sexta-feira, 5 de maio de 2017

Teatro/CRÍTICA

"Perdoa-me por me traíres"

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Maravilhosa versão de obra-prima

Lionel Fischer



"O marido traído que pede desculpas por ter sido enganado pela mulher é o mote do texto. Depois de matar a cunhada infiel, Raul passa a vigiar ferozmente a sobrinha, sob o pretexto de preservar sua castidade. Mas Glorinha acaba conhecendo o mundo dos bordéis ao mesmo tempo em que prepara uma terrível vingança contra o tio. Nesta peça estão presentes todos os ingredientes da obra rodriguiana: desejos, traições, morte, sexo, vingança, violência física e moral, prostituição e todos esses sentimentos que regem a humanidade até os dias de hoje e estão longe de serem datados".

Extraído do release que me foi enviado, o trecho acima resume o enredo (além de mencionar os principais temas da obra rodriguiana) de "Perdoa-me por me traíres", de Nelson Rodrigues, em cartaz no Teatro Laura Alvim. Daniel Herz assina a direção da montagem, que tem elenco formado por Bebel Ambrosio, Bob Neri, Clarissa Kahane, Ernani Moraes, gabriela Rosas, João Marcelo Pallotino, Rose Lima, Tatiana Infante e Wendell Bendelack.

Como se sabe, tratados já foram escritos sobre a obra de Nelson Rodrigues, incluindo esta que acaba de entrar em cartaz. E tais escritos, assinados por renomados pensadores, dramaturgos, psicanalistas e críticos (nacionais e estrangeiros) não me permitem acrescentar nada de especial ao que já foi dito. Portanto, limito-me ao óbvio, quem sabe ululante: "Perdoa-me por me traíres" é uma obra-prima cujo maior mérito talvez seja o de nos mostrar, com cirúrgica precisão, a inutilidade de acreditarmos que, com lama até o pescoço, seja suficiente manter limpas as unhas nas pontas dos dedos. 

Ou seja: isto talvez nos ajude a manter uma aparência de normalidade, em sintonia com a moral vigente e os bons costumes. Mas quase sempre chega o momento em que essa epidérmica dissimulação, alimentada pela hipocrisia, acaba sendo sobrepujada por impulsos irrefreáveis, advindos de camadas não raro ignoradas de nossa personalidade. 

Portanto, e não desejando me estender mais do que pretendia (embora já o tenha feito), acredito que Nelson Rodrigues, como todo autor dotado de inegável genialidade, compactua com o pensamento do dramaturgo e poeta romano Publio Terêncio Afro (195a.C- 159 a.C), expresso na obra Heaautontimorumenos: "Homo sum: nihil humani a me alienum puto" ("Sou homem: nada do que é humano me é estranho").  Ou seja, é da natureza do humano conter tudo, e negar esta evidência equivaleria a contestar o oceano pela inconstância de suas marés. 

Com relação ao espetáculo, acredito que a direção de Daniel Herz seja uma das melhores de sua brilhante carreira. E não vou me deter em aspectos puramente técnicos, pois o encenador os domina há muito tempo. Quero enfatizar sua capacidade de imprimir à cena uma atmosfera ao mesmo tempo austera e sóbria, mas nem por isso isenta da virulência e da passionalidade inerentes ao texto. Quero registrar a forma como potencializa a permanente alternância entre entre a lucidez e o delírio, sendo tal dualidade um dos pilares da obra. Quero, enfim, parabenizar o encenador por ter nos brindado com uma montagem que valoriza ao máximo o trágico inerente a uma das peças mais vigorosas escritas por Nelson Rodrigues.

No tocante ao elenco, Bebel Ambrosio está muito bem na pele da adolescente Nair, o mesmo aplicando-se à sua performance como Ceci. Wendell Bendelack, cuja trajetória sempre esteve mais voltada para o humor, não deixa de estar engraçado vivendo Pola Negri, mas ao mesmo tempo imprime ao personagem um tom ameaçador em total sintonia com o contexto. E também está irretocável quando encarna o frio e virulento médico que se dedica ao aborto. 

Tatiana Infante exibe atuação impecável como a cafetina Madame Luba, mulher depravada, cínica e cuja transbordante sexualidade se equipara à asquerosa frieza com que conduz seu negócio. A atriz também convence plenamente na pele da enfermeira do execrável aborteiro. Rose Lima é uma forte presença vivendo a enlouquecida Tia Odete, que ao longo da peça vaga como um espectro que parece oriundo de tempos imemoriais. Também irrepreensível é a performance de Bob Neri, que encarna o patético e ensandecido deputado Jubileu de Almeida, que só consuma seu prazer ao tecer considerações sobre átomos, prótons e moléculas.

Com relação aos protagonistas, Clarissa Kahane consegue extrair o máximo de Glorinha, jovem dividida entre o pudor e o desejo, a necessidade de obedecer e ao mesmo tempo a ânsia de transgredir, materializando com grande sensibilidade toda a curva emocional da personagem. O mesmo brilho e eficiência se fazem presentes na atuação de João Marcelo Pallotino (Gilberto), personagem inicialmente ciumento e violento e que, com o transcorrer da peça, sobrevive à loucura e passa a exibir desconcertante lucidez, o que o leva a pedir perdão à mulher por ela tê-lo traído (daí o título da peça). Na pele de Judite, Gabriela Rosas materializa com notável sensibilidade o caráter de uma mulher que consegue dissimular a essência do seu caráter - na aparência, uma esposa fiel e digna de toda a confiança; na realidade, uma mulher que às escondidas não refreia sua insaciável sexualidade. 

Finalmente, chego a Ernani Moraes. Ator de porte avantajado, propensão histriônica e dotado de uma voz que em tudo se assemelha ao furor das grandes tempestades, aqui o ator consegue refrear sua indômita natureza e desenhar, pouco a pouco e com grande riqueza de detalhes, a evolução emocional do mais complexo personagem do texto, o famigerado e asqueroso Tio Raul. Sem a menor dúvida, uma das melhores atuações da longa e significativa trajetória deste excelente intérprete.

Na equipe técnica, Fernando Mello da Costa responde por brilhante e econômica cenografia, composta basicamente de persianas que se abrem e fecham, que revelam e ocultam, em total sintonia com o material dramatúrgico. O mesmo brilho e economia se fazem presentes na iluminação de Aurélio de Simoni, que sutilmente consegue valorizar ao máximo todos os climas emocionais em jogo. Igualmente notáveis as contribuições de Ricco Viana (direção musical), Duda Maia (direção de movimento) e Antônio Guedes (figurinos). 

PERDOA-ME POR ME TRAÍRES - Texto de Nelson Rodrigues. Direção de Daniel Herz. Com Bebel Ambrosio, Bob Neri, Clarissa Kahane, Ernani Moraes, Gabriela Rosas, João Marcelo Pallotino, Rose Lima, Tatiana Infante e Wendell Bendelck. Teatro Laura Alvim. Quinta a sábado, 21h. Domingo, 20h.














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