sexta-feira, 10 de julho de 2009

Gênio:
uma definição pessoal

Harold Bloom

Evitei, neste livro, falar de gênios vivos, em parte para escapar à perturbação das provocações. Com meus botões, sou capaz de identificar na atualidade determinados escritores de gênio tangível: o ficcionista português José Saramago, a poeta canadense Anne Carson, o poeta ingês Geoffrey Hill e, pelo menos, meia dúzia de romancistas e poetas norte e latino-americanos (cujos nomes abstenho-me de mencionar).

Refletindo sobre o meu mosaico de uma centena de mentes criativas examplares, chego a uma definição pessoal, tentativa, de gênio literário. A questão do gênio foi preocupação constante de Ralph Waldo Emerson, que é a mente dos Estados Unidos, assim como Walt Whitman é o poeta e Henry James o ficcionista da nação (o dramaturgo ainda está por surgir). Para Emerson, gênio era o Deus interior, o eu de que fala o ensaísta em "Autoconfiança". Portanto, esse eu, segundo Emerson, não é constituído pela História, pela sociedade ou pela linguagem. É aborígene. Concordo, plenamente.

Shakespeare, gênio supremo, difere de seus contemporâneos, até mesmo de Christopher Marlowe e Ben Jonson. Cervantes destaca-se de Lope de Vega e de Calderón de la Barca. Algo em Shakespeare e Cervantes, assim como em Dante, Montaigne, Milton e Proust (para citar apenas alguns exemplos), permanece, nitidamente, acima da era em que viveram.

Uma originalidade arrebatadora é o componente crucial do gênio literário, mas essa mesma originalidade é sempre canônica, à medida que reconhece e interage com os precursores. Até mesmo Shakespeare firma uma aliança implícita com Chaucer, seu maior predecessor na invenção do humano.

Se gênio é o Deus interior, é lá que devo buscá-lo, no abismo do eu aborígene, entidade desconhecida de quese todos os "Explicadores" dos dias atuais, localizados nas nossas universidades intelectualmente deprimidas e nos engenhos tenebrosos e satânicos da mídia.

Emerson e o gnosticismo da Antiguidade concordam que o que há de melhor e primordial em cada um de nós não faz parte da Criação, da Natureza, ou do Não-Eu. Cada um de nós, presume-se, é capaz de identificar o que tem de melhor, mas como identificar o que nos é primordial?

Onde principia o eu? A resposta freudiana é que o ego faz um investimento em si mesmo, desse modo identificando um eu. Shakespeare chama de "eu mesmo" a noção que temos de identidade; mas quando Falstaff se torna Falstaff? Quando Shakespeare se torna Shakespeare? "A comédia dos erros" já é obra de gênio; no entanto, quem poderia prever "Noite de reis", baseando-se no advento da citada farsa, escrita no início da carreira de Shakespeare? Sempre reconhecemos um gênio por meio de um processo retroativo, mas como o gênio reconhece a si mesmo?

A resposta, desde a Antiguidade, é que existe um deus dentro de nós, e esse deus fala. Definições materialistas do conceito de gênio são inviáveis, motivo pelo qual a noção se encontra tão desacreditada na presente era, em que predominam as ideologias materialistas. A noção de gênio, necessariamente, remete ao transcendental e ao extraordinário, por assumir plena consciência de tais fatores. Consciência é o que define o gênio: Shakespeare, assim como o Hamlet por ele criado, em termos de consciência, excede a todos nós, vai além do nível mais elevado de consciência que somos capazes de alcançar sem o seu auxílio.

O gnosticismo, por definição, é um saber, e não um credo. Em Shakespeare, não temos um sábio, nem um crente, mas uma consciência tão vasta que não tem, em absoluto, concorrente: seja em Cervantes ou Montaigne, em Freud ou Wittgenstein. Aqueles que escolhem uma das religiões do mundo, ou por elas são escolhidos, frequentemente, postulam uma consciência cósmica à qual atribuem origens sobrenaturais. Mas a consciência shakespeariana, que transforma matéria em imaginação, não precisa violar a natureza. A arte shakespeariana é a própria natureza, e a consciência de Shakespeare mais parece produto do que produtora dessa arte.

Aos confins da mente, leva-nos o gênio shakespeariano: uma consciência formada por todas as consciências por ele imaginadas. Shakespeare permanecerá, ao que se presume para sempre, o maior exemplo da utilidade da literatura para a vida, isto é, contribuir com o processo de conscientização.

Embora a consciência de Shakespeare seja a mais vasta entre aquelas estudadas neste livro, todas as demais mentes criativas exemplares aqui incluídas contribuíram com a expansão da consciência dos respectivos leitores e ouvintes. As questões que devemos colocar a qualquer escritor são as seguintes: ele ou ela alarga a nossa consciência? E como isso se dá? Sugiro um teste simples, mas eficaz: fora o aspecto do entretenimento, a minha conscientização foi aguçada? Expandiu-se a minha consciência, tornou-se mais esclarecida? Se não, deparei-me com talento, e não com gênio. Aquilo que há de melhor e de primordial em mim não terá sido tocado.
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Trecho extraído do livro Gênio - os 100 autores mais criativos da história da literatura. Para os leitores que desconhecem a obra, informamos que dela consta o nosso maior escritor, Machado de Assis.

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