quarta-feira, 22 de julho de 2009

Molière
(Jean-Baptiste Poquelin)
(1622-1673)

Senhor, eis que o assunto é delicado;
O fogo da poesia é sempre amado.
A alguém inominável eu disse, um dia,
Falando em poemas de sua autoria,
Que homens de bem deviam se conter
No que concerne à ânsia de escrever;
Que convém controlar a propensão
De expor a diminuta vocação;
E que, ao exibir a obra de arte,
Muitas vezes, do bobo é a nossa parte.


As palavras são de Alceste, protagonista de O misantropo, com elas cativando-me o coração, pois expressam o meu sofrimento diário, ao ser inundado de má poesia (a contragosto). Por ser um satirista, Alceste não desperta o fascínio da maioria dos críticos de Molière, que se melindram com os escessos das impagáveis tiradas do misantropo. Mas, vale lembrar, críticos não costumam ver com bons olhos personagens dramáticos ambivalentes, e Alceste, dotado de fervorosa sinceridade, proclama a própria autenticidade com demasiada veemência, sendo incapaz de enxergar o seu intenso amor-próprio e excessivo egocentrismo.

É possível considerar Alceste um Hamlet cômico, que, ao contrário de Hamlet, não tem o menor senso de humor. Todavia, Hamlet, mesmo na loucura, não atua como bobo; Alceste, às vezes, o faz. Porém, mesmo nesses momentos, Alceste preserva uma contumaz dignidade estética.

O gênio cômico de Molière é tão absoluto quanto sutil: Alceste, quando bem representado, é cômico, mas, se houver uma verdade, e se for plausível representá-la no palco, Alceste pode muito bem encarnar um aspecto nítido dessa verdade. Tanto quanto Shakespeare, Molière iniciou componto farsas e desenvolveu-se em um mestre da comédia intelectual. Aí termina a comparação: Molière, a despeito das ambigüuidades de Dom Juan, não procederia a escrever tragédias.

A vida interior de Shakespeare permanece desconhecida; a de Molière, ao que tudo indica, foi extremamente infeliz. Era uma figura melancólica e, segundo consta, um marido enganado, além de depender, totalmente, da proteção do Rei Sol, Luís XIV, que, felizmente, era dotado de apurado gosto literário. De um modo bastante complexo, Molière está sempre presente em suas comédias, e talvez ele fosse mais Alceste do que o próprio Alceste.

Depois de Shakespeare, os maiores dramaturgos ocidentais são Molière e Ibsen. Racine, Schiller, Strindberg e Pirandello têm os seus adeptos, e Racine, particularmente, é um artista exepcional, mas Molière parece ser a única alternativa válida a Shakespeare, o que não significa que alternativas a Shakespeare sejam necessárias. Tanto quanto a de Shakespeare, a personalidade de Molière é desconhecida. No mais das vezes, temos descrições de Molière, por parte de inimigos moralistas, o que não nos interessa. A auto-representação em Ensaio de Versalhes contém uma ironia heróica, e estabelece fascinante contraste com Hamlet ensaiando os atores, ou com Peter Quince dirigindo o indirigível Bottom.

De modo geral, é possível afirmar que as melhores comédias de Molière não transpõem a fronteira da tragicomédia porque o autor, em absoluto, não faz uso de personagens normativos (à exceção da presença implícita do deus mortal, Luís XIV). Até as figuras mais admiráveis por ele construídas são crivadas de defeitos; a mais admirável de todas é Alceste, o misantropo, tantas vezes malhado por críticos que deveriam ser mais avisados. Admito que Alceste careça tanto de humor quanto de amor, mas é um grande satirista, dotado de inteligência moral superior, apanhado em uma comédia de gênio, o gênio de Molière.

Molière não permite que seus personagens se desenvolvam, paradoxo no qual ele aprisiona Alceste. Torna-se possível perceber, mais uma vez, porque Voltaire, insensatamente, considerava Shakespeare um bárbaro: Hamlet é incapaz de dizer um único verso sem crescer enquanto personagem. Embora mais jovem, Molière foi contemporâneo de Pierre Corneille (1606-1684) e apoiou o início da carreira de Jean Racine (1639-1699). A corte de Luís XIV abrigou os três dramaturgos, os dois trágicos heróicos e o surpreendente cômico, cujas peças são inteiramente desvinvuladas da glória do Império Romano.

Um modo de apreender o gênio singular de Molière é ler um pequeno livro, sábio e sutil, escrito pelo notável ficcionista Louis Auchincloss. O estudo, intitulado La gloire: The Roman Empire of Corneille and Racine (1966), não faz menção a Molière, nem deveria fazê-lo, mas intriga-me a possibilidade de uma relação entre o impulso de autenticidade evidente em Alceste e a esplêndida definição proposta por Auchincloss para Gloire.

Gloire pode ser definida como o elevado ideal que o herói (e, mais raramente, a heroína) estabelece para si mesmo, e que ele acredita ser seu destino ou missão no mundo. Gloire deve ser defendida a todo custo, seja com a própria vida ou com a vida de terceiros, neste caso, não importa em que quantidade.

Não acredito que a busca de Alceste seja uma paródia a Corneille e Racine, mas uma redefinição cômica de Gloire, enquanto o Dom Juam de Molière exprime a transformação de Gloire em uma vertente erótica, que oscila, tropegamente, entre comédia, sátira e uma espécie de tragédia. Em 30 anos de teatro, Molière compôs apenas sete peças dignas de seu gênio: A escola de mulheres, As preciosas ridículas, O avarento, O burguês fidalgo e a grande tríade - Tartufo, Dom Juam e O misantropo.

Em que pese o apoio e a proteção do Rei Sol, Tartufo foi proibida e Dom Juan suspensa após 15 apresentações. A ansiedade de Shakespeare com respeito à autoridade, obviamente, levou-o a abandonar Tróilo e Créssida (que jamais foi encenada), mas e se as duas partes de Henrique IV, peças em que consta a grande figura de Falstaff, houvessem sido impedidas de ir à cena, e o mesmo ocorresse com Antôio e Cleópatra? Será que Shakespeare teria vingado?

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O presente artigo, aqui resumido, consta do livro Gênio, de Harold Bloom

2 comentários:

  1. Muito legal esse blog aqui...
    Vou seguir. Ah, eu comentei no post do dia 20 de Julho, caso não tenha visto...
    Abraço

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  2. Olá Lionel.. muito bom o artigo, foi você quem escreveu? Eu, particularmente, sou fã de Molière (com ele descobri minha paixão pelo Teatro, que hoje estou cursando na UFU). Você é professor de Teatro aonde? Abraços

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