Devido ao meu formidável domínio no que diz respeito a este abominável senhor chamado Computador, por razões misteriosíssimas consegui deletar do blog a crítica de "Corte seco", enquanto me empenhava em enviá-la a uma amiga, a seu pedido. Então, como a mesma está publicada no jornal Folha Zona Sul (Dezembro de 2009), não encontrei outra alternativa a não ser redigitá-la. (LF)
Teatro/CRÍTICA
"Corte seco"
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Qual é o meu lugar?
Lionel Fischer
Como todos sabemos, um dos aspectos mais fascinantes do teatro é sua infinita capacidade de nos surpreender, de nos gerar dúvidas, inquietações, eventuais reflexões passíveis de serem convertidas em atos que transformam nossas vidas, nos facultam um novo olhar sobre nós mesmos e o mundo que nos cerca. No presente caso, estamos diante de um espetáculo que, se por um lado, talvez não preencha todos os quesitos acima mencionados, por outro já seria imperdível "apenas" por nos colocar diante da seguinte e fundamental questão: qual é o meu lugar?
Sim, pois numa época em que as fronteiras entre o público e o privado praticamente desapareceram, em que certezas da véspera se convertem em dúvidas no dia seguinte, em que incidentes de toda a espécie interferem no nosso cotidiano - para o bem ou para o mal, pouco importa - e as relações se tornaram cada vez mais confusas, imprecisas e fugazes, e todas as histórias sofrem imprevistas interferências e não raro se desviam de seu curso natural, como se sentir minimamente confortável em um tal contexto? Qual poderia ser, afinal, o lugar de cada um de nós?
Encerrando a trilogia iniciada com "Conjugado" e "A falta que nos move", agora Christina Jatahy e a Cia. Vértice de Teatro nos mostram "Corte seco", em cartaz no Espaço Cultural Sérgio Porto. Christiane assina a direção e dramaturgia, estando o elenco formado por Cristina Amadeo e Daniela Fortes (integrantes da companhia) e mais os atores convidados Eduardo Moscovis, Thereza Piffer, Felipe Abib, Ricardo Santos, Stella Rabello, Branca Messina, Paulo Dantas e Leonardo Netto.
Tendo como referências o livro "Passagens", de Walter Benjamim, e o filme "Short Cuts", de Robert Altman, além do trabalho de improvisação e construção dramatúrgica do espanhol José Sanchis Sinisterra, Christiane Jatahy oferece ao público uma espécie de mosaico, de furtivos olhares sobre múltiplos aspectos da ralidade, cabendo destacar que os atores decoraram todos os papéis e a ordem das cenas pode ser alterada a cada novo espetáculo, que também possibilita uma grande margem de improvisação, embora a improvisação não seja a principal linha adotada, conforme consta do release que nos foi enviado.
E embora o espetáculo conte com recursos tecnológicos, por sinal muito bem utilizados, como câmeras que mostram as adjacências do teatro ou alguns de seus espaços internos, o que cabe destacar é a unidade conseguida entre forma e conteúdo, e também a progressiva desconstrução de algumas expectativas iniciais. Por exemplo: logo no início da montagem, vemos várias cadeiras nas quais constam informações sobre o papel a ser exercido por aqueles que as ocuparem. Mas logo torna-se evidente a impossibilidade de "papéis fixos", como também a inutilidade de se marcar o chão com fitas adesivas, como se fossem fronteiras a serem preservadas. Nada é fixo, nada pode ser preservado.
E essa sensação, inicialmente apenas um tanto desconfortável, assume conotações cada vez mais inquietantes, pois torna-se literalmente impossível não se identificar com os personagens e seus descaminhos e desencontros - falando apenas em meu nome, devo confessar que, embora tenha amado o espetáculo, quando saí do Sérgio Porto estava tão desnorteado que esqueci onde havia estacionado meu carro, ou por outra, onde havia estacionado o carro de minha namorada, já que no momento não possuo este precioso meio de locomoção.
Quanto aos atores, e mesmo correndo o risco de ser (ou parecer) monótono, vou repetir pela enésima vez: como são bons os nossos intérpretes! Como é comovente ver um grupo de profissionais se entregar com tanta paixão e inteligência cênica à árdua tarefa de materializar na cena conteúdos tão dolorosos, ainda que os mesmos, eventualmente, sejam expressos através do humor. A todos, portanto, agradeço o privilégio de tê-los visto em uma montagem que só desinformados ou invejosos de plantão deixarão de assistir.
Com elação à equipe técnica, Marcelo Lipiani assina uma cenografia tão brilhante como original, com Paulo César Medeiros iluminando a cena com sua habitual competência e sensibilidade. Destacamos ainda as músicas de Rodrigo Marçal e a orientação corporal de Dani Lima, sem dúvida também responsáveis pelo êxito indiscutível do presente espetáculo.
CORTE SECO - Texto e direção de Christiane Jatahy. Com a Cia. Vértice de Teatro. Espaço Cultural Sérgio Porto. Sexta e sábado, 21h. Domingo, 20h.
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