional família aristocrática pomerana, como acontece em muitos casos no leste da Alemanha, o nome Kleist não é germânico, mas de origem eslava e significa lança. Alguns contemporâneos o consideraram ser o Shakespeare alemão e por mera coincidência speare igualmente significa lança. A exemplo do acontecido no caso do grande dramaturgo inglês aqui na obra aparecem os sentimentos antagônicos amor e ódio em manifestação extrema.

Um crítico alemão até aponta para a loucura. Mas eu gostaria apontar para algo que creio não foi muito bem observado na obra de von Kleist: Antes de se desenrolar a ação sempre surge uma proposta razoável do louco. Mas é exatamente o outro lado – por todos considerado como sendo o bom moço, por desconhecimento de detalhes – que se sentindo mais forte pura e simplesmente não quer negociar. Isso aparece especialmente na novela Michael Kohlhaas. 

Este homem era negociante de cavalos de fina estirpe. Certo dia, alguns destes cavalos foram mantidos presos por um duque, por falta de pagamento de um pedágio recém-criado. O dinheiro foi arrumado, mas quando ocorreu o pagamento constatou que os eqüinos morreram devido a maus tratos. Um protesto não resultou em nada. Um processo resultou em derrota no tribunal. Foi só depois destas tentativas legalmente corretas, é que o herói da história resolveu recorrer à justiça pelas próprias mãos. O que é que pretendia Kleist com este texto?

Algo que tem mais importância que se pensa: Nunca podem falhar as instituições civilizadas para garantir uma vida em comunidade, respeitando os direitos de todos. Depois dessa decepção, Michael Kohlhaas foi dominado pelo ódio. Mas, no fim foi ele derrotado. Por que então não considerar a novela como sendo também uma advertência contra a atitude terrorista do negociante de cavalos? O que aqui se encontra de loucura, precisaria ser mais bem explicado. É lógico que Kleist não poderia apresentar o revoltoso como sendo um anjo vindo do céu, mas ser obrigado, como escritor que era, a entrar na mentalidade dele, sem elogiá-lo, o que não fez.  
       

A família von Kleist viveu na Prússia que é um país que, por ter sido considerado guerreiro e militarista, sem ser conhecido a fundo, foi declarado extinto em 1945 pelos vencedores da segunda guerra mundial, para o mundo então ser capaz de decretar a eterna paz mundial (que é essa que vivemos desde 1945). Os Kleist em seu círculo íntimo, sempre diziam cada Kleist é um poeta. Podemos destacar que houve um Kleist que foi inventor concomitante da garrafa de Leyden, um condensador elétrico. Como autores literários, só podemos destacar Heinrich von Kleist e Ewald von Kleist (1715 a 1759). Este último era poeta lírico e morreu em combate na guerra dos sete anos. Os outros efetivamente eram militares – podendo naturalmente terem escritos poemas como forma de lazer.
       

Bernd Heinrich Wilhelm von Kleist nasceu em Frankfurt sobre o rio Oder a 10 ou 18 de novembro de 1777. Era filho de um major prussiano e foi logo destinado à carreira militar. Além de ter sofrido com os efeitos de uma educação por demais severa – ligados à sua própria natureza de pessoa com idéias próprias - ele deve ter tido uma decepção com o fato de o estado não pagar pensão à mãe, por ocasião da morte do pai em 1788. Como cadete e aspirante serviu na guerra contra os revolucionários franceses que conseguiram invadir parte do território alemão. O exército prussiano lutou muito para reconquistar a cidade de Mainz. 

No decorrer da campanha militar deve ter acontecido algo que se acha envolto em mistério, mas seja nos permitido em matéria de história, não nos cingir apenas ao comprovado, mas atuar de detetive: Kleist deve ter pagado o preço que acompanha todas as guerras. Um encontro com uma mulher portadora de uma doença sexualmente transmissível. Posso afirmar tal, pois há evidências, neste sentido, resultados de uma pesquisa minha ao redor de uma misteriosa viagem a Würzburg de agosto a outubro de 1800. Ele, sendo então noivo de Wilhelmine von Zenge, filha de um general, retardou o casamento, pedindo à noiva que confiasse nele, querendo resolver um problema. E justamente, numa de suas peças aparece esta situação dramática, servindo de exemplo à noiva: Catarinade Heilbronn, em que a jovem Catarina tinha uma confiança cega no seu bem-amado, seguindo-o em todos os lugares.
       

Para eliminar o mal que o afligia, Kleist estava tentando consultar primeiro em Viena, onde, de fato, existia um grande cirurgião especialista que antes havia trabalhado em um hospital, onde se atendiam marinheiros. Mas este cirurgião pouco antes havia morrido. Kleist foi depois para Würzburg, onde também comprovadamente, consultou um grande médico e cirurgião, tendo sido operado.
       

Para ser promovido a segundo tenente ocorreu um tempo enorme, sejam cinco anos (1792 a 1797). Ele se destacou, conforme alguns testemunhos, como sendo um jovem culto que se interessou por literatura e ciências e teria sido um bom instrumentista da flauta e da clarineta. Teria sido capaz de cantar qualquer melodia, sem mesmo nem conhecer notas musicais. Um namoro frustrado teria sido o motivo de querer se afastar de seu regimento. Pessoalmente, penso que a dificuldade de ser promovido, deve ter sido o grande motivo. Normalmente, os biógrafos não aceitam essa que ele desejava ser general, mas nos seus dramas dele aparece a preocupação de demonstrar que tem largos conhecimentos de estratégia militar. Chamo atenção para algumas frases do drama mais famoso dele, o Príncipe de Homburg e da novela Michael Kohlhaas, onde aparece claramente essa preocupação com a estratégia militar. Mas apesar de seu sonho em alcançar o generalato, Kleist repentinamente pediu baixa.

Aqui aparece, pela primeira vez uma faceta negativa dele, a de recorrer com certa facilidade para a mentira: Quando perguntaram pela razão, ele alegou que não estava satisfeito com o que se fazia no exército em matéria de disciplina, que, onde ele queria elogiar, o comando exigia punição. Até li uma biografia, em que ele era apresentado como um superior humanitário que ajudava soldados que eram injustamente punidos de modo desumano. É possível que tal tenha ocorrido, em uma ou outra oportunidade. Aos superiores, ele justificou sua decisão por querer estudar na universidade, mas considero suspeito o tempo demasiadamente longo para alcançar a patente de segundo tenente e que coincide a baixa dele com a época em que seu irmão quatro anos mais moço, foi promovido a primeiro tenente.
       

Reportando-me à mentira, devo acrescentar que as pessoas que o conheciam, destacaram a pureza de seu caráter e de ser muito honesto. Creio até que a mentira deveria ser re-estudada pelos pesquisadores em matéria de psicologia, achando eu que se trata de um pânico repentino que toma conta da pessoa, não lhe deixando outra saída que recorrer à mentira, da qual até poderia se arrepender mais adiante. Estudando o caráter de Kleist, eu diria que seguidamente aparece a síndrome do pânico nele.

Kleist resolveu estudar na universidade de sua cidade natal Frankfurt no rio Oder para poder ingressar numa carreira da administração civil. Cabe dizer que esta universidade foi fechada em 1811 e transferida para a cidade de Breslau, capital da Silésia. Como esta cidade passou em 1945 para o domínio da Polônia, foi depois da segunda guerra reaberta em Frankfurt. A família von Kleist não possuía rendas que permitissem ele viver como escritor. E ele ingressou numa função civil, mas aqui igualmente dentro de pouco tempo pediu licença. Tem-se a impressão de que não era benquisto pelas pessoas com as quais vivia, especialmente, os superiores hierárquicos. E aqui cabe destacar uma frase que ele escreveu em uma de suas cartas que revelam uma situação trágica, indicando algo de autista na sua personalidade: Eu não entendo as pessoas com as quais vivo, só compreendo as pessoas de meus dramas.
       

Em companhia de sua meia-irmã Ulrike visitou a França e a Suíça, em 1802. Ele escrevia poucas cartas à sua noiva que se queixava desta circunstância. Ocorreu logo depois a ruptura do noivado, quando ele perguntou numa carta, se ela estaria de acordo de viver com ele na Suíça uma vida simples e romântica como camponesa. A resposta algo reticente dela, ele considerou como sendo uma negativa. Ela lamentou a atitude dele, pois o admirava, embora o tenha considerado algo exótico. É que ele insistira sempre muito que todos deveriam ter conhecimentos mínimos culturais e saber falar bem a sua língua materna. Ela casou depois com o filósofo e professor Wilhelm Traugott Krug (1770 a 1842) que foi o sucessor do grande filósofo Immanuel Kant (1724 a 1804) na universidade de Königsberg (hoje Kaliningrado), em 1805.
       

Em verdade, havia apenas duas pessoas com quem se dava bem: A já citada meia-irmã mais velha que ele, Ulrike von Kleist que era confidente dele e li as cartas trocadas entre os irmãos que revelam uma simpatia mútua como só se pode esperar existir entre irmãos. Inclusive, quando Kleist foi feito prisioneiro francês e encarcerado, Ulrike fez de tudo para livrá-lo. A prisão tinha motivos que foram um tanto nebulosos, mas cremos poder dizer que Kleist tentou assassinar o imperador Napoleão I. Ele falava perfeitamente o francês o que aprendeu no ginásio francês de Berlim. Cabe lembrar que um terço da população da capital da Prússia era constituído de descendentes de huguenotes e de nobres refugiados da revolução francesa. Kleist mesmo, tomado de ira com as façanhas bélicas de Napoleão, perguntou certa feita: Será que não existe ninguém que se anima a matar este tirano? (Cabe destacar que antes ali por 1803 queria integrar o exército francês que iria invadir as ilhas britânicas. Creio que Kleist se decepcionou tanto em relação a Napoleão como Ludwig van Beethoven).

Graças à intervenção de sua meia-irmã que chamou atenção para as obras que Kleist já havia escrito e que seria um grande autor da literatura alemã, ele conseguiu ser libertado da prisão na França em Joux, onde ele conheceu o líder da revolta da população negra do Haiti, Toussaint l´Ouverture que depois ficou encarcerado em Chalons. A segunda pessoa que igualmente era uma confidente dele era prima por casamento: Marie von Kleist, nascida Gualtieri.
       

Quero aqui esclarecer que não estamos aqui desempenhando o papel de alguém que aponta para defeitos de grandes gênios da literatura – sei bem meu lugar - e de outras manifestações da arte, mas sempre insistimos em dizer que gênios também têm defeitos como todos nós. E um outro defeito de caráter nele apareceu no decorrer de sua vida: Ficou sendo uma pessoa amargurada com os insucessos que se acumularam e facilmente recorreu a ofensas.
       

A primeira obra foi um drama: A Família Ghonorez. Pois bem, a crítica que se apossou da obra foi radical. Apontaram acima de tudo para supostos plágios, citando algumas frases como sendo velhos conhecidos. Deve ter sido plágio por não conhecimento de algo que já fora escrito. Não levaram em conta a excepcional capacidade daquilo que se pode chamar de arquitetura de um drama, o que, no teatro é mais importante que num romance. Não creio que Kleist tenha se valido de idéias alheias, mesmo tendo mentido em diversas situações. Ele se orgulhava por demais de sua inteligência e criatividade para recorrer a um expediente desses. Ele mesmo disse de si mesmo, que é de espantar que numa só pessoa se tivessem encontrado criatividade para a ficção e vocação para amatemática. Uma pessoa que se orgulha assim, nunca recorre ao plágio que pode ter sido involuntário e decorrência do fato, de ele não ter lido muito obras alheias. Ele reescreveu este seu primeiro drama, chamando-o agora de Família Schroffenstein e sob este novo título foi apresentado no teatro, ainda em tempo de vida dele, no ano de 1804. Aqui a crítica achou que Kleist teria posto na boca de seus personagens frases que seriam dignas de um imperador, mas ridículas – por demais bombásticas - ao serem ditas por um pequeno proprietário rural.
       

Isso que acima foi dito quanto à sua criatividade, aparece em primeiro lugar numa carta em que ele fala que ao escrever, pouco a pouco aparecem mais e mais idéias. Basta começar a escrever! Mas com uma clareza estranha, tal criatividade explode, quando ele tentou traduzir uma comédia francesa para o alemão. Ele simplesmente não conseguiu se limitar à tradução e escreveu uma peça nova sobre o mesmo tema. Trata-se da peça Ampitryon de Molière cuja apresentação no palco, Kleist não chegou a ver. Mas as peças dele foram apresentadas, ao menos, em pequeno círculo, o que não acontecia a outros autores.
       

Kleist e Goethe não se deram bem. Pois Goethe se notabilizou mais ou menos em 1770 com seu romance Werther o qual mais adiante baniu de seu mundo dramático, por considerá-lo muito choroso. Assim também afastou de seu círculo de amizades autores de textos excessivamente lamentosos e sentimentais. Ele classificou Kleist como sendo desse time. Tal nem correspondia à verdade, pois em certa oportunidade, Kleist teria dito que uma peça teatral pode ser reduzido a uma simples fórmula matemática.
       

O pior aconteceu com uma tragédia intitulada Robert Guiskard. À parte, reescrevi esta tragédia, dentro do que me parecia ter sido o projeto de Kleist. Esta peça que Kleist considerou como sendo a obra máxima dele, foi por ele enviada a Goethe para fins de julgamento. Pelo fato de Goethe já o ter julgado de modo muito severo anteriormente, ele cometeu um erro fundamental: Ele disse que com o seu coração ajoelhado ele pediria apoio para esta sua obra. Relembro o que acima falei do Werther que ainda hoje é considerado uma obra prima da literatura universal.

Entre as obras de Goethe, depois do monumental Faust, é sem dúvida, a que merece ocupar a segunda posição. Como já dissemos não existe um escritor do mundo que tenha tanto abominado uma obra sua, como o fez Goethe, em relação ao Werther. Ele o confessa em suas memórias, talvez com menor ênfase que eu o digo aqui. Goethe deve ter visto em Kleist um autor de novos Werthers chorosos e ao ler o início do drama, o jogou no fogo de sua lareira. Ainda lhe disseram que seria um original, ao que o gênio de Weimar respondeu: Aquilo que não aprecioterá de ter este destino. Mas nesta oportunidade, em meu ver, aconteceu algo mais singelo: Goethe tinha aquilo que todos nós temos, o seu dia de mau humor. Com isso, Kleist se tornou inimigo de Goethe e lhe dedicou alguns epigramas. Um se referiu ao fato de Goethe tentar apagar em sua velhice uma luz que lançou ao mundo em sua juventude (o Werther). Até aqui podemos até dizer que se trata de uma crítica justificada. Porém um segundo epigrama Kleist nunca deveria ter escrito: Goethe vivia com uma mulher, de quem se dizia ter sido operária, mas que, descendente da família Vulpius, até poderia ser considerada de uma classe média mais elevada.

Pois bem, Goethe não pensou em casar, até que no dia em que os franceses ocuparam Weimar, ele ter sido ameaçado de morte e a sua esposa lhe ter salvo a vida, resolveu casá-la. O casal já tinha um filho August Goethe. Kleist escreveu quase que cinicamente que este filho seria um gênio prematuro, pois cantou o carme no casamento de seus próprios pais. O professor Herbert Caro, quando pronunciou uma palestra sobre Kleist, citou este epigrama como o máximo de insensatez e mediocridade. Concordo. Kleist, ainda em outra oportunidade escreveu algo muito ofensivo, desta feita dirigida ao maior diretor teatral alemão daqueles tempos, dramaturgo e grande ator, chamado August Wilhelm Iffland, a quem havia apresentado para fins de apresentação a sua peça Catarina de Heilbronn. Como Iffland a tivesse recusado, ele lhe escreveu que certamente não apreciava a peça pelo fato de se tratar de uma mulher, pois, caso se tratasse da vida de um homem, certamente, ele gostaria dessa peça.
       

Para falar da peça Catarina de Heilbronn. Kleist viu a apresentação dessa peça em vida e é uma das mais apresentadas ainda hoje, nos palcos dos teatros alemães. Mas apresentada em Viena, tendo uma crítica ter revelado que em Viena muitas peças, inclusive o Hamlet teriam sido modificadas por sugestões medíocres. O mesmo teria acontecido com a CatarinadeHeilbronnA peça trata de um amor quase místico entre uma jovem do povo e um cavalheiro nobre que acabam casando devido ao fato de ele se emocionar com a imensidão de amor que encontrou na alma desta jovem.
       

Uma das melhores comédias da dramaturgia alemã é a Bilha Quebrada com um enredo muito simples e que foi apresentada ainda em tempo de vida de seu autor. Uma bilha de água quebrada leva uma mulher ao tribunal, acusando o namorado da sua filha. Mas o verdadeiro culpado é o próprio juiz que queria ter uma noite agradável com uma jovem. E ao invadir o quarto dela, quebrou involuntariamente uma bilha. Justamente, no dia deste julgamento, um inspetor da justiça iria verificar, como naquela localidade era feita a justiça. Pouco a pouco, a trama aparece. O inspetor aceitou a sentença injusta do juiz, que condenou o jovem namorado, mas depois destituiu o juiz de suas funções e pagou a multa que libertou o jovem de ir para o degredo. A justificativa seria essa de nunca se dever desmoralizar a justiça como instituição. Este enredo simples, mereceu elogios da imprensa teatral da Alemanha Oriental – a DDR - que destacou que Kleist sempre se posicionava ao lado do povo.

Quando esta peça foi apresentada em Porto Alegre, até hoje não sei, quem levantou uma polêmica que se trataria de um autor militarista ou até nazista. Conhecendo eu a vida do dramaturgo, me envolvi em uma discussão acirrada nas páginas do Correio do Povo com alguém que nunca chegou a se identificar. Agradeço ainda hoje o apoio recebido de parte do atual Acadêmico – meu confrade na Academia Rio-Grandense de Letras – o jornalista Walter Galvani. Assim peça fora apresentada em Porto Alegre sem incidentes, tendo tido uma boa aceitação.
       

Um caso à parte é a peça teatral que o professor Herbert Caro considerou como sendo a obra prima de Kleist: O Príncipe de Homburg. Kleist dedicou a obra a uma princesa real prussiana, cunhada do rei. Ela, de nascimento era filha do duque de Hesse-Homburg. Mas a peça provocou uma revolta geral. Trinta anos depois, Heinrich Heine, em defesa de Kleist, disse que todos da casa Homburg se revoltaram, pelo simples fato de o príncipe de Homburg confessar em certo trecho da peça de ter sentido medo. Resultado: Esta grande peça só foi apresentada dez anos após a morte de seu autor.
       

Kleist, por outro lado, como já demonstrado na Bilha Quebrada deve ter conhecido a atuação de alguns juizes, quando estava trabalhando na administração do reino prussiano.
       

Uma das obras mais famosas dele era uma novela intitulada Michael Kohlhaas. Relembro o que já foi dito: Trata-se de um mercador de cavalos, cujos animais são aprisionados e seu empregado sendo mal-tratado por um duque que estabeleceu um imposto, tipo pedágio, pela passagem por suas terras. Aprendeu os cavalos e utilizou animais de fino trato, para trabalhos na lavoura e que naturalmente os levou a morrer. Kohlhaas processou o duque, mas o juiz simplesmente deu causa ganha ao duque, sem justificar e pedindo que não o incomodassem com tais questiúnculas.

Michael Kohlhaas disse que, se ele não consegue obter a proteção da justiça para exercer sua honesta profissão que ele teria de recorrer a outros meios. Ele vendeu tudo que tinha e armou um bando de malfeitores que assaltaram propriedades, agindo como terroristas. Mas, no fim, este homem honesto, não muito certo do papel desempenhado no mundo, falou com Martin Luther (Lutero) que o reprimiu, mas chegou a entender e recomendando se entregar. Foi o que Kohlhaas fez e pelos crimes cometidos, foi enforcado.

A história se baseia dentro de certos limites, em um fato verídico. Para nós pode até valer como resposta aos que perguntam quanto à razão de ser do terrorismo. E mesmo que o condenemos – como eu o faço - todos nós devemos também condenar veementemente abusos de juizes e dos quem mantém em suas mãos um tipo de poder inaceitável. Mas também entendendo que justiça rigorosamente isenta de influências e 100% igual para todos, é sonho e ilusão.
       

Goethe criticou tanto o Kohlhaas como a Catarina, dizendo que o autor deve ser hipocondríaco para desenvolver temas como esse. Especialmente, a universalização do problema do Kohlhaas encontrou uma rejeição incondicional dele.
       

Kleist fala de um encontro com o rei da Prússia, Frederico Guilherme III que era um compositor bem inspirado. Uma marcha que sempre é tocada nas recepções a autoridades estrangeiras na Alemanha de hoje, quando se apresentam à companhia de guardas, é da autoria do rei Frederico Guilherme III. Kleist disse depois, em uma carta que poderá ser o ajudante de ordens do rei, mas não sei explicar como lhe nasceu tal idéia, pois verifiquei nada existir a respeito.
       

Mais adiante, Kleist se envolveu com um intelectual de péssima fama, chamado Adam Müller que numa recepção lhe ofereceu uma coroa, chamando-o de gênio. No seu último ano de vida, Kleist fundou um jornal em Berlim, tendo justamente como sócio Adam Müller, sejam as Abendblätter(Folhas do Entardecer). Ali escreveu muitos contos de valor perene, mas a iniciativa foi fadada ao fracasso, pois a censura o tratou com rigor excessivo. Assim ele conseguiu editar apenas ao redor de vinte edições para ter de fechá-las. Adam Müller disse que Kleist teria ganho muito dinheiro com a edição do jornal, mas lamentou que queria reeducar os seus leitores o que certamente nunca daria certo.
       

Entre os contos ali editados, vamos citar o caso de A Marquesa de O... . Ali é relatada uma história da guerra que levou tropas russas para o norte da Itália, ali por 1795. Um bando de soldados russos havia invadido um palácio e estavam por estuprar uma marquesa, mas um oficial russo, um nobre, interveio. Mas, a marquesa engravidou e algum tempo depois, o seu salvador, o nobre russo apareceu, propondo casamento, confessando que, enquanto a marquesa estava desmaiada,ele se aproveitou da situação e a teria estuprado. É evidente que tal conto, naqueles tempos foi rejeitado energicamente pela sociedade. Não gosto de usar a palavra hipocrisia, pois sempre alerto que não se sabe o que pode acontecer com a sociedade, caso certas barreiras levantados no decorrer do tempo, fossem todas elas rompidas, mas estou igualmente combatendo os exageros de moralidade cometidos neste sentido, pois não somos nem santos, nem demônios. No conto é descrito algo criminoso ocorrido numa guerra, e para tal devemos ter compreensão, sem naturalmente poder aprovar nunca um estupro.
       

Kleist escreveu poucos poemas para uma época em que muitas pessoas cultas se encontraram em salões apresentando seus versos. E confesso, li todos os poemas, cerca de sessenta e nenhum deles causou o entusiasmo, como acontecia com relação aos poemas de autoria de Schiller, especialmente.  
       

Um outro conto me levou a pensar muito: Um Terremoto no Chile. Ali um homem estava numa prisão e queria se enforcar. Mas, ao iniciar o terremoto, ele se encostou firmemente no pilar no qual ele antes havia fixada a corda, pedindo agora que o pilar resistisse.
       

Embora, pouco antes, Kleist tenha dito que o que de mais fácil poderia existir, seria cometer o suicídio, pois bastaria prender um grande peso na sua perna e se atirar na água... esse conto me levou a pensar: Será que alguém que assim escreve, pode sequer pensar na possibilidade de cometer um suicídio?
       

Em alguns períodos de sua vida, especialmente em 1810-11, Kleist estava sofrendo de síndrome do pânico. Durante muitos dias, não saía mais de sua casa, fumando muito, sendo que as poucas pessoas que o visitaram, comentaram as nuvens de fumaça ali existindo. Mas quero apontar para outro ponto interessante: Falamos da doença sexualmente transmissível, por ocasião da guerra da qual participou como aspirante. É interessante notar que noivou certamente interessado em casar. Considerou-se curado, porém naqueles tempos para a sífilis não existia uma cura. Um homem consciente e responsável como Kleist assim resolveu não mais casar.

De outra é sabido que justamente esta doença pode agredir o cérebro, provocando em muitos casos psicopatias. Conheço o trágico caso de um colega da escola de engenharia que foi igualmente afetado pela sífilis, cometendo a partir daí deslizes que poderiam provocar hilaridade, se não fossem extremamente trágicos. Além do mais, na história das artes, não seria o primeiro caso: pelo que consta – talvez nem totalmente comprovado – os casos de Heinrich Heine, Franz Schubert, Robert Schumann e talvez Wolfgang Amadeus Mozart. À parte, foi Alexandre Pushkin quem inventou a tese de que Antonio Salieri teria envenenado Mozart. Nada se comprovou, sendo a história do filme Amadeus nada mais que pura fantasia, por outras afirmações.
       

Já dissemos que só duas pessoas o compreendiam: sua irmã Ulrike e a prima Marie von Kleist. Ele havia até elogiado os judeus, com os quais se dava bem. Talvez teria continuado o que Lessing iniciara: uma maior aproximação com os mesmos que por sua vez, igualmente se aproximaram dos alemães. As outras amizades mais se ligaram a trocas de idéias entre escritores e poetas.
       

Uma cena desagradável na família era a famosa gota que levou o já instável Heinrich von Kleist a uma decisão fatídica: Uma tia o acusou de ser um mentiroso patológico. Não havia, no ver dele, mais nenhuma saída para a vida dele. Ele conhecendo a senhora Henriette Vogel que sofria de um câncer incurável, combinou com ela, cometerem suicídio em conjunto. E é o que se deu junto ao lago Wannsee, nas proximidades de Berlim, no dia 21 de novembro de 1811, poucos dias depois de completar 34 anos de idade. Ele havia colocado o cano da pistola na boca e disparado, depois de matar a sua companheira de infortúnio.
       

Cartas de despedida foram enviadas à prima Marie e à irmã Ulrike. Esta última poderia ser chamada de testamenteira, pois todas as obras não publicadas e inúmeras cartas estavam em poder dela. Mas lamentavelmente, ela foi acometida por uma depressão patológica e neste estado, queimou tudo que poderia valer muito para a literatura alemã e mundial.
       

Quero aqui acrescer uma segunda possível explicação para o suicídio, depois do possível motivo maior citado anteriormente: o fato de ele ter dificuldades no trato com seus semelhantes o que lhe causou inúmeros, injustificados e grandes transtornos. Aliado a tal – o que lhe facilitou a decisão - aparecera nele uma idéia criticável referente à possibilidade da imortalidade da alma. Creio que a alma não morre, tendo dado uma explicação para tal fenômeno em Será que Freud Explica?Pensou ele que a alma sempre há de renascer em outro ser humano e, talvez – sempre nesses casos aparece uma esperança - em melhores condições e circunstâncias. Lamentavelmente a obra intitulada História da Minha Alma de Kleist poderia ser uma leitura interessante e esclarecedora, desapareceu, pois fora queimada por sua irmã Ulrike. Foi pensando inabalavelmente assim sobre a reencarnação integralmente, foi ele de modo alegre e de bem com as pessoas que orodearam, para a morte, como ele o disse em uma de suas cartas de despedida. Acredito que Kleist escreveu seus dramas como que psicografando idéias que lhe advieram, julgando terem nascido em certos personagens nos quais – segundo que pensava teriam vivido antes com a alma imortal dele.
       

Creio que inúmeros gênios da literatura devem ainda estar mergulhados no anonimato e tal teria acontecido com Kleist, se não fosse o poeta romântico alemão Johann Ludwig Tieck (1773 a 1853) que não poupou esforços no sentido de resgatar a obra de Kleist, sendo responsável pela estréia de alguns dos dramas de Kleist em palcos de teatro. Parece que, mesmo sendo contemporâneos, no mais os dois poetas pouco se conheciam.
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                                                                                                         J. R.  Araújo


Não  há qualquer exagero em dizer que a Arte Barroca é reacionária. Como movimento, o Barroco surgiu como uma contraposição à Reforma Protestante iniciada por Martinho Lutero.  O cânon promulgado no Concílio de Trento ( 1545-63 ) iniciou a Contra-Reforma e determinou que as pinturas e esculturas representativas nas igrejas apelassem para os sentimentos e mentes dos menos intelectuais, das pessoas simples, que estavam mais vulneráveis a uma exposição da retórica luterana e que as manifestações artísticas fossem empregadas primariamente como instrumento de propagação da fé cristã e da doutrina da Igreja Católica. Assim, os elementos estéticos desse movimento serviriam à popularização das artes como instrumento para a divulgação das doutrinas católicas, frente à expansão das idéias protestantes.  

Do ponto de vista prático, entretanto, o período barroco teve início em 1580 na Itália e logo desenvolveu-se na Espanha e Portugal (países predominantemente católicos), e desses países se propagou para todos os centros culturais da Europa e do Novo Mundo. Como movimento, perdurou até cerca de 1756, quando foi sucedido pelo Classicismo. O termo barroco significa detalhe, saliência ou imperfeição. Originou-se da frase portuguesa "perola barroca (irregular)", usado para indicar uma pérola de forma irregular, de textura áspera e cheia de imperfeições ou desprovida da esférica,  . Isto não quer dizer que a arte barroca pudesse admitir imperfeições, mas tão somente uma alusão à sua riqueza de detalhes. Sabe-se, todavia, que nesse período estilístico riquíssimo da História Ocidental, o termo barroco nem era utilizado ou conhecido por aqueles que fizeram o movimento. Tudo indica que essa denominação seja uma inserção posterior que, de início, tinha uma conotação pejorativa, devido ao abuso dos detalhes, ao excessivo apelo dramático/emocional, ao emprego de elementos estéticos rebuscados, contrários a racionalidade e sobriedade do Renascimento. 

Embora na origem, o barroco tenha surgido para elevar o fervor religioso,  logo atraiu a atenção da nobreza e da aristocracia, que viam no estilo possibilidades de auto-promoção e engrandecimento. Assim surgiram temas heróicos, míticos e mitológicos com forte apelo ao respeito pela hierarquia e cultivo das virtudes.


Foi um estilo vigoroso, com forte fundamento teórico e marcado por características que o diferenciava bastante do estilo Renascentista. Ao contrário deste, o Barroco primava pelo emocional sobre o racional, deixando o artista livre de qualquer regra ou padrão rígidos para obter uma completa liberdade em sua criação.
Como meio de expressão artística, os elementos estéticos/filosóficos do Barroco se fizeram presentes sobretudo na Pintura, Escultura e Arquitetura, mas também com notável intensidade na Música, Literatura e nas Artes Dramáticas.

  

O Barroco na Pintura


Essa reviravolta em direção a um conceito popular nas funções das artes sacras, ao contrário da abordagem acadêmica e elitista do Renascimento, está na origem do esforço dos pintores italianos, exatamente aqueles que estavam mais próximos ao centro de influência da Igreja, Roma. As inovações de Caravaggio (1571-1610) e dos irmãos Carracci são consideradas as primeiras manifestações dessa tendência nas artes visuais. Caravaggio utilizava um plano escuro, por vezes completamente negro, e iluminava os elementos principais do tema com um impressionante jogo de luz. Essa disposição conferia realismo e dramaticidade à sua pintura, trazendo os elementos retratados para o primeiro plano e levando o expectador, com toda a emoção possível, para dentro da cena. 

                          
                                                                                                                                                                                               
                                                 
 *Não confundir com Michelangelo di Ludovico Buonarroti Simoni (1475-1564) o famoso pintor, escultor, poeta e arquiteto renascentista italiano.
Entre a família Carracci de Bolonha, Itália, destacaram-se Agostino (1557-1602) e seu irmão Annibale (1560-1609), Antônio (1583-1618) e Francesco (1595-1622) sobrinhos de Annibale. Ludovico (1555-1619) era primo de Agostino e Annibale. Todos com importância reconhecida na pintura desse período.

                                                                                                        No barroco não havia o rigor geométrico elaborado dos renascentistas. O elemento cênico principal poderia muito bem nem estar no centro do quadro. Havia sim, uma preocupação sobre o emocional, habilmente permitido fluir, da cena para o expectador, nos contornos salientados pela dicotomia luz/escuridão, pela combinação de cores, pelo dinamismo e movimento, pelas faces e corpos retorcidos, pela textura da pele viva, tenra ou musculosa, pela dramaticidade ou pela suavidade, porém sempre a serviço da emoção que podia gerar. Esta foi a marca registrada na pintura barroca, vista em sua plena força, também, nos espanhóis Velázques (1599-1660) e Murillo (1618-1682), nos belgas Van Dyck (1599-1641) e Frans Hals (1583-1666), nos holandeses Rembrandt (1606-1669) e Vermeer (1632-1675) e no flamengo Rubens (1577-1640).

    
                     
 Nos países de predominância protestante, como Holanda, Alemanha e a Região flamenga (Flandres, atualmente na Bélgica), havia uma maior permissão ao livre pensar, e isso contribuiu para que a pintura se aventurasse por uma visão mais pertinente aos eventos seculares do cotidiano. Ainda assim, havia essa tendência religiosa bem próxima das origens do barroco, mas, nesse caso, o movimento floresceu como instrumento de inspiração cristã, não necessariamente ligado à doutrina católica.        
   
        
    

Barroco na Arquitetura  e Escultura



Nas disposições artísticas do Século XVII, a arquitetura e as esculturas estão  entrelaçadas de tal forma, que se faz necessário analizá-las conjuntamente. Ambas procuravam impressionar pela grandiosidade no interior das construções, evocando as mesma emoções de piedade e fervor religioso característico do estilo. As igrejas e capelas, com suas fachadas relativamente simples, guardavam em seus interiores toda a grandiosidade nos adornos, capitéis, nas colunas, nos altares e nichos laterais que finalmente conduziam ao altar principal, num crescente grandeur, como que preparando o visitante numa seqüência de surpresas, que o levasse à experiência emocional, à reverência e ao afloramento ou fortalecimento da fé.

Os  arquitetos empregavam  a  mesma  disposição  dualística  claro/escuro  nos  elementos  arquitetônicos, aos quais mesclavam esculturas  iconográficas  ou  meramente  decorativas pintadas  ou  não, combinadas  com  quadros da  pintura  representativa do período. Podemos destacar as esculturas figurativas ou iconográficas, onde força e dinamismo estão presentes nas formas humanas ou animais. As figuras humanas representam divindades, santos, membros da nobreza e aristocracia, heróis nacionais ou mitológicos, dispostos de maneira a inspirar emoções e valores elevados. As esculturas figurativas barrrocas eram concebidas para integrarem um conjunto harmônico e combinado com a arquitetura de tal maneira que não se poderia dizer se elas serviam  como decoração ao edifício ou este foi construído apenas para abrigá-las. As figuras eram dispostas em grupos ou solitárias, sempre com o objetivo de causar uma emoção de certa forma planejada. Quando em grupos, as figuras assumiam uma disposição circular ou espiralada, com bastante espaço vazio entre elas para serem admiradas a partir de ângulos diferentes e trazer o observador para o meio da cena. 
     

Com finalidade decorativa, os artistas barrocos utilizavam motivos florais ou geométricos, com predominância das curvas evalorização do entalhe na construção de altares e nichos, com luxo na decoração e aplicação a ouro. Várias técnicas eram usadas, dentre as quais uma, denominada Trompe l'oeil e ainda de uso corrente, emprega truques de perspectiva, cores, luz e sombra, para criar objetos ou formas que na verdade não existem, num interessante e desconcertante efeito de ilusão de ótica. A expressão Trompe l'oeil é proveniente da língua francesa e significa 'engana o olho'. Como um exemplo desse truque, temos a figura ao lado: o que realmente existe é a parede . . . tudo o mais é pintura !

A nobreza e a aristocracia logo viram na retórica dramática da arquitetura e arte barroca a oportunidade de igualmente impressionar visitantes, ao evocar a idéia triunfal de controle e poder. A simplicidade das fachadas disfarçavam o que estava disposto nas áreas internas, com pórticos monumentais, ante-salas e recepções impressionantes que levavam a outras ante-salas e finalmente à sala principal, onde escadarias majestosas impunham reverência e poder. 

O barroco preocupava-se em manter a hierarquia vigente na Igreja e no Estado, conferindo poder absoluto aos papas, aos reis e à aristocracia. Defendia, pois, a manutenção do absolutismo em ambas as esferas. Como expressão estilística secular, a arquitetura barroca  manifestou-se na forma de grandes palácios, inicialmente na França, a exemplo do Château de Maisons(1642) do arquiteto François Mansart (1598-1666), e logo se espalhou por toda Europa. No Brasil há de destacar o talento incomum de Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho (1730-1814), arquiteto, escultor, desenhista, construtor e entalhador maior do barroco brasileiro. Sua obra prima é o conjunto denominado Os doze Profetas esculpido em pedra-sabão, disposto no pátio do Santuário de Bom Jesus de Matosinhos em Congonhas, Minas Gerais.     
       


  
     
Música Barroca


Se considerarmos que o estilo barroco predominou de 1580 até 1756,  a denominação "Música Barroca" surgiu num período posterior, em torno de 1919 por sugestão do historiador da arte e musicólogo alemão Curt Sachs (1881-1959). Apesar de que tenham existido compositores de musicalidade tão diversa quanto os italianos Jacopo Peri (1561-1633) e Domenico Scarlatti (1685-1757) e o alemão J. S. Bach (1685-1750), há, entretando, que se atentar para as diferenças marcantes dá música desse período com os períodos anterior e posterior na história da música, quais sejam: Renascimento e Clássico respectivamente. Essas diferenças foram suficientes para a identificação da música desse período, que compartilhava valores estético-filosóficos e os mesmos propósitos doutrinários e ideológicos das outras artes do período. Assim fica muito claro definir a música dessa época como sendo barroca. Houve um notável desenvolvimento da teoria musical, da tonalidade diatônica e do contraponto imitativo. Foi uma época de ornamentação musical bem mais elaborada com muitas mudanças na notação musical. O forte apelo emocional, visando o fervor religioso, fêz-se sentir na música barroca em perfeita consonância ao espírito da época. Grandes compositores enriqueceram a música desse período com dedicação e talento, entre os quais se destacaram os italianos Alessandro Scarlatti (1660-1725), o compositor e violinista Arcangelo Corelli (1653-1713) cujo estilo seria adotado como a técnica de tocar o violino predominante nos 200 anos seguintes, Nicola Porpora (1689-1767) que seria o mestre de Joseph Haydn (1732-1809), grande compositor do Período Clássico; o inglês Henry Purcell (1659-1695), o alemão Gottfried Heinrich Stölzel (1690-1749) e o francês Jean-Baptiste Lully (1632-1687). 

Muitos são os músicos, compositores e renomados mestres dessa música estilística que sucedeu ao Renascentismo. Vivaldi, Handel e Bach, entretanto, são os maiores e mais completos representantes da música barroca.

Antonio Lucio Vivaldi (1687-1741) era um sacerdote católico, nascido em Veneza e exímio violinista. Foi um compositor bastante prolífico, com uma obra impressionante, tanto em densidade e importância musical, quanto em quantidade com a incrível cifra de mais de 500 concertos, 210 dos quais dedicados ao solo para violino e violoncelo, 46 óperas, 73 sonatas, 23 sinfonias e inúmeras músicas de câmara e peças sacras. Difundiu o concerto grosso, onde mais de um solista alterna com o restante da orquestra e nesse estilo, sua peça mais conhecida é As Quatro Estações (1723). Apesar da rígida formação acadêmica, Vivaldi demonstrava grande alegria em compor, com igual paixão,  música sacra e profana. Era capaz de compor música bem ao gosto popular, o que o tornaria bastante famoso no seu tempo, dentro e fora da Itália. Bach recebeu forte influência do mestre italiano, e com freqüência transcrevia as peças deste, para violino e violoncelo, adaptando-as para  teclas solo e orquestra. Como exemplo disso temos o Estro armonico (1712), que é um conjunto de doze concertos grosso, seis dos quais transcritos por Bach para cravo e órgão.

Compôs notadamente música sacra, com destaque para o oratório Juditha Triumphans, três Gloria catalogados sob os números RV 588, RV 589 e RV 590 (esse jamais encontrado) e ainda as obras Stabat MaterNisi DominusBeatus Vir, a belíssima Magnificat e Dixit Dominus entre outras.

     


                 
George Frideric Haendel (1685-1759) era filho de um cirurgião-barbeiro que não o queria vê-lo tornar-se músico, o que não conseguiu inibir o telento natural do menino. Em 1703 transferiu-se para Hamburgo, então o centro teatral e musical da Alemanha, onde estudaria música com o renomado mestre organista F.W.Zachau, da catedral de Nossa Senhora, em Halle. Aos onze anos já era um mestre no órgão, violino, cravo e outros instrumentos e começara a compor, dominando com desenvoltura a arte da polifonia e do contraponto. Aos 20 anos de idade, sua primeira ópera, Almira, foi apresentada com grande sucesso. Em 1706, viajou à Itália, numa jornada que durou  três anos. Entrou em contato com a música  e os mestres italianos, recebendo forte influência de Alessandro Scarlatti. As suas obras foram apresentadas em Florença, Roma, Nápoles e Venezasempre com enorme repercussão, obtendo reconhecimento e prestígio. Ao retornar da Itàlia em 1710, Haendel se estabelece em Hannover como diretor da orquestra da corte. No ano seguinte viaja à Londres, onde apresenta sua ópera Rinaldo. Diante do sucesso obtido, é convidado a permanecer na Inglaterra, com a missão de criar um teatro real de ópera que ficou conhecido como a  Royal Academy of Music. Entre 1720 e 1728, Haendel escreveu 14 óperas para essa academia, o lhe valeu grande popularidade em toda a Europa. 

Dedicou-se com igual paixão à composição de óperas e oratórios, estes, entretanto, ocupam lugar central em sua obra. Compôs 32 oratórios, magníficas peças corais, os quais eram apresentados em ocasiões solenes por coros grandiosos de várias dezenas de cantores. Entre seus principais oratórios destacam-se Esther (1718), Athalia (1733), Saul (1739), Israel no Egito (1739), Messias (1742), Sansão (1743), Judas Maccabaeus (1747), Solomão (1748) e Jephtha(1752)
Suas óperas (compôs cerca de 40), apesar de contarem com produções esmeradas nos palcos dos teatros, especialmente na Royal Academy of Musicnão tinham a mesma força dramática de seus oratórios. Podemos destacar as óperas Agripina (1709), Rodelinda (1725), Ottone e Teofano (1723), Tamerlano(1724), Orlando (1732), Ézio (1733). Júlio César (1724) é considerada sua obra-prima no gênero. 

Embora tenha se dedicado à composição de obras vocais, a produção instrumental de Haendel é considerável: 110 cantatas, 20 concertos, 39 sonatas, fugas, suítes, obras sacras para missas e obras orquestrais. Haendel teve na fé luterana uma motivação profunda para sua música religiosa e, assim como Bach, deu maiores dimensões à polifonia vocal, com base na polifonia instrumental da música para órgão, pois eram ambos grandes virtuoses desse instrumento.
                                        



Johann Sebastian Bach (1685-1750) foi criado em meio religioso da Igreja Luterana. Sua música refletia sua devoção e fervor religioso, com destaque àquelas especialmente compostas para as missas dominicais, as cantatas. Compôs as famosas paixões, grandes obras para corais que eram executadas nas cerimônias da semana santa. A 
Paixão segundo São João (1724) e a Paixão segundo São Mateus (1729) estão entre suas maiores composições. Bach escreveu em 1731 a Paixão segundo São Marcos uma peça que embora tenha sua existência histórica bem estabelecida, permanece como uma obra perdida. Apesar de ser um compositor protestante, compôs a grandiosa  Missa em si menor (1733-1738), imbuído de raro espírito ecumênico. Outras obras célebres do mestre alemão são as Variações Goldberg, uma série de trinta variações para cravo publicadas a partir de 1741 sob o título Clavierübung (Prática para Teclado), que se constitui na obra mais séria, complexa e grandiosa composta para cravo. Sua Arte da Fuga, talvez seja sua obra mais representativa do barroco. Contêm dezenove fugas, variações sobre um tema, repletas de contraponto, que é uma característica dominante na música barroca. Bach compôs uma série de trinta Invenções: quinze a  "duas vozes"  e outras quinze a  "três vozes". Essas últimas, formam o estilo também conhecido como sinfonia, que não deve ser confundido com as Sinfonias típicas do Período Clássico. As Invenções, assim nomeadas pelo próprio Bach, são técnicas compostas com finalidade didática, para treinar a execução independente das mãos e que desvendam e ensinam de forma simples as intrincadas nuances da arte musical do contraponto, definidas em temas de rara inspiração. 
 

Os Concertos de Brandenburgo, uma série de seis concertos grosso, foram compostos sob evidente influência do mestre italiano Vivaldi, de quem Bach tinha muita admiração. Célebres pela forte densidade polifônica, esses concertos incorporam temas aristocráticos e do folclore alemão, numa bem balanceada mistura, desprovida de qualquer conotação extra-musical doutrinária ou ideológica. É a música pela música, numa perfeita combinação de todos os instrumentos da orquestra. Os Concertos de Brandenburgo constituem o exemplo maior da genialidade, inspiração e maturidade musical de Bach. Demonstram expressividade, fluência, conhecimento e talento musical dignos do maior músico de todos os tempos. Mais que tudo isso, é pura sabedoria !

    


  



Literatura e Teatro Barrocos

A Literatura barroca foi marcada por um forte senso de polaridade ou dualismo. Neste aspecto, o conflito maior era entre as alegrias e dores da existência terrena com as delícias e promessas espirituais. O confronto entre o prazer maior e a perda final, configurados como Eros e Tânatos, estava no centro das alegrias e dores individuais, enquanto o nacionalismo e o universalismo distendiam a polaridade dos sentimentos coletivos. O conteúdo emocional competia com o rigor formal. Tudo demarcava o inevitável conflito entre as necessidades da sociedade versus as do indivíduo. A prosa e a poesia tinham como característica principal a ênfase na originalidade, com bastante uso de elementos estilísticos tais como as figuras de linguagem, notadamente metáforas, hipérboles e antíteses. O objetivo principal era, como sempre, evocar emoções e permitir o afloramento de religiosidade e virtudes elevadas bem ao espírito da época, tendo como plano de fundo a natureza, a história e os dramas e sentimentos individuais.  Os escritores e poetas alcançaram popularidade como nunca havia acontecido. A Literatura  estava na vida do povo, mas nisso ela não se fez sozinha. Tornou-se aliada inseparável de uma manifestação artística poderosa, o Teatro. 

O Período Barroco foi sem dúvida o período do Teatro, alimentado convenientemente por sua irmã, a Literatura. Com sua retórica poderosa, podia tocar fundo nas emoções humanas trazendo aos palcos o conflito entre os dramas individuais e as demandas da sociedade. O grande impulso recebido pelo Teatro veio, no início, de uma fonte inesperada, a Igreja, na figura dos jesuítas. Eles usaram o teatro como ferramenta pedagógica, com encenações elaboradas, trazidas das praças para as escadarias das igrejas, palcos improvisados. Nos países protestantes, a Literatura e o Teatro não seguiram a agenda contra-reformista da Igreja Católica. Foi exatamente nesses países que o Teatro ganhou força e independência, deslocando-se gradualmente de uma abordagem popular rumo a uma linguagem mais intelectual, incorporando a música, as artes plásticas na confecção de cenários, com uso cada vez mais freqüente de tecnologias diversas utilizadas para aprimorar a arte da ilusão e causar mais impacto na platéia, explorando os elementos mais importantes do diálogo entre o Teatro e essas artes visuais. Na Inglaterra houve o desenvolvimento das famosas Masques, produções teatrais luxuosas e bem elaboradas, com custosos cenários planejados e executados por arquitetos e pintores famosos. A popularidade e força do Teatro viria a consolidar o termo theatrum mundi (o mundo é um palco) como o lema da época, pela capacidade do teatro para descrever, analisar e entender as atividades, emoções, anseios e vivências das pessoas e dos acontecimentos em suas vidas.
No barroco, a Literatura e o Teatro estão interligados de tal forma que caso tivessem tomado rumos independentes, certamente nada seriam. Quase todos os autores nesse período foram essencialmente dramaturgos.  Entre os mais importantes e representativos podemos citar:

Miguel de Cervantes (1547-1616) novelista e dramaturgo espanhol cuja obra mais conhecida é Dom Quixote.
William Shakespeare (1564-1616) é o maior poeta e dramaturgo inglês conhecido pelas peças Romeu e Julieta (1595), Rei Lear (1603-06), Macbeth (1603-06), Hamlet (1599-1601) Sonhos de uma Noite de Verão (1590).  Escreveu 38 peças das quais 17 comédias, 10 dramas históricos, 11 tragédias, além de 154 sonetos, vários poemas e muitos outros trabalhos menores.
John Fletcher (1579 – 1625) foi um dos mais prolíficos e influentes dramaturgos de seu tempo. Obteve reconhecimento e sucesso ainda em vida e os críticos de então, consideravam-no (juntamente com Ben Johnson) como superior ao próprio Shakespeare. 
Lope de Vega (1562-1635) poeta, dramaturgo e novelista espanhol dominou a chamada Era de Ouro do teatro da Espanha. Seus trabalhos contam La Arcadia (1598), La Dragontea (1598), El Isidro (1599), La Hermosura de Angélica (1602) e uma série de sonetos sacros intitulados Rimas sacras (1614).  
Ben Johnson (1572-1637) poeta e dramaturgo inglês, contemporâneo de Shakespeare e durante o período de vida de ambos era considerado pelos críticos como superior a este.  Johnson,  associado  ao  arquiteto  inglês Inigo Jones (1573-1652), produziu e popularizou o estilo masque, que  animava as festividades da corte dos Stuarts.
Pedro Calderón de la Barca (1600-81) um dos principais dramaturgos da Era Dourada de teatro espanhol, conhecido por seus Autos Sacramentales, série de peças religiosas encenadas em um ato  apenas.

Pierre Corneille (1606-84) poeta e dramatista francês muito importante na evolução da dramaturgia neo-clássica do Século XVII.  

Jean Baptiste Poquelin Molière (1622-73) dramaturgo e diretor de teatro francês, o maior artista cômico conhecido.  
John Dryden (1631-1700) escritor e dramaturgo inglês cujos dramas heróicos, comédias e tragédias dominaram os palcos nos anos que seguiram a restauração da monarquia inglesa (1660) após o período de guerra civil que assolou a Inglaterra, Escócia e Irlanda.

Philippe Quinault (1635-88) dramaturgo e letrista francês que colaborou com Lully nas letras de muitas óperas.  
Jean-Baptiste Lully (1637-82) músico e compositor italiano, que viveu sua vida artística na França, onde se dedicou a composição e produção de óperas durante três décadas.  

Jean Racine (1639-99) o principal dramaturgo trágico francês do século 17.  Phèdre (1677), uma tragédia em cinco atos, é sua obra mais conhecida.

 
  

As artes têm esse poder de comunicar e repassar as tradições, a cultura e as características de um povo, impregnada, pois, de nacionalismo. Todavia, sempre foi a ambição maior da arte ser universalista. Todo artista é um contador de estórias e um narrador da história, comprometido com a análise, reflexão e entendimento dos anseios, desejos e expectativas próprios da vida humana. A via media pode ser o que está escrito num livro ou livreto, o som que emite um instrumento ou uma orquestra, a representação pictográfica de uma pintura ou escultura, a magnificência de uma construção ou o palco de uma apresentação teatral. Ao expectador ou ouvinte, basta admirar e se inspirar no que o artista teve de melhor, num determinado momento; sentir uma emoção ressonante, com a que o artista sentiu e desejou compartilhar, seja essa emoção de alegria, tristeza, medo, amor ou os sentimentos extáticos e indescritíveis dos mistérios da fé. Hoje, decorridos tantos  anos, podemos não mais nos afetar diretamente pelas motivações sociais, ideológicas ou religiosas de então, mas, o que realmente importa, é que diante de qualquer expressão artística do Barroco sentiremos, ainda , uma  forte  emoção  e  isto  pela  pura  e  simples  magia  da  Arte.
 

Recife,
08/12/2007

J.R. Araújo
e-mail - zecaro108@yahoo.com.br



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