quarta-feira, 25 de julho de 2018

Teatro/CRÍTICA

"Volta Seca"

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Surpreendente e sensível relato



Lionel Fischer



"O Brasil inteiro conhece os versos de Olê, mulher rendeira, assim como os de Acorda, Maria Bonita. O que pouca gente sabe é que o autor desses clássicos é um ex-cangaceiro. Mais exatamente, um remanescente do lendário bando de Lampião, o mais temido líder do Cangaço. O autor em questão é Antonio dos Santos, mais conhecido como Volta Seca, alcunha que ganhou aos 11 anos, quando foi raptado pelo bando de Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião. Preso aos 14 anos, Volta Seca ficou detido em Salvador durante 20 anos. E a história será encenada pela primeira vez no Rio de Janeiro."

Extraído do release que me foi enviado, o trecho acima sintetiza o contexto em que se dá "Volta Seca", em cartaz na Galeria Marcantônio Villaça (Espaço Cultural Sergio Porto). Alan Pellegrino responde pela idealização do projeto, dramaturgia e atuação. Joelson Gusson assina a direção do espetáculo.

Reportando-me ao parágrafo inicial, realmente não tinha a menor ideia de que canções tão lindas haviam sido compostas por um cangaceiro. E menos ainda que este cangaceiro tenha passado a integrar o bando de Lampião aos 11 anos. É realmente curioso o fato de alguém que viveu, ainda que por pouco tempo, uma experiência em que a violência era a tônica, tenha sido capaz de produzir obras musicais tão sensíveis e definitivamente incorporadas ao cancioneiro popular nacional. Mas passemos ao espetáculo.

Este se dá na cela em que Volta Seca Seca cumpriu sua pena, no dia de sua libertação. O personagem conta sua história, faz reflexões sobre a mesma e encarna várias personalidades que integraram o bando de Lampião. Isto possibilita ao público conhecer não apenas a trajetória pessoal do protagonista, mas também a de um grupo de homens e mulheres que optaram por viver à margem da lei, em permanente embate com a Volante, força policial cujos membros eram chamados de Macacos por Lampião e seus seguidores.

Bem escrito, mesclando com a mesma eficiência passagens poéticas com outras de extrema dureza, "Volta Seca" recebeu segura e sensível direção de Joelson Gusson, que explora com grande propriedade a cenografia de sua autoria, que conta com as colaborações de Analu Prestes (o chão é coberto por máscaras rendadas), Pedro Grapiúna e Mario Coutinho (ossadas de vacas) e  Benjamim Abraão (projeções nas paredes de imagens reais do cangaço).  

Outro mérito suplementar de Gusson diz respeito à sua atuação junto ao ator, dramaturgo e idealizador do projeto Alan Pellegrino. Tanto nos momentos em que se dirige ao público como em outros em que vive diversos personagens, Pellegrino evidencia forte presença cênica e inegável capacidade de manter a plateia em permanente estado de atenção e interesse. 

No complemento da ficha técnica, Bernardo Lorga responde  
por uma iluminação em total sintonia com os climas emocionais em jogo, cabendo igualmente destacar a preparação vocal a cargo de Jorge Maia.

VOLTA SECA - Idealização, dramaturgia e atuação de Alan Pelegrino. Direção de Joelson Gusson. Galeria Marcantônio Villaça (Espaço Cultural Sergio Porto). Sábado a segunda, 20h30.



terça-feira, 24 de julho de 2018

Teatro/CRÍTICA

"As mil e uma noites"

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O contundente e mágico poder das palavras



Lionel Fischer



Pensando nos leitores que desconhecem a origem e o contexto de "As mil e uma noites", passo a uma breve exposição. Trata-se de uma coleção de histórias e contos populares originárias do Médio Oriente e do sul da Ásia e compiladas em língua árabe a partir do século IX. No mundo moderno ocidental, a obra passou a ser amplamente conhecida a partir de uma tradução para o francês realizada em 1704 pelo orientalista Antoine Galland, transformando-se num clássico da literatura mundial.

As histórias que compõem "As mil e uma noites" têm várias origens, incluindo o folclore indiano, persa e árabe. Não existe uma versão definida da obra, uma vez que os antigos manuscritos árabes diferem no número e no conjunto dos contos. O que é invariável nas distintas versões é que os contos estão organizados como uma série de histórias narradas por Xerazade, esposa do rei Xariar.

Este rei, louco por haver sido traído por sua primeira esposa, desposa uma noiva diferente todas as noites, mandando matá-las na manhã seguinte. Xerazade consegue escapar a esse destino contando maravilhosas histórias sobre diversos temas que captam a curiosidade do rei. Ao amanhecer, Xerazade interrompe cada conto para continuá-lo na noite seguinte, o que a mentém viva ao longo de várias noites - as mil e uma do título - ao fim das quais o rei já se arrependeu de seu comportamento e desistiu de executá-la.

Uma pequena parte do acima exposto é comunicada ao público no início do espetáculo, mas este revela muitas surpresas, sendo a principal o entrelaçamento de uma das histórias do livro original - ao longo da temporada, 33 histórias serão contadas - com relatos atuais de refugiados árabes que vivem no Rio de Janeiro. A cada noite uma das atrizes interpreta Xerazade, conduzindo a narrativa e também atuando como uma espécie de diretora de cena, dando o texto (que está em suas mãos) em voz baixa para os demais intérpretes e orientando suas entradas e saídas de cena, assim como sua disposição no palco. 

Eis, em resumo, o contexto em que se dá a mais recente produção da Cia. Teatro Voador Não Identificado, em cartaz no Oi Futuro Flamengo. Leandro Romano responde pela concepção e direção do espetáculo, estando a dramaturgia e adaptação a cargo de Gabriela Giffoni  e Luiz Antonio Ribeiro. No elenco, Adassa Martins, Bernardo Marinho, Clarice Zarvos, Elsa Romero, Gabriel Vaz, João Rodrigo Ostrower, Julia Bernat, Larissa Siqueira, Pedro Henrique Müller e Romulo Galvão. 

Partindo da premissa de que todas as histórias que compõem "As mil e uma noite" são fascinantes, não vou me deter na que foi apresentada na noite em que assisti o espetáculo, priorizando duas questões: a dupla função da atriz que interpreta Xerazade e o já mencionado entrelaçamento das histórias com relatos atuais de refugiados árabes.

A primeira ideia é excelente, dentre outras razões porque coloca o espectador em um estado de permanente escuta, fato  raríssimo hoje em dia graças às redes sociais e suas múltiplas variantes, que têm como principal virtude a patética volúpia de quem fala e seu total desinteresse pela fala do outro - neste sentido, e mesmo arriscando-me a ser apedrejado como a adúltera da Bíblia, ouso afirmar que a internet deu voz a incontáveis legiões de imbecis.

A segunda questão, referente à inserção dos depoimentos de refugiados árabes, pode ser interpretada de várias maneiras. Opto pela que se segue. O que é um refugiado? É alguém que, por variadas razões, foi forçado a deixar sua pátria e tentar seguir sua vida em outro país. Mas para que isso seja viável, antes de mais nada ele tem que aprender a falar o idioma local, posto que do contrário não será entendido e jamais conseguirá trabalho. 

Tudo, portanto, está basicamente atrelado à palavra. E foram as palavras que prolongaram a vida de Xerazade e, mais do que isso, demoveram o rei de seus propósitos homicidas. Assim, julgo totalmente pertinente o entrelaçamento das palavras ficcionais com as verdadeiras, afora o fato de que as últimas possibilitam ao espectador entrar em contato com realidades não raro impregnadas de amargura e de uma profunda dor.    

Quanto ao espetáculo, Leandro Romano impõe à cena uma dinâmica encantadora, quando a ficção predomina, e extremamente  contundente quando o foco recai sobre os relatos, posto que nesses momentos os intérpretes não incorporam nenhum personagem, apenas dão seus depoimentos, olhando os espectadores nos olhos. E esta permanente alternância, que em princípio poderia gerar alguma dispersão, só contribui para enfatizar o poder das palavras, e sua inegável capacidade de se fazer fecunda no coração daqueles que ainda acreditam que ninguém detém o monopólio de verdade alguma. 

E se é verdade que pelo fato de pensar eu existo, tenho que considerar que o outro também pensa, e que também existe. Então, será que não é possível pensarmos e existirmos juntos, mesmo que nossos pensamentos nem sempre coincidam e nossas existências sejam diversificadas? Eu, particularmente, acredito que sim. E, salvo monumental engano de minha parte, acredito que a equipe do presente espetáculo comunga da mesma crença.

Com relação ao elenco, na noite em que assisti o espetáculo Adassa Martins encarnava Xerazade. E mais uma vez me vi totalmente fascinado por sua forte presença, enorme carisma e uma segurança que a fez contornar, com absoluta serenidade, um pequeno problema com um dos microfones. Trata-se, sem a menor dúvida, de uma das mais brilhantes atrizes de sua geração. Quanto aos demais intérpretes, todos contribuem de forma decisiva para o êxito de um dos melhores espetáculos da atual temporada.

Na equipe técnica, parabenizo com o mesmo entusiasmo as preciosas colaborações de Elsa Romero (cenografia), Gaia Catta (iluminação), Lia Maia (figurinos) e Felipe Ventura e Gabriel Vaz (trilha sonora original).

AS MIL E UMA NOITES - Concepção e direção de Leandro Romano. Dramaturgia e adaptação de Gabriela Giffoni e Luiz Antonio Ribeiro. Com Adassa Martins, Bernardo Marinho, Clarice Zarvos, Elsa Romero, Gabriel Vaz, João Rodrigo Ostrower, Julia Bernat, Larissa Siqueira, Pedro Henrique Müller e Romulo Galvão. Oi Futuro Flamengo. Sexta a domingo, 20h.




sexta-feira, 20 de julho de 2018

Teatro/CRÍTICA

"A peste"

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Obra-prima em belíssima versão



Lionel Fischer



Ambientado em Oran, pequena cidade da Argélia, o romance "A peste" retrata inicialmente o cotidiano monótono dos habitantes, sua meticulosa rotina. Inesperadamente, toda a normalidade sofre inexplicável abalo: ratos agonizam por toda a parte e depois de um tempo a morte também atinge os moradores. E à medida que cresce o número de vítimas, o que de início resumia-se a mera preocupação converte-se em horror generalizado.

Eis, em resumo, o enredo do romance de autoria do escritor, dramaturgo e filósofo franco-argelino Albert Camus (1913-1960).  Em cartaz no Teatro II do CCBB, a presente montagem tem adaptação assinada por Pedro Osório, que sintetizou a obra em cima da narrativa do médico Bernard Rieux. O personagem também é interpretado por Osório, estando a direção a cargo de Vera Holtz e Guilherme Leme Garcia, com a colaboração de Gustavo Rodrigues.  

Como a presente obra já mereceu verdadeiros tratados de filósofos, ensaístas e críticos literários infinitamente mais capazes do que eu, julgo pueril ter a pretensão de acrescentar algo ao que já foi dito. Ainda assim, e apenas visando o espectador que não tenha lido "A peste", informo que o romance costuma ser interpretado ora como uma alegoria ao nazismo - e, por extensão, a todos os regimes totalitários -, ora sob um viés filosófico-existencial. 

Mas creio que ambas as interpretações não são excludentes, posto que assim como os regimes totalitários produzem dor, medo e solidão, os mesmos sentimentos estão presentes ante a iminência da morte gerada por uma doença. A única diferença entre ambas as mazelas é que a doença nos coloca diante de algo que normalmente nos aterroriza: a consciência da própria finitude. No entanto, nada me impede de acreditar que a perspectiva da morte pode modificar a postura dos homens perante si mesmos e o mundo, redefinindo valores e talvez resgatando o que de mais essencial existe nas relações humanas.

A presente adaptação, ainda que centrada em um único personagem, que no romance é também o narrador da história, sintetiza de forma admirável as questões fundamentais da obra-prima escrita por Camus. E ainda que os aspectos políticos sejam mais evidentes, nem por isso os filosóficos foram desprezados. E isto me parece evidente tanto na encenação quanto no trabalho do intérprete.

Em quase toda a montagem, o ator Pedro Osório se dirige à plateia com um misto de indignação e revolta, como se pretendesse sacudir consciências adormecidas - em alguns momentos, é claro, tal ênfase é reduzida, em especial quando o personagem permite o aflorar de seu próprio desespero e fragilidade. Por outro lado, e numa clara alusão a outra obra de Camus, "O Mito de Sísifo", o personagem passa quase todo o tempo transferindo pedaços de carvão de uma enorme pilha para criar outra no lado oposto do palco, aparentemente sem a menor finalidade. 

Em "O Mito de Sísifo", o personagem da mitologia grega é condenado a repetir eternamente a tarefa de empurrar uma pedra até o topo de uma montanha. No entanto, sempre que está prestes a alcançar seu objetivo, a pedra rola novamente montanha abaixo até o ponto de partida, invalidando todo o enorme esforço despendido. E é aqui que Camus introduz sua filosofia do absurdo: o que deve fazer um homem que busca sentido, unidade e clareza em um mundo ininteligível, desprovido de Deus e de eternidade? A resposta parece óbvia: o suicídio. No entanto, Camus desconsidera a morte voluntária e propõe a Revolta.

Ou seja: a montagem cometeria um erro crasso se nos fizesse crer que Rieux havia se rendido a um destino inexorável, caso ele concluísse totalmente a segunda pilha de pedaços de carvão e iniciasse um processo de transferência da mesma para seu lugar de origem. Mas ele não o faz, não perpetua o inócuo e angustiante ciclo. E sua recusa está impregnada de lucidez e revolta. E também da consciência que possui de que valores como o amor, a solidariedade e a compaixão ainda não foram completamente banidos, e que, portanto, ainda podem ser resgatados.

Vera Holtz e Guilherme Leme Garcia (com a colaboração de Gustavo Rodrigues) criaram uma encenação áspera e angustiante, em total sintonia com os conteúdos essenciais da obra. E Pedro Osório materializa aqui uma das melhores performances de sua carreira, exibindo forte presença cênica e total consciência tanto dos aspectos políticos como dos filosóficos presentes neste que é um dos melhores romances escritos no século XX.

Na equipe técnica, cabe destacar a expressividade da cenografia criada pela equipe que compõe o espetáculo, a mesma expressividade presente na sombria e claustrofóbica iluminação de Adriana Ortiz, no figurino de Ana Roque, na direção de movimento de Toni Rodrigues e na trilha sonora de Marcello H - esta última contribui decisivamente para ressaltar, de forma admirável, as passagens mais trágicas da encenação. 

A PESTE - Texto de Alberrt Camus. Adaptação de Pedro Osório. Direção de Vera Holtz e Guilherme Garcia Leme, com a colaboração de Gustavo Rodrigues. Com Pedro Osório. Teatro II do CCBB. Quinta à segunda, 19h30. 

      







quinta-feira, 19 de julho de 2018

Prêmio Cesgranrio de Teatro 2018

Indicados do 1º Semestre 


FIGURINO

Ney Madeira e Dani Vidal - Bibi, uma vida em musical
João Pimenta - Romeu e Julieta
Eduardo Giacomini - Nuon

CENOGRAFIA

Dina Salem Levy - Cérebrocoração
Natalia Lana - Bibi, uma vida em musical
Daniella Thomas - Romeu e Julieta

ILUMINAÇÃO

Paulo Cesar Medeiros - Maria
Monique Gardenberg e Adriana Ortiz - Romeu e Julieta
Beto Bruel - Cérebrocoração

ATOR

João Velho - A ordem natural das coisas
Claudio Mendes - Maria
Marcelo Olinto - Insetos

ATOR EM TEATRO MUSICAL

Claudio Galvan - Romeu e Julieta
Chris Penna - Bibi, uma vida em musical
Leo Bahia - Bibi, uma vida em musical

ESPECIAL

Gustavo Gasparani e Eduardo Rieche - adaptação e roteiro musical de Romeu e Julieta
Cia. Bandrés - pelos dez anos de atividade em pesquisa de máscaras balinesas
Andrea Jabor - preparação corporal de Insetos

ATRIZ

Gisele Fróes - O Imortal
Mariana Lima - Cérebrocoração
Beatriz Bertu - A ordem natural das coisas

ATRIZ EM TEATRO MUSICAL

Amanda Acosta - Bibi, uma vida em musical
Stella Maria Rodrigues - Romeu e Julieta
Daniela Fontan - A vida não é um musical - o musical

DIREÇÃO

Enrique Diaz e Renato Linhares - Cérebrocoração
Leonardo Netto - A ordem natural das coisas
Tadeu Aguiar - Bibi, uma vida em musical

DIREÇÃO EM MUSICAL

Tony Luchesi - Bibi, uma vida em musical
Apollo Nove - Romeu e Julieta
Jules Vandys tadt - O homem no espelho

TEXTO NACIONAL INÉDITO

A ordem natural das coisas - Leonardo Netto
A vida não é um musical - o musical - Leandro Muniz
A vida ao lado - Cristina Fagundes

ESPETÁCULO

Bibi, uma vida em musical
Romeu e Julieta
A ordem natural das coisas

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quarta-feira, 4 de julho de 2018

Teatro/CRÍTICA

"NAITSU - noites com Murakami"

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O real e o imaginário em belíssima versão




Lionel Fischer



"A montagem recria em cena a atmosfera fantástica de Haruki Murakami, considerado o maior autor japonês da atualidade. Sem transpor diretamente qualquer de seus livros, NAITSU atravessa a obra de Murakami, faz convergir situações recorrentes em sua literatura e aglutina várias personagens em apenas uma, que percorre paisagens estranhas e, às vezes, pertencentes a um outro mundo. O entrelaçamento de textos de obras diversas de Murakami com o texto corpo-verbal de Regina Miranda mantém a noite viva e a pulsação emocional da personagem vibrante, enquanto ela atravessa insone as horas entre a meia-noite e o alvorecer".

Extraído (e levemente editado) do ótimo release que me foi enviado, o trecho acima contextualiza o essencial de "NAITSU - noites com Murakami", mais recente produção da Cia. Regina Miranda & Atores Bailarinos. Em cartaz no Espaço Rogério Cardoso da Casa de Cultura Laura Alvim, a montagem leva a assinatura de Regina Miranda e tem como única intérprete Marina Salomon.

Assim que entram na Sala Rogério Cardoso, os espectadores recebem uma varinha e são informados de que podem "manipular a cenografia". Esta consiste em negros véus, com algumas frestas, que envolvem o espaço de representação; e no centro do mesmo, vemos uma espécie de passarela com uma mescla de cores, sendo o vermelho a cor predominante. A mencionada manipulação, obviamente, ficaria restrita aos véus - no meu caso específico, nada fiz com a dita varinha.

Tão logo constatei o essencial da ambientação, meu olhar se concentrou na mulher que, vestida de forma atemporal, realiza movimentos que mesclam contração e expansão, como se desejasse se libertar de algo que a atormenta e ao mesmo tempo sentisse  grande temor de consumar seu desejo. Essa mulher também direciona seu olhar, seus braços e todo o seu corpo em direção aos véus, como que pedindo ajuda àqueles que a observam. Mas logo o mesmo e desesperador ritual volta a se repetir. E talvez se perpetuasse, a menos que ela tomasse alguma atitude. E é o que ela faz ao confessar que havia passado as últimas 17 noites sem dormir.  

Padeceria ela de singular insônia? Ou será que optou por ficar acordada por acreditar que, nas horas noturnas, poderia refletir melhor sobre seus anseios e receios, ainda que arriscando-se a transpor as fronteiras entre o real e o imaginário? Em minha opinião, creio ser a segunda hipótese a mais correta, ainda que possam existir outras. 

Acredito que todo aquele que se recusa a refletir sobre o próprio passado está condenado a repeti-lo. E a mesma reflexão se aplica ao presente: se não estou satisfeito com o que sou, mas me nego a pensar sobre isso, eu serei sempre o mesmo, não darei um mísero passo que me possibilite qualquer transformação. Aqui, estamos diante de uma mulher que pensa no que foi e pensa no que é, o que talvez lhe faça transcender seu estado atual. E que estado é esse?

Como explicitado no parágrafo inicial, não estamos diante de uma mulher específica, mas da aglutinação de várias. Assim, me parece que a opção dramatúrgica de Regina Miranda foi a de concentrar em um único corpo e em uma única voz toda a complexidade do feminino, que abarca tanto a fragilidade quanto a potência. E entre esses dois extremos, uma infinidade de dúvidas, que a personagem explicita com tanto destemor que, a partir de um dado momento,  tive a sensação de que ela renunciaria à própria lucidez e abraçaria a loucura, como se esta derradeira opção pudesse lhe trazer a paz tão almejada.     

Sem a menor dúvida, estamos diante de um texto que levanta questões da maior pertinência e das quais não podemos fugir, a menos que decidamos nos tornar uma espécie de náufragos de nós mesmos. O texto nos propõe urgentes e inadiáveis reflexões. Cabe a nós decidir se as faremos de dia ou em madrugadas insones. No meu caso específico, sempre preferi a noite, dentre outras razões porque acredito que o silêncio seja um excelente parceiro.

Com relação ao espetáculo, este traz a assinatura de uma artista, na acepção máxima do termo. Regina Miranda possui a notável capacidade de mesclar palavras e gestos, a ponto de torná-los indissociáveis. E a coreografia jamais objetiva reiterar o conhecimento daquela que a concebeu e o virtuosismo daquela que a executa. Isto seria pueril, levando-se em conta as brilhantes trajetórias de Regina Miranda e Marina Salomon. Posso estar enganado, naturalmente, mas creio que toda a dinâmica cênica, irrepreensível em todos os momentos, talvez seja fruto mais da alma do que da razão. 

No tocante a Marina Salomon, esta é sem dúvida uma das melhores intérpretes do país. E aqui me abstenho de enumerar seus predicados técnicos, já por demais conhecidos. O que me parece inadiável ressaltar é sua impressionante capacidade de entrega e sua notável inteligência cênica. E também sua coragem. E por coragem entenda-se, por exemplo, a forma como lida com momentos em que nada é dito ou feito, e no entanto, graças a seu poderoso estado de presença, muito está acontecendo. Isto só ocorre com intérpretes de exceção. E Marina Salomon se inclui nesta raríssima categoria.

Com relação à equipe técnica, Luiza Marcier, como já dito, assina um figurino atemporal, como a sugerir que o mesmo estaria em sintonia com todas as mulheres, de todas as épocas. Regina Miranda responde por expressiva trilha sonora, a mesma expressividade presente na ambientação. Gostaria também de ressaltar a beleza do cartaz, creio que a partir de uma foto de Luís Cancel.

NAITSU - NOITES COM MURAKAMI - Texto de Regina Miranda a partir de obras de H. Murakami. Direção de Miranda, interpretação a cargo de Marina Salomon. Casa de Cultura Laura Alvim (Espaço Rogério Cardoso). Sexta e sábado às 20h30. Domingo, 19h30.