quarta-feira, 29 de julho de 2009

Textos:
modelos de análise

Renata Pallotini


Qualquer tentativa de aproximação que se deva fazer, quer a nível de texto, quer a nível de espetáculo, do fenômeno teatral, sejam os estudiosos simples alunos, sejam profissionais ou velhos amantes da cena, ganhará se se tiver, como ponto de apoio - e sem caráter de obrigatoriedade, é claro - um modelo de análise.

Esse modelo pode ser mais ou menos complexo, mais ou menos exaustivo e, também, pode ser referido apenas ao texto, apenas ao espetáculo, ou a ambos. Igualmente, é claro, os modelos variam segundo a perspectiva de seu criador, conforme os seus critérios de prioridade. Alguns privilegiam o ângulo literário, outros o sociológico, outros ainda quase que só levam em conta os aspectos propriamente cênicos da obra. Há modelos que são larguíssimos e examinam detalhes tão insignificantes da obra que nos obrigam a indagar sobre a vida privada dos autores!

Com o intuito de colaborar para a siplificação do caminho do estudante da obra teatral, seja ele de que nível for, vão aqui dois modelos de análise de texto. Note-se, mais uma vez, que nenhum desses modelos é o verdadeiro, que variam segundo algumas perspectivas tomadas e que podem ser adaptados conforme as necessidades e circunstâncias.

1º MODELO

1 - Notícia sobre o autor da peça e sua obra.

2 - Definição do universo da peça; lugar e época em que se passa a ação, tempo de duração, número de personagens. Estilo, gênero, características principais.

3 - Ação principal. Idéia central. Unidade de ação; entrelaçamento das ações. Estrutura.

4 - Personagens: os principais. Sua importância, objetivos, vontade, consciência, grau de liberdade, determinações.

5 - Obstáculos enfrentados pelos personagens. Conflitos. Conflito principal. Conflitos internos dos principais personagens.

6 - Modos de caracterização dos personagens e sua eficácia.

7 - Situações dramáticas: definição e justificativa. Simbologia de E. Souriau.

8 - Adequação dos meios empregados pelo autor ao fim proposto. Tema da peça. Eficiência da comunicação.

Este modelo é simples, pouco extenso, propicia um trabalho leve, mas razoavelmente abrangente. Começa por situar o autor e sua época, além de dar notícia do restante de sua obra. No segunto item, o tempo de duração pode ser entendido como tempo de duração da fábula, dos acontecimentos da obra, e não do espetáculo propriamente dito. O estilo e o gênero da peça, conquanto sejam às vezes de difícil definição, trazem uma informação útil. Caberão aí determinações tais como: comédia, tragédia, drama, musical etc.; e, ainda, obra de teatro dramático ou aristotélico, teatro épico, teatro do absurdo, drama lírico etc.

A questão de definição de funções e situações dramáticas caberá apenas quando se tiver interesse pela teoria e pela simbologia de Souriau e de seus antecessores e seguidores. No entanto, sempre que esse conhecimento existir, o exame é últil e proveitoso para melhor conhecimento do universo da obra.

Há, finalmente, um último item, uma certa junção de elementos objetivos e subjetivos: pede-se ali a especificação do tema da peça. O tema da peça Romeu e Julieta, por exemplo, é o amor, o de Othelo é o ciúme, o de O pagador de promessas é o sincretismo religioso. Trata-se de determinar, com pouquíssimas palavras, sobre o que, afinal, trata a peça.

No entanto, neste último item, pede-se também um ajuizamento da adequação dos meios ao fim querido pelo autor, e, ainda, da eficiência da comunicação. É difícil dar esse juízo de forma exata, taxativa. Tudo, aí, dependeria do grau de empatia existente entre o leitor e o texto; embora se possam estudar com certa profundidade os elementos usados na feitura da obra, a adequação final, o resultado positivo ou negativo ficará, em grande parte, a critério subjetivo de quem analisa.

Pode-se montar um segundo modelo, maior, mais abrangente, para uso de pessoas que queiram aprofundar mais o assunto.

2º MODELO

1 - Fazer uma sinopse da peça: resumir os acontecimentos principais, tendo em vista a linha de ação dramátioca.

2 - Dar uma notícia sobre o autor, sua época, o restante de sua obra.

3 - Descrever o universo da peça; dizer o que a peça é:

a) colocando-se no tempo e no espaço; indicando época e lugar em que tenha sido escrita, época e lugar em que se passa a ação;

b) identificando o gênero a que pertence e seu estilo: drama, comédia, tragédia; teatro dramático, épico, absurdo, musical etc.;

c) destacando seu tema e idéia central; o primeiro sempre mais amplo do que o segundo elemento;

d) indicando personagens principais, explicando sua importância e o significado de suas ações.


4 - Estudar mais detidamente os personagens:

a) explicando a forma como são caracterizados;

b) ajuizando sobre a qualidade dessa caracterização;

c) indicando o grau de atividade e necessidade dos personagens em relação ao texto;

d) indicando o grau de liberdade ou determinação dos caracteres (personagem-sujeito ou personagem-objeto);

e) verificando se a maneira de construção dos personagens está de acordo com o gênero e estilo da peça.


5 - Estudar os conflitos:

a) identificando o conflito principal;

b) indicando os demais conflitos;

c) verificando a sua evolução, com variação quantitativa e qualitativa;

d) indicando as vontades e objetivos dos principais personagens e os obstáculos que encontram;

e) apontando os principais conflitos internos;

f) verificando se estão todos unificados (se se referem todos a uma idéia e a uma ação central);

g) verificando se existe uma contradição social, segundo a terminologia brechtiana, e dentro do espírito da peça.


6 - Estudar a ação dramática:

a) identificar a linha de ação principal;

b) identificar as ações secundárias;

c) verificar se existe unidade de ação;

d) verificar se, por opção do autor ou estilo da obra, esta se caracteriza pelo imobilismo, pela predominância do narrativo ou por descontinuidade de ações, e por quê.


7 - Identificar, quando houver interesse, as funções dramatúrgicas e seu relacionamento com os personagens, seundo a teoria de E. Souriaus:

a) indicando essas funções e seus portadores;

b) designando-as pelos seus símbolos;

c) definindo as principais situações dramáticas, a partir das funções dramatúrgicas.


8 - Analisar o conjunto,verificando se todos os elementos estão bem harmonizados, os problemas resolvidos e se o resultado é ou não satisfatório.


Começa-se a usar o modelo fazendo uma síntese da peça, o mais claramente possível; essas sínteses são sempre muito difíceis de fazer, mas, quando bem realizadas, ajudam enormemente nos demais passos da análise e, também, na apresentação que se faz, do assunto, a outras pessoas interessadas. A notícia histórica sobre o autor é também, embora possa parecer supérflua, fundamental. Quando se começa a descrever o universo da peça, já estamos entrando na sua conceituação, na sua colocação dentro de um estilo, uma época, uma escola teatral, quer para identificá-la a essa escola, quer para contrapô-la. Procura-se dar toda informação a respeito de tempo e espaço, seja o local e tempo em que foi escrita, seja aquele no qual se passa a ação.

Não há novidade na questão referente ao tema, mas sim à idéia central. Esta é, naturalmente, ligada ao tema, mas é, mais propriamente, a mensagem, o recado do autor. Shakespeare escreveu Romeu e Julieta para falar sobre amor, provavelmente, mas, também, provavelmente, sua idéia central seria: o ódio entre os velhos pode sacrificar o amor dos jovens. Ou, em Othelo, quereria escrever um drama sobre o ciúme, e sua idéia central seria uma frase que tem atravessado os tempos: o homem sempre mata aquilo que mais ama.

No item referente aos personagens não há grandes novidades. Interessante será, no entanto, ajuizar sobre a coerência entre a linha de criação do personagem e o estilo da peça em estudo: naturalmente, um drama realista psicológico pede muito maior aprofundamento no estudo das características íntimas do que, por exemplo, uma peça de teatro épico-didático. No item referente aos conflitos, toca-se pela primeira vez na contradição marxista; será conveniente verificar se a obra se adequa a esse espírito e se, neste caso, existe a indicação da contradição, e qual é.

Novamente não existirão intenções novas na questão da ação dramática, a não ser o fato de que se procura abrir espaço às peças que se caracterizam pelo estatismo, pela imobilidade, pelo uso de recursos líricos: peças que são quase-poemas ou quase-narrativas ditas pelos atores em cena, e que se mantêm e têm validade devido ao seu caráter literário e, digamos, encantatório. Igualmente se abre espaço para peças ditas de vanguarda ou de absurdo (ou que nome se queira dar às assemelhadas), as quais não brilham pela coerência dos rumos da ação, mas sim por outras razões (quando brilham...).

A referência a Souriau e sua notação valerá quando houver interesse específico pela obra e trabalho do tratadista francês; nesses casos, a indicação será útil e proveitosa sem dúvida. Por fim, pede-se novamente um ajuizamento que não pode deixar de ser algo subjetivo: saber se a peça redundou, é ou não satisfatória, e embora se faça esse pedido de apoio no modelo e referindo-se a ele, conterá uma certa dose de gosto pessoal e critério subjetivo.
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Artigo extraído do livro Dramaturgia - A construção do personagem. (Editora Ática, SP, 1989). O presente artigo está publicado na revista Cadernos de Teatro nº 153/1998, edição já esgotada.

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