"Variações sobre a morte de Trotsky"
Texto de David Ives
Tradução de Ana Bernstein
PERSONAGENS:
Trotsky
Sra. Trotsky
Ramon
(Escritório de Trotsky em Coyacan, México. Uma escrivaninha, coberta com livros e papéis. Um espelho pendurado na parede. Uma porta à esquerda. Janelas com venezianas ao fundo, através das quais podemos vislumbrar viçosas copas de árvores e plantas tropicais. Um grande calendário de parede marca que hoje é dia 21 de agosto de 1940. Luzes em Trotsky sentado à sua escrevaninha, escrevendo furiosamente. Ele tem cabelos bastos e cavanhaque, pequenos óculos, um terno escruto. O cabo de uma picareta está saindo da parte de trás de sua cabeça)
VARIAÇÃO I
Trotsky (escrevendo) - "O proletariado está certo. O proletariado deve estar sempre certo. E a revolução do proletariado contra a opressão precisa continuar...para sempre!" (entra a Sra. Trotsky, maternal e doce, trajando um vestido comprido até o calcanhar e botinas abotoadas. Ela está segurando um enorme livro)
Sra. Trotsky - Leon.
Trotsky - "E sempre e sempre...!"
Sra. Trotsky - Leon, eu estava agora há pouco lendo a enciclopédia.
Trotsky - O verbete?
Sra. Trotsky - "Trotsky, Leon".
Trotsky - Ótimo. É sobre mim.
Sra. Trotsky - Escute isso. (Lê) "No dia 20 de agosto de 1940, um comunista espanhol chamado Ramon Mercader golpeou com uma picareta o crânio de Trotsky em Coyoacan, subúrbio da cidade do México. Trotsky morreu no dia seguinte".
Trotsky - Qual é o ano desta enciclopédia?
Sra. Trotsky - 1997.
Trotsky - Estranho.
Sra. Trotsky - Sim.
Trotsky - Mas interessante. Eu sou Trotsky.
Sra. Trotsky - Sim, querido.
Trotsky - E esta é a nossa casa em Coyoacan.
Sra. Trotsky - Sim.
Trotsky - E temos um jardineiro espanhol chamado Ramon...
Sra. Trotsky - Mercader. Sim.
Trotsky - Não há nenhuma outra família Trotsky vivendo em Coyoacan, há?
Sra. Trotsky - Acho que não. Não sob este nome.
Trotsky - Que dia é hoje?
Sra. Trotsky - 21 de agosto de 1940.
Trotsky - Então eu estou salvo! Este artigo diz que aconteceu no dia 20, o que significa que teria acontecido ontem.
Sra. Trotsky - Mas Leon...
Trotsky - Será que a imprensa capitalista nunca vai escrever as coisas certas? (Volta a escrever)
Sra. Trotsky - Mas Leon, não é o cabo de uma picareta que está saindo da sua cabeça?
Trotsky (Olha no espelho) - Com certeza parece com uma...E você sabe, Ramon esteve aqui ontem, me contando sobre sua escalada. E agora que eu estou pensando no assunto, ele estava carregando sua picareta. Não consigo lembrar se ele ainda a tinha quando deixou a sala...Ramon veio trabalhar hoje? (Trotsky morre. Uma campainha toca)
VARIAÇÃO II
Trotsky (Escrevendo) - "Ninguém está a salvo. O uso da força é necessário. E a revolução do proletariado contra a opressão deve continuar para sempre e sempre..."
Sra. Trotsky - Leon...
Trotsky - "E para sempre!"
Sra. Trotsky - Leon, eu estava agora há pouco lendo a enciclopédia.
Trotsky - É a Britãnica?
Sra. Trotsky - Escute isso.
Trotsky (Para o público) - O universo visto pelos vencedores.
Sra. Trotsky - "No dia 20 de agosto de 1940, um comunista espanhol chamado Ramon Mercader golpeou com uma picareta o crânio de Trotsky em Coyoacan, subúrbio da cidade do México. Trotsky morreu no dia seguinte".
Trotsky - Sim, e...?
Sra. Trotsky - Eu acho que há uma picareta no seu crânio neste exato momento.
Trotsky - Eu sabia disso! Quando eu estava me barbeando esta manhã, notei um cabo saindo por trás da minha cabeça. Por um momento eu pensei que era um furador de gelo, então a princípio eu fiquei preocupado.
Sra. Trotsky - Não, não é um furador de gelo.
Trotsky - Nem mesmo pronuncie a palavra, por favor. Você sabe do meu pesadelo recorrente.
Sra. Trotsky - Sim, querido.
Trotsky - Sobre o furador de gelo que se enterra em meu crânio.
Sra. Trotsky - Mas Leon...
Trotsky - Ninguém pode ser visto com um furador de gelo nesta casa. Especialmente comunistas espanhóis.
Sra. Trotsky - Mas Leon...
Trotsky - Podemos nos virar sem gelo. Beberemos nosso licor puro e nossa Coca-Cola quente. Quem se importa se estamos em Coyacan e é agosto? Não é um mau título para uma canção: "Coyacan em agosto". (Anota) Ou nós teremos gelo mas apenas não o partiremos. Gelo será permitido nesta casa em blocos, mas não deverá ser picado ou lascado sob nenhuma circunstância - pelo menos, não com um furador de gelo. Bandejas de gelo também seriam permitidas, se já tivessem sido inventadas. Aposto como este artigo não diz nada sobre uma bandeja de gelo no meu crânio, diz?
Sra. Trotsky - Não...
Trotsky - Diz?
Sra. Trotsky - Não.
Trotsky - HA! Fui mais esperto do que o destino! (Para o público) O que é apenas uma explicação capitalista para o status quo!
Sra. Trotsky - Leon...
Trotsky - Também, olhe para isso. (Abre uma gaveta e tira um crânio) Você sabe o que é isso?
Sra. Trotsky - Não.
Trotsky - É um crânio.
Sra. Trotsky - Bem, isso eu sabia, mas...
Trotsky - Eu comprei este crânio. Eu possuo este crânio. Então o que isto o torna?
Sra. Trotsky e Trotsky - O crânio de Trotsky.
Trotsky - Se algum comunista espanhol disfarçado de jardineiro quiser enterrar alguma coisa em meu crânio ou qualquer outra coisa, isto estará aqui como uma isca. Ele verá esse crânio, enterra alguma coisa nele, e seguirá o seu caminho enquanto eu sigo o meu. Não é engenhoso?
Sra. Trotsky - Até certo ponto.
Trotsky - Mais 50 anos de Trotsky!
Sra. Trotsky - Tenho más notícias para você, Leon. (Mostra a ele a enciclopédia)
Trotsky - Uma picareta? Engenhoso! (Trotsky morre. Campainha)
VARIAÇÃO III
Trotsky - Engraçado. Sempre pensei que fosse um furador de gelo.
Sra. Trotsky - Uma picareta! Uma picareta! Será que eu não consigo enfiar isso na sua cabeça? (Trotsky morre. Campainha)
VARIAÇÃO IV
Trotsky - Essa é uma péssima notícia. Isso é sério.
Sra. Trotsky - O que é sério, Leon?
Trotsky - Eu tenho uma picareta enterrada no meu crânio!
Sra. Trotsky - Na verdade, ele está esmagado. Aqui diz que Mercader esmagou o seu crânio com a picareta, não diz "enterrou"...
Trotsky - Certo, certo. O que eu vou fazer?
Sra. Trotsky - Talvez um chapéu possa cobrir o cabo. Você sabe. Um daqueles lindos chapéuzinhos Alpinos, com uma ponta e uma pena...?
Trotsky - A encicloplédia diz que eu morro hoje?
Sra. Trotsky - Dia 21. É hoje.
Trotsky - Diz a que horas?
Sra. Trotsky - Não.
Trotsky - Bem se vê a inutilidade dessa enciclopédia. Certo, então eu tenho até a meia-noite o mais tardar.
Sra. Trotsky - O que eu devo dizer à cozinheira sobre o jantar?
Trotsky - Bem...ela pode esquecer a sopa de entrada.
Sra. Trotsky - Nyet, nyet, nyet! (Campainha)
VARIAÇÃO V
Trotsky - Mas este homem é um jardineiro.
Sra. Trotsky - Sim.
Trotsky - Pelo menos ele tem posado de jardineiro.
Sra. Trotsky - Sim.
Trotsky - Isso não o torna um membro do proletariado?
Sra. Trotsky - Eu diria que sim.
Trotsky - Então o que ele está fazendo enterrando uma picareta no meu crânio?
Sra. Trotsky - Eu não sei. Você andou oprimindo ele?
Trotsky - Por que Ramon faria isso comigo? (Ele segura o crânio, tipo Hamlet)
Sra. Trotsky - Talvez ele seja um literalista.
Trotsky - O que?
Sra. Trotsky - Um literalista. Talvez Ramon tenha encontrado com Manuel ontem. Você sabe...Manuel? O jardineiro chefe?
Trotsky - Eu sei quem é Manuel.
Sra. Trotsky - Eu sei que você sabe quem Manuel é. Mas talvez Ramon tenha perguntado a ele, "O Sr. Trotsky terá tempo de olhar os nasturtiums hoje?" E talvez Manuel tenha dito, "O Sr. Trotsky? Só morto". Ha, ha, ha...
Trotsky - Muito engraçado.
Sra. Trotsky - Ou talvez ele estivesse apenas querendo pregar um Trotsky.
Trotsky - Ah muito, muito engraçado.
Sra. Trotsky - Ou talvez ele apenas quisesse cultivar seus miolos!
Trotsky - Pare com isso! Pare com isso! (Ele morre)
Sra. Trotsky - Ha, ha, ha...(Campainha)
VARIAÇÃO VI
Trotsky - Chame Ramon aqui.
Sra. Trotsky - Ramon!
Trotsky - Melhor você achá-lo depressa. Eu tenho uma picareta em meu crânio!
Sra. Trotsky - Ramon! Venha rápido! (Entra Ramon: sombrero, serape, huaraches e violão)
Trotsky - Bom dia, Ramon.
Ramon - Bom dia, señor.
Trotsky - Sente-se, por favor (Para a Sra. Trotsky) Você vê? Nós temos aqui uma ótima relação patrão-empregado. Ramon, você enterrou essa picareta em meu crânio?
Ramon - Eu não enterrei, señor. Eu esmaguei seu crânio com ela.
Trotsky - Perdão?
Ramon - Entende? Você ainda pode ver o cabo.
Sra. Trotsky - É verdade, Leon. A picareta não está totalmente fora de vista.
Ramon - Então nós não poemos dizer "enterrada", podemos apenas dizer "enfiada" ou talvez "entalada".
Trotsky - Certo, certo. Mas por que você fez isso?
Ramon - Eu acho que li sobre isso numa enciclopédia.
Trotsky (Para o público) - O poder da palavra impressa!
Ramon - Eu queria usar um furador de gelo, mas não havia nenhum aqui na casa.
Trotsky - Mas por que? Você sabe quem eu sou? Você se dá conta de que você esmagou essa picareta no crânio de uma grande figura histórica? Eu ajudei a Revolução Russa! Eu combati Stalin! Eu era um grande teórico político! Por que você fez isso? Foi discordância política? Recuo anti-contra-revolucionário?
Ramon - Na verdade, foi amor, señor.
Sra. Trotsky - É verdade, Leon. (Ela e Ramon dão-se as mãos) Apenas lamento que você tenha sabido dessa forma.
Trotsky - Oh, Deus! Que tolo eu tenho sido! (Ele morre. Campainha)
VARIAÇÃO VII
Trotsky - Por que você fez isso realmente, Ramon?
Ramon - Você nunca saberá, señor Trotsky.
Trotsky - Isso é um pesadelo!
Ramon - Mas felizmente para você, sua noite acabará logo. (Trotsky morre. Campainha)
VARIAÇÃO VIII
Trotsky - Certo, Ramon. Obrigado. Você pode ir. (Ramon começa a sair. Pára)
Ramon - Señor Trotsky?
Trotsky - Sim?
Ramon - O sr. acha que terá tempo de olhar para os nasturtiums hoje? Eles estão realmente lindos.
Trotsky - Acho que não, Ramon. Mas eu vou tentar.
Ramon - Obrigado, señor. Hasta la vista. Ou deveria dizer, buenas noches. (Sai)
Trotsky - Bem...está bem então. O vigésimo primeiro dia de agosto de 1940. O dia que eu vou morrer. Interessante. E pensar que eu passei por tantos vinte e um de agosto em minha vida, como um homem andando sobre sua própria cova.
Sra. Trotsky - Tem sido maravilhoso ser casada com você, Leon.
Trotsky - Obrigado, sra. Trotsky.
Sra. Trotsky - Embora tenha sido um fardo algumas vezes, ser casada com uma importante figura histórica.
Trotsky - Eu lamento ter ficado ausente de casa com freqüência, cuidando da revolução.
Sra. Trotsky - Eu comprendo.
Trotsky - Eu sinto muito se eu não demonstrei mais meus sentimentos.
Sra. Trotsky - Não...por favor...
Trotsky - E se me foi sempre tão difícil expressar minhas emoções.
Sra. Trotsky - Oh, eu não tenho sido tudo que eu deveria.
Trotsky - Bem...é um pouco tarde para lamentar, com uma picareta enterrada no cérebro de alguém.
Sra. Trotsky - Enfiada, na verdade.
Trotsky - Então não foi a velhice, ou câncer, ou mesmo o furador de gelo que eu temi por tantos anos. Foi uma picareta brandida por um comunista espanhol disfarçado de jardineiro.
Sra. Trotsky - Você realmente não poderia ter imaginado isso, Leon.
Trotsky - Então mesmo assassinos podem cultivar flores. O jardineiro era falso e ainda assim o jardim que ele cuidou era real. Como poderia saber que ele era meu assassino quando eu passava por ele todo dia? Como poderia saber que o homem que cuidava dos nasturtiums me privaria de saber como será o tempo amanhã? Como poderia saber que eu jamais veria "Casablanca", que não seria feito até 1942 e que eu desprezaria, de qualquer forma? Como eu poderia saber que jamais saberia sobre a bomba ou sobre os 80 mil mortos de Hiroshima? Ou rock and roll, ou Gorbachev, ou o Estado de Israel? Como eu poderia saber que eu seria apagado dos livros de História da minha própria terra?
Sra. Trotsky - Mas reintegrado, ao menos parcialmente, um dia.
Trotsky - Um dia, para todo mundo, há um aposento em que você entra, e este é o quarto que você nunca deixa. Ou então você sai de um aposento e é o último aposento que você jamais deixará. Este é meu último aposento.
Sra. Trotsky - Mas você nem mesmo está aqui, Leon.
Trotsky - Esta escrivaninha, estes livros, este calendário...
Sra. Trotsky - Você nem mesmo está aqui, meu amor.
Trotsky - O sol entrando por estas persianas...
Sra. Trotsky - Isso foi ontem. Você está num hospital, inconsciente.
Trotsky - As flores no jardim. Você em pé aí...
Sra. Trotsky - O que você está vendo é ontem.
Trotsky - O que a entrada diz? Você leria de novo?
Sra. Trotsky - "No dia 20 de agosto de 1940, um comunista espanhol chamado Ramon Mercader golpeou com uma picareta o crânio de Trotsky em Coyacan, subúrbio da cidade do México. Trotsky morreu no dia seguinte".
Trotsky - Isso lhe dá um pouco de esperança em relação ao mundo, não é? Que um homem tenha uma picareta esmagada em seu crânio e ainda assim viva por um dia inteiro...? Talvez eu vá olhar os nasturtiums. (Trotsky morre. O jardim do lado de fora da janela com persianas começa a se iluminar. As luzes diminuem até se apagarem)
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quinta-feira, 27 de maio de 2010
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