Albert Camus:
o absurdo no teatro
Há cerca de uma semana, colocamos aqui comentários sobre três peças de Albert Camus, prometendo para breve algumas considerações sobre a quarta e última, Estado de sítio, a mais extensa e complexa. Então, cumprimos agora a promessa feita. Mas antes, julgamos imperioso fazer a seguinte ressalva: por puro esquecimento, não dissemos que o artigo anterior, assim como este, não é de nossa autoria. Mas também não conseguimos descobrir quem é o autor dos mesmos. Em todo caso, tanto os artigos como o texto completo de Estado de sítio constam da coleção TEATRO VIVO, publicado pela Abril Cultural em 1977.
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A CIDADE SITIADA
Fazia já algum tempo que o ator Jean-Louis Barrault desejava encenar o Diário do ano da peste, de Daniel Defoe (1660-1731). Sabendo que Camus trabalhava num romance com o mesmo tema, desistiu do velho projeto e pediu ao escritor que elaborasse uma versão teatral de A peste. Camus aceitou o encargo, porém não se limitou a fazer uma simples transposição do romance para o palco. Na verdade, Estado de sítio apresenta uma abordagem distinta da cidade à mercê da epidemia - cujo simbolismo político é reforçado através da personagem Peste. "Como se trata de um ditador, essa apelação está correta", afirma o autor no prefácio de sua obra. Referia-se, porém, a qualquer ditador, de qualquer partido; por isso desaprovou o fato de, na representação parisiense, o ator que interpretava a Peste envergar um uniforme nazista.
Do ponto de vista da construção, misturando "todas as diferentes formas de expressão dramática, do monólogo lírico ao teatro coletivo", incluindo a farsa e o coro, a peça afasta-se muito do tom deliberadamente monótono que o autor conferiu à narrativa do romance.
Alguns personagens de A peste estão presentes em Estado de sítio, embora bastante modificadas: assim, na peça, Diogo, com sua vergonha de ser feliz sozinho, seu desejo de salvar a comunidade cuja desgraça considera sua também, aproxima-se do doutor Rieux, do jornalista Rambert, de Tarrou; o niilista Nada relembra o oportunista Cottard; o padre Cádiz, embora muito mais violento, assemelha-se ao jesuíta Paneloux.
No plano das idéias, alguns temas do romance são novamente abordados, com destaque maior, como o contraste entre a situação de medo e sacrifício imposta pela peste (em seu significado concreto e simbólico) e a liberdade inspirada pelos elementos naturais.
Na peça, esse contraste, sugerido pela esperança de que o vento do mar traga a salvação, explode na cena em que os mensageiros da Peste proclamam as novas ordens e a população tenta fugir, esbarrando nas portas que se fecham. No romance, a oposição é mais nítida quando o doutor Rieux e seu amigo Tarrou abandonam por um momento a cidade empesteada e vão banhar-se juntos no mar, renovando as forças para voltar à luta. Na opinião do crítico Philip Thody, o próprio Camus estaria tentando dessa forma recuperar suas energias para enfrentar outra espécie de epidemia: a das sufocantes abstrações a que se dedicavam, na época, os intelectuais europeus.
Tendo como modelo o auto sacramental espanhol, representado durante a Idade Média nos átrios das igrejas e que levava ao público alegorias das virtudes cristãs, a peça estreou no Teatro Marigny, de Paris, no dia 27 de outubro de 1948. O cenário é a cidade de Cádiz - uma escolha consciente por parte do autor, que desejava dessa forma expressar seu protesto contra a situação política da Espanha e o papel representado pela Igreja nesse país.
A obra compõe-se de um prólogo e três partes, bem delimitadas . O prólogo mostra os habitantes da Cádiz amedrontados com a aparição de um misterioso cometa que interpretam como um presságio de desgraças - a ordem oficial, contudo, é de que nada se tema, pois nada foi visto.
A primeira parte da obra coloca em cena a vida normal da cidade, com suas alegrias, suas preocupações, suas misérias, suas artimanhas. Ao surgir novamente o cometa, alguns homens caem mortos, num sinal evidente de que uma epidemia está se alastrando. O governo, entretanto, resolve tomar providências não no sentido de combater o mal, e sim de conter o pânico. Na realidade, a situação incomoda o governador apenas por privá-lo do prazer da caça - pois não lhe ocorre que a epidemia possa atingi-lo pessoalmente, e o destino do povo tem para ele menor importância do que um faisão abatido no campo.
O padre, intransigente, quase vitorioso com o que considera um castigo dos céus sobre a cidade pecadora, brutalente exorta o povo à confissão e à penitência. O juiz, terceiro poder reinante sobre Cádiz, sequer toma conhecimento da calamidade: continua calmamente lendo seus salmos, certo de que, sendo um homem justo, nada sofrerá. Para as três autoridades, a peste é assunto do povo e só lhes diz respeito na medida em que possa alterar seus próprios ritmos de vida.
Enquanto o alcaide anuncia à população as determinações oficiais para a emergência, entram em cena a Peste e sua Secretária, que serenamente explicam terem vindo reclamar para si o poder. Algumas irradiações emitidas pela Secretária e que instantaneamente provocam a morte bastam para convencer o governador e seus auxiliares a abdicar, deixando a população à mercê dos recém-chegados. Uma nova ordem é anunciada, um programa para impor a lógica e a disciplina, para punir os fracos - como os que amam - e recompensar os fortes - principalmente os delatores, ainda mais dignos de prêmios se entregarem pessoas de suas próprias famílias. Os mensageiros transmitem as normas e o povo tenta fugir para "o mar livre, a água que lava, o vento que liberta". Mas todas as tentativas esbarram nas pesadas portas da cidade que, uma a uma, se fecham sobre as esperanças de liberdade.
A população oprimida, igualada na mesma sorte, não se solidariza, não se apóia mutuamente. Ao contrário, assim como em A peste, constitui-se num bando desordenado de indivíduos voltados tão-somente para si mesmos, endurecidos em seu medo a ponto de negar qualquer tipo de ajuda aos companheiros.
Encerrada em seus próprios muros, emudecida por "um tampão embebido de vinagre", Cádiz é oficialmente declarada em estado de sítio. "A ridícula angústia da felicidade" é proibida, assim como "o rosto estúpido dos apaixonados, a contemplação egoísta das paisagens". Os valores mais caros são proscritos. Não deverá existir amor. E ninguém morrerá ao acaso, por emoção ou por descuido: a morte doravante será racional e burocratizada, obedecendo à rígida ordem de uma lista cuuidadosamente elaborada.
A segunda parte mostra os absurdos de uma burocracia levada ao extremo, criada para gerar o desentendimento entre as pessoas: por ser incompreendida - e temida - é que a nova ordem se mantém. O povo reclama - sempre individualmente, nunca como um grupo coeso -, mas seus argmentos carregados de emoção, levantados em nome dos direitos mais fundamentais, como o de morar sob um teto, são demolidos pelo raciocínio frio e cínico de Nada, o niilista bêbado que passa para o lado do tirano. Seu ponto de vista, extremamente negativo, afirma de maneira mais direta uma das idéias centrais de O homem revoltado: na ausência de outros valores, as ideologias totalitárias - como o nazismo - triunfam, com sua recusa à vida; se não existe mais nada em que se possa acreditar, tende-se a acreditar na destruição.
As reclamações da população atingem o auge com a entrada de Diogo, que a incita a gritar seu medo. Mas a resposta é apenas um lamento: "Éramos um povo e, agora, uma massa!". Sem poder contar com essa gente amedrontada, o jovem enfrenta a Peste sozinho e, em seguida, se refugia na casa do Juiz, que se recusa a dar-lhe abrigo: antes de mais nada, é necessário cumprir a lei, qalquer lei, pois todas elas são sagradas e indiscutíveis. A interferência de Diogo faz vir à tona antigos conflitos familiares: a mulher do Juiz desabafa mágoas passadas, o Juiz a critica por ter sido infiel. Os ódios afloram incontidos, a família perfeita revela-se uma fraude. Diogo foge, e está procurando convencer um barqueiro a levá-lo para longe quando surge a Secretária, que tenta sutilmente seduzi-lo. Indignado, Diogo a esbofeteia, para alegria do povo, que arranca as mordaças e finalmente grita numa só voz. A Secretária declara-se vencida: nada pode contra quem não a teme. É essa a regra do jogo: o poder cessa ao cessar o medo. O vento do mar, numa esperança de salvação, começa a soprar.
A última parte apresenta a derrota final da Peste, acossada pelo povo que Diogo incita à rebelião. O caderno da Secretária, contendo os nomes das pessoas destinadas à morte "racional", é arrebatado e passa de mão em mão, servindo de instrumento para pequenas vinganças pessoais. Nesse momento, é trazido o corpo de Vitória, a amada de Diogo, o qual propõe à Peste trocar sua vida pela da moça. O tirano contrapõe-lhe poupar os dois, para que vivam felizes em outro lugar, em troca do domínio absoluto sobre a cidade. Diogo recusa-se, reafirmando a posição que desde o início havia assumido: não se julga com o direito de sacrificar o bem-estar do povo para conquistar a sua felicidade pessoal. "O amor desta mulher é meu reino, meu, apenas. Posso fazer dele o que quiser. Mas a liberdade desses homens lhes pertence. Não posso dispor dela".
A Peste procura convencê-lo a não se sacrificar em nome de uma gente tão pequena e covarde, que nem sequer tem condições de apreciar com justiça tamanha nobreza de sentimentos. Vitória e as mulheres o censuram asperamente por preferir a morte ao amor. São inúteis os convites e as críticas: Diogo deixa-se morrer, ao mesmo tempo em que Nada anuncia o retorno dos antigos governantes, diferentes do tirano unicamente porque, "em lugar de fecharem a boca dos que gritam sua desgraça, fecham seus próprios ouvidos".
É possível que haja demasiadas personagens simbólicas em Estado de sítio, como considerava o crítico Bernard Simiot. É possível também que o totalitarismo representado pela Peste seja inverossímel, como julga Philip Thody. Mas esses possíveis defeitos são em muito atenuados pela força do texto, pelo desenvolvimento dramático, pela universalidade do tema.
Camus achava Estado de sítio o escrito seu que mais se parecia com ele. Realmente, o anseio de liberdade demonstrado pela cidade, a ternura de Diogo pelo povo comum, com todas as suas mesquinharias e suas acanhadas generosidades, a aversão a qualquer totalitarismo e aos programas niilistas são sentimentos presentes em toda a sua obra. E é por esses sentimentos que Albert Camus representa um dos escritores mais importantes do nosso século.
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segunda-feira, 27 de julho de 2009
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