quarta-feira, 11 de fevereiro de 2009

Ator de teatro:
um ser em extinção?

Lionel Fischer

Como se sabe, os cursos de interpretação teatral proliferam pela cidade - tanto os oficiais, ministrados em universidades ou escolas profissionalizantes, como os que existem em entidades particulares, tais como clubes, academias de balé, sobrados, alpendres, supostas ou verdadeiras casas de cultura etc. E se proliferam, é de se supor que sejam freqüentados, o que tornaria legítima a suposição de que muita gente deseja se tornar um profissional do palco. Entretanto, a maioria dos jovens que se inscrevem em cursos de teatro (bons ou conduzidos por picaretas) não têm o palco como objetivo, e sim disputar uma vaga na telinha da Globo.
Tal preferência, segundo se apregoa, tem a motivá-la a crença de que não é possível sobreviver de teatro. Assim, nada mais natural do que cada um tentar ganhar o honesto pão de cada um de seus dias em uma empresa sólida, se possível através de um contrato - não sendo isto viável, cachês também são bem-vindos, desde que razoáveis e, de preferência, não muito espaçados. Portanto, uma vez resolvido o quesito sobrevivência, aí sim esses jovens poderiam eventualmente se envolver em um projeto teatral, já que nenhuma ansiedade relativa à bilheteria os acossaria. Seriam, digamos, diletantes do palco, quando sua agenda televisiva assim o permitisse - mas são poucos, realmente muito poucos os que, uma vez tendo adquirido alguma notoriedade na televisão, se dispõem a fazer teatro. Mas, prossigamos.

Razão
Se tal premissa for mesmo verdadeira - o teatro já não oferece aos atores condições mínimas de sobreviver através de seu ofício - torna-se imperioso perguntar: qual a razão de ainda existir uma atividade que, contrariamente a todas as outras, não possibilita a quem a exerce usufruir seus frutos? Sim, porque ainda devem existir atores que sonham exclusivamente com o palco; que almejam interpretar os grandes papéis da dramaturgia universal, tanto do passado como do presente; que julgam que têm algo de importante a compartilhar a cada noite com a platéia; que ainda acreditam no teatro como veículo ideal para os homens discutirem suas questões essenciais e que não estão dispostos a tentar fazer uma carreira na TV.
Pois bem: o que devem fazer esses atores? Renunciar à sua vocação e disputar freneticamente um lugar ao sol - ou à sombra, depende do ponto de vista - na referida emissora televisiva ou em qualquer outra? Ou, quem sabe por julgarem essa empreitada inacessível, tentar passar em um concurso público qualquer e, nas horas vagas, quando der e se der, fazer uma peça de ocasião? Curiosa e trágica equação, não resta a menor dúvida. E ainda mais curiosa e trágica porque só se aplica à função do ator de teatro. Senão, vejamos.

Linguagens
Um jovem médico, em início de carreira, por exemplo, não reúne condições para alugar ou comprar um espaço para nele estabelecer sua clínica. Então, sua alternativa será a de dar plantão em vários hospitais, ambulatórios etc. até juntar um capital que lhe permita, ainda que em sociedade com outros colegas, materializar seu sonho. Mas em todos os lugares em que exercer sua profissão, este jovem médico agirá da mesma forma, utilizará os mesmos procedimentos, lançará mão dos conhecimentos adquiridos sem nenhuma necessidade de adaptá-los aos múltiplos espaços e diferenciados pacientes. No entanto, com o ator isso é completamente inviável, posto que cada veículo possui linguagens e formas de produção completamente diferentes.
No teatro, o ator ensaia exaustivamente seu papel, experimenta caminhos, estabelece cumplicidades, tem a possibilidade de encarar eventuais erros como promessas de um acerto futuro. Enfim, participa de um processo criativo que pressupõe um mínimo de calma e o máximo de confiança na equipe que integra. Mas quando participa de um folhetim televisivo nada disso é possível, posto que a televisão não comporta nenhuma hesitação, o que é perfeitamente compreensível - afinal, como perder tempo com sutilezas ou requintes se, em média, 40 cenas precisam ser gravadas por dia? Inserido, portanto, em um contexto que prioriza a velocidade em detrimento de tudo que possa retardá-la, ao ator só resta colocar em prática aquilo que mais se escuta dos diretores de novela: “Joga fora o texto, joga fora o texto...”.

Massacre
É claro que, dependendo do papel e da experiência do intérprete, ele talvez consiga, ao menos eventualmente, “jogar fora o texto” com algum charme ou credibilidade. Mas isso só acontece muito raramente, pois quase sempre o volume de trabalho, ao menos para os protagonistas, é tão massacrante que, mais do que viver realmente as cenas, ele no fundo vai se “livrando” de cada uma delas - é muito comum se ouvir em um estúdio global a frase: “Bem, essa já foi. Qual é a próxima?”. E aí todos saem consultando seus roteiros a fim de reativar a memória, pois logo se apresenta uma outra cena que precisa ser gravada o mais rápido possível, e uma outra, e mais outra...E quando o expediente termina, os intérpretes vão embora exaustos e aliviados, sobretudo quando todo o plano de gravação daquele dia foi concluído - em caso contrário, as cenas pendentes terão que ser gravadas em uma outra ocasião, somando-se àquelas já programadas, quando então a jornada poderá assumir contornos de pesadelo.
Isto posto, me parece indiscutível que um ator de teatro só pode obter êxito na TV se conseguir se adaptar às exigências do veículo, o que significa uma completa negação de todas as premissas que podem levar a um bom desempenho no palco. Mas e este, então? Fica entregue a quem? Aos excluídos do sistema que ainda não conseguiram botar seu rosto na telinha mágica? Aos figurões televisivos que, eventualmente, sentem uma certa nostalgia dos palcos? Aos que teimam em resistir? Mas resistir como, se a já mencionada crença, que praticamente se afigura como um dogma - ator de teatro não consegue sobreviver do teatro - parece não deixar margem a qualquer alternativa?

Saída
É bem provável que os deuses do teatro não me tenham abençoado a ponto de fazer de mim alguém capaz de vislumbrar uma saída inquestionável para tão grave questão. Mas certamente serão benevolentes com esta breve e modesta tentativa de abordá-la. Vamos a ela.
No nº 170 dos Cadernos de Teatro, escrevi um artigo (Alternativas de produção para a cena carioca), também publicado no jornal Tribuna da Imprensa, em que procurei demonstrar que se pode fazer um ótimo espetáculo sem que para tanto sejam indispensáveis produções faustosas. E, dentre os argumentos de que me vali, defendi a imperiosa necessidade de se ter um texto capaz de tocar o espectador, levando-o a perceber que algumas de suas questões essenciais estão sendo ali materializadas através do jogo teatral. Ou seja: se há um encontro entre quem faz e quem assiste, então o teatro passa a fazer sentido - para ambas as partes. Mas se os que estão em cena nada têm a oferecer de significativo, tudo então acaba se resumindo ao mero lazer, ao entretenimento inconseqüente, uma espécie de couvert de inevitáveis pizzas que virão a seguir.
Em resumo: a profissão de ator teatral poderá acabar sim, um dia. Mas isso só acontecerá se os intérpretes renunciarem definitivamente à grandeza da missão que lhes cabe em uma sociedade, que é a de refletir sobre ela no plano da fantasia, sem intermediários e no tempo presente. E se um dia ficar claro que o ator já não é mais - ou não quer ser - porta-voz de nada que interesse profundamente àquele que paga para assisti-lo, estaremos diante não apenas da extinção de um ofício, mas certamente do próprio teatro. Roguemos, pois, aos deuses, que não nos contemplem com tal calamidade.
(Artigo publicado na revista Cadernos de Teatro nº 171)

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