quarta-feira, 29 de julho de 2009

Teatro/CRÍTICA

"Nathália B.S."

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Oportuno retrato de uma aberração

Lionel Fischer


Como todos sabemos, o mundo em que vivemos é pródigo em aberrações. Uma delas diz respeito à mulher: ela deve ser magra, se possível alta, evitar tanto o sol como comidas gordurosas, ter a pele alva como a de uma assombração e - requinte supremo - os cabelos negros como as asas da graúna (para os que pouco entendem de aves, talvez seja apropriado ressaltar que a dita graúna se insere nesta categoria).

E a protagonista do presente texto reúne todos esses predicados. Entretanto, a eles se somam outros: embora bem nascida, rica de berço, traz tatuadas em sua alma marcas que não consegue apagar: um pai querido, mas incestuoso, de cuja morte ela se sente culpada; uma mãe dominadora e fria, que mantém com sua sócia uma relação homossexual, sendo esta última (a sócia) uma mulher tão execrável e tirânica que atende pelo singelo nome de Orca. Obrigada por ambas a seguir a carreira de modelo, por um tempo consegue desfilar pelas passarelas sua beleza e charme. Mas logo esse desfile assume contornos trágicos e a personagem inicia uma progressiva e inexorável trajetória rumo à esquizofrenia.

Eis, em resumo, o enredo de "Nathália B. S.", em cartaz no Teatro do Jockey. Baseada no conto "Nathália no horizonte", de Jair Ferreira dos Santos, a peça leva a assinatura de Paulo Graça Couto, cabendo a direção a Henrique Tavares e a interpretação a Tarciana Saad.

Como não lemos a obra original, não temos condição de avaliá-la. Mas certamente é interessantíssima, a se julgar por sua adaptação para o palco. O texto de Paulo Graça Couto explicita com clareza e objetividade o dramático esfacelamento de uma personalidade, através de um recurso simples e funcional: a personagem está internada numa luxuosa clínica e alterna pensamentos, alucinações, conversas com seu psiquiatra - que jamais é visto - e confissões para a platéia.

Ao mesmo tempo ácido e lírico, impregnado de dores irremediáveis mas não isento de humor, o texto de Paulo Graça Couto atinge todos os objetivos a que se propõe: criar uma personagem otimamente estruturada e fazer uma denúncia mais do que pertinente, pois se nada for feito em contrário dentro de muito pouco tempo as mulheres se verão reduzidas a espectros, a elas cabendo nada mais do que promover alucinadas e solitárias orgias sobre as campas das próprias sepulturas.

Quanto à direção de Henriqe Tavares, esta consegue materializar na cena todos os conteúdos propostos pelo autor, valendo-se de marcações tão diversificadas como expressivas, imprescindíveis para o estabeleciento de uma mais do que necessária atmosfera de pesadelo. E cabe também ao encenador o mérito suplementar de haver extraído excelente atuação de Tarciana Saad.

Fomos informados de que Tarciana Saad começou sua carreia no Espírito Santo (provavelmente em Vitória) e já fez no Rio de Janeiro alguns trabalhos na televisão. Mas como a nenhum deles assistimos, tivemos com ela o primeiro contato. E este não poderia ter sido mais gratificante. Exibindo presença, força, ótima voz e excelente preparo corporal, afora notável capacidade de entrega, Tarciana Saad constitui-se numa verdadeira revelação e assim nada nos resta a não seer desejar que os sempre caprichosos deuses do teatro abençoem sua trajetória artística.

Na equipe técnica, Dóris Rollenberg responde por uma cenografia asséptica e inquietante, que contribui decisivamente para ressaltar ainda mais a solidão da personagem. A mesma eficiência se faz presente na expressiva iluminação de Aurélio de Simoni, que sempre consegue acompanhar os diversificados climas emocionais em jogo. Quanto ao figurino de Ney Madeira, ainda que belíssimo, ele nos parece inadequado para o contexto, já que dificilmente uma paciente internada numa tal clínica estaria vestida como se fosse desfilar seus encantos pelas passarelas da mundanidade sofisticada.

NATHÁLIA B. S. - Texto de Paulo Graça Couto. Direção de Henrique Tavares. Com Tarciana Saad. Teatro do Jockei. Terças e quartas, 21h.

Um comentário:

  1. Ótima crítica, também assisti ontem a estréia e devo concordar com o expressado aqui. Eu ressaltaria alguns momentos-chave da peça, onde não apenas a protagonista, mas igualmente luz, figurino, música, etc., criam um movimento e uma ambiência poderosíssimas, somado à contemporaneidade do texto. Embora não seja o presente comentário o espaço para falar detalhadamente de tais momentos, observo o quão importante é essa amálgama de elementos díspares (inclusive o figurino!) excelentemente resolvida.
    Por outra parte, acredito que a recente morte de Michael Jackson tenha grande conexão com o tema central da peça. Quem conheçe a letra de "Morphine" de M.J. saberá do que estou falando, e do que o diretor Henrique Tavares está falando ao dizer "Cordeiro de Deus, que tirais o pecado do mundo, tende piedade de nós! Natalia B. S. está na moda". Pior que é.

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