segunda-feira, 20 de julho de 2009

Da criação do ator

Anatol Rosenfeld


É evidente - embora pareça suscitar por vezes dúvidas - que o teatro, mesmo quando recorre à literatura dramática como seu substrato fundamental, não pode ser reduzido à literatura, visto ser uma arte de expressão peculiar. No espetáculo já não é a palavra que constitui e medeia o mundo imaginário. É agora, em essência, o ator que, como condição real da personagem fictícia, constitui através dela o mundo imaginário e, como parte deste mundo, a palavra. Contudo, não se trata apenas de uma inversão ontológica. Concomitantemente, o espetáculo, como obra específica, por mais que se ressalte a importância da literatura no teatro literário, passa a ter valor cênico-estético quando a palavra funciona no espaço, visualmente, através do jogo dos atores. É característico, tanto no sentido ontológico como estético, que os gestos geralmente precedem as palavras correspondentes (ainda que se trate apenas de uma fração de segundos). E a presença sensível daquele que ouve o outro, sem falar, é de grande importância, já que a reação do interlocutor mudo, no palco, se transmite de certo modo à platéia.

O ator, em cuja criação para maior simplicidade se considera incluído o trabalho múltiplo do diretor, "preenche" com dados sensíveis, audiovisuais, o que o contexto verbal da peça dramática necessariamente deixa na relativa abstração das universalias conceituais. Esse preenchimento é um trabalho eminentemente inventivo, visto os dois textos da peça - diálogos e rubricas - deixarem em cada instante larga margem à escolha dos dados sensíveis. A palavra pode celebrar, nunca concretizar o ser individual e singular, somente dado a atos que incluem a percepção imediata. Cada oração abre assim um extenso campo de possibilidades para a plena concretização e atualização audivisuais do texto. Com efeito, a personagem nele dada não é um ser humano integral, não o é no pleno sentido sensível; é, no melhor dos casos, apenas o complexo do que é literariamente apreensível. O jogo fisionômico, a melodia sonora, o timbre da voz, o crescendo e diminuendo, accelerando e ritardando da fala e dos gestos, a vitalidade e tensão, os silêncios - tudo quanto distingue a pessoa existente não pode ser definido pela palavra. O texto dramático somente projeta, através da seqüência unidimensional dos significados, o sistema de coordenadas psicofísico, cuja conversão para a tridimensionalidade cabe à cena e ao ator. Parece que foi Coquelin quem disse que uma só palavra deve ser capaz de provocar lágrimas e risos pela mera inflexão da voz do ator.

Assim, a encarnação da palavra pelo ator e pela cena parece ser a "realização" do mundo imaginário projetado pelo texto e, com isso, de certo modo, uma "traição" do jogo imaginativo. No entanto, é óbvio que apenas aos atores e à cena (como mera materialidade) cabe ser real. As personagens e o mundo em que se situam são irreais, imaginários; são "seres puramente intencionais", como ocorre em qualquer outra arte; com a diferença de que a realidade mediadora das pessoas fictícias, em vez de consistir em cores, mármore, sucessão de sons ou sinais tipográficos, é agora a de pessoas; daí surgir a impressão da "realização do texto". Entretanto, trata-se apenas da atualização e concretização plenas do mundo intencional da peça, sem que em nada lhe seja diminuída sua categoria de imaginação. Se não fosse assim, o espetáculo deixaria de ser arte. Em toda obra artística se associa ao plano real, de um "ser em si", e fundado nele, outro plano, de ordem imaginária, de um "ser apenas para nós", plano esse apreendido pelo apreciador adequado. Assim, na música se funde, na mente do apreciador, com a sucessão físico-acústica dos sons, perfeitamente real, o plano da "duração", isto é, de sínteses e totalidades significativas, cujo ser é irreal e cuja "audição interna" exige uma ação específica do apreciador adequado. O que parece ser um ato único e realmente como tal se impõe é na verdade um tecido complexo de atos que ultrapassam de longe a mera percepção.

Posto isso, é supérfluo acentuar que as personagens do espetáculo, apesar de sua concretização sensível maior do que a do texto, conservam plenamente o caráter de personagens fictícias, em comparação às reais: maior coerência (mesmo quando incoerentes), mais exemplaridade (mesmo quando banais), maior significação e transparência, e maior riqueza - não por ser a personagem mais rica do que a pessoa e sim por causa da concentração, seleção, densidade e estilização do contexto imaginário que reúne os fios dispersos e esfarrapados da realidade num padrão firme e consistente.

Assim, o fenômeno básico do teatro, a metamorfose do ator em personagem, nunca passa de "representação". O gesto e a voz são reais, são dos atores; mas o que revelam é irreal. O desempenho é real, a ação desempenhada é irreal. Por mais séria que esta seja, a própria seriedade é desempenhada, tendo, pois, caráter lúdico. Visto, porém, que os significados - o mundo revelado pelo desempenho - são aquilo a que se dirige principalmente o raio da intenção do público, ocorre normalmente o fenômeno do aparente "desaparecimento" do ator, que - se não for mau artista, ou por outra, ator brechtiano - se torna "invisível", "transparente" à personagem. Esta, no sentido exato do termo, não é "percebida" (já que é mera ficção); é apreendida por atos espontâneos da imaginação dos espectadores, que, em virtude desses mesmos atos que visam às personagens e não aos atores, passam a atribuir àquelas e não a estes os gestos e as palavras reais. Assim, a entidade constitutiva dos gestos e palavras passa a ser a personagem "fundada" pelo ator.

De qualquer modo, por mais íntimas que sejam a fusão e identificação entre a realidade sensível do ator e a irrealidade imaginária da personagem, a metamorfose nunca ultrapassa o plano simbólico. O fato de seres humanos (em vez de cores ou outros materiais) encarnarem seres humanos é um dado básico da antropologia, estudado por inúmeros pensadores, desde George Mead e Huizinga a Plessner e Sartre. O ator apenas executa de forma exemplar e radical o que é característica fundamental do homem: desempenhar papéis no palco do mundo, da vida social. Que a máscara faz a persona como o hábito o monge é assinalado de mil maneiras pela língua, e G. van der Leeuw afirma que "a filosofia dos trajes é a filosofia do homem. No traje reside toda a antropologia". Quem perde seu traje, ficando desnudo, perde sua face, seu Ego. O ator, ao disfarçar-se, revela a essência do homem: a distância em face de si mesmo que lhe permite desempenhar os papéis de outros seres humanos. O homem - disse Mead - tem de "sair" de si para chegar a si mesmo, para adiquirir um Eu próprio. E ele o faz tomando o lugar do "outro". Segundo Nicolai Hartmann, é somente no expandir-se e autoperder-se que a pessoa se encontra a si mesma, e somente na identificação consigo mesmo ela é uma estrutura capaz de expansão, isto é, um ser espiritual. A autoconsciência pressupõe não-identidade e identidade ao mesmo tempo; a identificação pressupõe a distância. No momento em que o homem se descobre, ele está além de si mesmo. A pessoa se desdobra, se reflete, se fragmenta; é livre, não coincide consigo.

A capacidade de cindir-se é exercida pelo homem nas suas atividades especializadas cotidianas, ao isolar de si mesmo o "pedaço" envolvido na ocupação. No ator, contudo, esse fragmento abrange todo o corpo e toda a vida interior, que se tornam materiais de sua arte; ele se cinde, a si, em si mesmo, mas permanece, ainda assim, aquém da fissura. Trata-se de uma entrega controlada, o "pequeno olho vigilante" permanece aberto e fiscaliza a criação imaginária que é identificação, não-identidade.

A extrema complexidade dos problemas envolvidos desafia qualquer sondagem. Nem o equipamento conceitual usado nos famosos escritos de Diderot ou Coquelin, nem o dos seus adversários "emocionais", está à altura das dificuldades. Em termos lógicos, os gestos, a mímica e o jogo vocal, através dos quais o ator exprime a emoção, nunca chegam a ser sinais de estados ou atos internos reais, isto é, "sintomas" que anunciem tais estados e atos. Permanecem expressão das imagens desses processos íntimos, isto é, símbolos. Têm, portanto, caráter "semântico" e não sintomático. É precisamente dessa intercalação do mundo simbólico e imaginário que permite ao homem distanciar-se de si mesmo, conquistar a autoconsciência e, desse modo, desempenhar papéis, dar forma à sua atuação.

Todavia, as expressões físicas e vocais - ao contrário das palavras que são quase sempre símbolos - costumam ser, pelo menos na vida real, sinais imediatos da realidade (psíquica). Daí a grande força expressiva dos gestos e inflexões da voz. Essa força não se perde no desempenho cênico, embora o sinal passe agora a funcionar como símbolo. E essa intensidade expressiva retroage sobre o próprio ator. Verifica-se uma indução psico-física, a mútua intensificação dos movientos físicos e psíquicos desencadeada pela imaginação, a ponto de a imagem da emoção se revestir de toda a aparência da emoção real. A imagem assume formalmente os aspectos dinâmicos da realidade, sem, contudo, adquirir seu "peso material". Cabe, mesmo ao ator emocional, manter-se no limiar da "realização", sem nunca ultrapassá-lo. Se o ultrapassasse, o desempenho passaria a ser auto-expressão, sintoma de emoções reais. Tornar-se-ia, portanto, mera reação involuntária, "instintiva". Como tal, não possuiria espontaneidade real, ativa, não pertenceria ao reino da arte e do espírito. O desempenho como articulação simbólica ou linguagem, como obra, enfim, tem estrutura teleológica, nexo que é alheio aos movimentos que são sinais. Estes traem o que os símbolos comunicam. Enquanto estes articulam e formulam a emoção, os sinais fazem parte dela. Mas talvez não se deva negar o momento exepcional em que o grande ator, pelo menos em determinada fase de elaboração do papel, supera a dicotomia e alcança um ponto em que a liberdade e necessidade coincidem.

Seja como for, o desempenho do ator é uma criação imaginária, espiritual, como a de todo artista. Dentro do sistema de coordenadas esboçado pelo dramaturgo abre-se-lhe um vasto campo de elaboração ficcional para articular e compor formas simbólicas dos gestos e inflexões vocais, para ritmizar, selecionar, estilizar e distribuir os traços e acentos psicofísicos, cuja melodia integral constituirá a personagem.
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Este artigo, aqui um pouco resumido, foi extraído do livro Prismas do Teatro, de autoria de Anatol Rosenfeld. (Editora Perspectiva)

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