quarta-feira, 18 de fevereiro de 2009

T c h e c o v :

Despojamento e Invenção

por Isaac Bernat

A minha primeira experiência como ator foi exatamente através de um texto do autor russo Anton Tchecov (1860-1904). Em 1980, durante um espetáculo de final de curso com a brilhante atriz e professora Gilda Guilhon, no Centro Cultural Candido Mendes, apresentei juntamente com outro aluno, o diretor Cláudio Torres Gonzaga, a peça O Trágico à Força. Cláudio fazia o papel do atormentado marido Tolkatchov, cabendo a mim o do seu desatento amigo, Murashkhin. Naquele momento em que começava a descobrir o amor pelo teatro, Tchecov foi um aliado fundamental. Escrita em 1890, esta peça faz parte de um grupo de pequenas peças que possibilitaram ao autor um exercício inicial em direção à construção de uma inovadora e definitiva dramaturgia, consolidada em textos como As Três Irmãs, A Gaivota e O Jardim das Cerejeiras, entre outros.
Em 1998, durante o desenvolvimento do meu projeto de Mestrado em Teatro na Uni-Rio, “O exercício criativo do ator em monólogos de Tchecov”[i], pedi ao escritor Ricardo Hofstetter uma nova tradução para essa peça, já que na primeira montagem utilizamos uma tradução portuguesa. Entendi que seria necessário uma versão mais afinada com o nosso vocabulário e modo de falar. O novo título passou a ser Um Papel Trágico e acredito que esta tradução é mais adequada para o ator e para o público brasileiro.

Curiosidade
Assim, em agosto de 1998 estreei no Museu do Telephone, no Rio de Janeiro, a peça A Besta do Marido. A montagem reunia duas peças curtas de Tchecov: Um Pape Trágico e Os Males do Fumo, também traduzida por Hofstetter. Os Males do Fumo teve direção de David Herman e Um Papel Trágico foi dirigida por Claudio Torres Gonzaga. O cenário e os figurinos
foram criados por Susana Lacevitz e a iluminação ficou a cargo de Aurélio de Simoni. No elenco apenas eu, o que fez o crítico Lionel Fischer tecer o bem-humorado comentário: “O primeiro dado curioso desta montagem é que, salvo engano, é a primeira vez no mundo em que o número de diretores excede o de intérpretes .ii]
A montagem de A Besta do Marido procurou, a partir de dois diretores com formação diversa, pesquisar os limites, interferências e diferenças de suas concepções no trabalho do ator, e cotejá-los com os problemas encontrados em montagens anteriores de Tchecov realizadas no Brasil. Para tanto foram realizadas entrevistas com profissionais de teatro, bem como uma vasta pesquisa a partir de críticas e matérias jornalísticas sobre montagens de Tchecov no Brasil.
Em Os Males do Fumo procuramos trabalhar a partir do método de ações físicas criado por Stanislavski e posteriormente desenvolvido por seus seguidores, como Maria Knebel, Tovstonogov, Vakhtangov, Boris E. Zakhava e Grigori V. Kristi. Já em Um Papel Trágico, o que se buscou foi abordar Tchecov através de uma linguagem não realista, tanto no que diz respeito à encenação como a linha de interpretação. Neste aspecto buscamos inspiração principalmente no trabalho de ator desenvolvido por Dario Fo, fortemente influenciado pela linguagem da commedia dell’arte.

Desabafo
Neste artigo trataremos especificamente da montagem de Um Papel Trágico. A estrutura dramática da peça é muito próxima do monólogo. Apesar de serem dois personagens em cena, depois de um breve começo onde há um curto diálogo, o personagem Tolkatchov realiza um longo desabafo, praticamente até os últimos minutos do texto. Por outro lado, o desatento Murashkhin não está interessado no discurso do amigo. Percebi então, juntamente com o diretor Cláudio Torres Gonzaga, que seria possível transformar o texto num monólogo, onde prevaleceria a figura do contador de história, até porque Tolkatchov vem a Murashkhin contar a sua história, ou melhor, desabafar o seu drama.
Contudo, não alteraria o texto, pois não se tratava de uma adaptação e sim de experimentar que possibilidades tem um autor como Tchecov, tão relacionado ao realismo, quando submetido a uma linguagem não realista. Queria contar esta história com recursos épicos e para isto teria que buscar um distanciamento do ator em relação aos personagens. Assim, teria em cena a figura do ator/narrador e dos personagens. Sabia que entre os problemas a serem resolvidos estava o do estabelecimento de um código que possibilitasse o entendimento das transições entre um personagem e outro. As questões relacionadas a cenário, figurino, utilização ou não de objetos, bem como à construção dos personagens se apresentariam no processo de ensaio.

Dario Fo
O fato de Dario Fo utilizar elementos da commedia dell’arte para contar suas histórias, onde aparecem vários personagens ao mesmo tempo, nos aproximou bastante da linguagem por ele desenvolvida, pois Um Papel Trágico é uma peça com dois personagens e no nosso caso o mesmo ator faria os dois. Além disso, outros personagens aparecem no relato da tragicômica
história contada por Tolkathov a seu amigo Murashkhin, e também intuímos a possibilidade de dar-lhes vida física durante o relato de Tolkatchov.
A proposta de buscar uma linguagem não realista em contrapartida à montagem de Os Males do Fumo também confirmava a forte influência de Dario Fo em nosso trabalho. Este trecho onde Dario Fo cita Molière traduz o espírito com que entramos nesta empreitada: “Um ator de talento não precisa de elementos sobressalentes para sustentá-lo, nem de uma cenografia complexa às suas costas, tampouco de efeitos sonoros ou de uma sonoplastia particular. Se ele é sensível, cumpre bem o seu ofício e o texto é de qualidade, são suficientes sua voz e corpo para fazer-nos sentir que está amanhecendo, chovendo, ventando, que há sol, que está quente ou acontece uma tempestade. Não é preciso recorrer a maquinarias, efeitos de luz, chapas metálicas sacudidas para reproduzir o som de uma tempestade ou um tambor com areia para imitar o vento e a chuva” (Molière detestava todos os truques usados para o “parecer de verdade”.)[iii]

Sinais
Meu intuito com a montagem de Um Papel Trágico era buscar muito mais a propriedade que o teatro tem de produzir imagens através da alusão, ou seja, procurava uma interpretação não ilusionista. Queria com esta montagem fomentar uma verdade cênica através de uma desmaterialização. Tinha em mente um espetáculo que delegasse ao espectador a função de completar o que o trabalho do ator iria sugerir com o seu aparato expressivo: o corpo, a máscara facial e a voz. Com este objetivo resolvemos que só usaríamos como cenário apenas uma cadeira. O caminho seria, então, construir através de sinais um código de representação que se constituísse numa síntese de todo este trabalho. E com isto reforçar a característica épica desta montagem. Como diz Dario Fo:
“A síntese é a invenção que impõe a fantasia e a intuição ao espectador. É a maneira de conceber a representação da grande tradição épica popular: limar todo o supérfluo, toda descrição entediante”.[iv]
Paralelamente a esta pesquisa de linguagem, queria explorar ao máximo todo o potencial cômico de Tchecov. Queria extrair todo o humor da situação vivida pelo personagem Tolkatchov e por seu amigo, que não esperava por esta visita fora de hora. Tchekov, em carta a Alekséi Suvorin, editor do jornal onde o autor escrevia em São Petersburgo, refere-se da seguinte forma a esta peça: “Ontem à noite, lembrei-me de ter prometido a Varlamov que escreveria um
vaudeville para ele. Hoje escrevi e já enviei”.[v]

Farsa
Em baixo do título da tradução inglesa de Um Papel Trágico[vi] aparece a expressão “farsa em um ato”. Não tinha, portanto, a menor intenção de fugir à natureza específica deste texto, muito pelo contrário, queria antes buscar ao máximo as possibilidades cômicas desta peça. Soma-se a isso o fato de Tchecov ter escrito esta peça de encomenda para o ator cômico Constantin Varlamov, do Teatro Alexandrinski, de São Petersburgo.
Durante os ensaios percebi que o ator, ao trabalhar com o cômico, necessita alcançar um distanciamento em relação àquilo que está contando. É só pensar num bom contador de piada. De início o comediante já estabelece que aquilo que está contando é uma piada e nos lança um desafio - onde isto vai levar? Segundo Henri Bergson, o riso está intimamente ligado ao aspecto racional do ser humano:
“O maior inimigo do riso é a emoção (...) Portanto, o cômico exige algo como certa anestesia momentânea do coração para produzir todo o seu efeito. Ele se destina à inteligência pura”.[vii] Logo, procuramos de um certo modo aliviar o sofrimento do ator ao contar esta história, pois só assim a platéia teria condições de se divertir com aquela situação. Seria necessário que o ator conseguisse apresentar o drama vivido por Tolkatchov e a perplexidade do ouvinte Murashkhin. Este triângulo composto pelo ator e os dois personagens precisaria de muita clareza e as transições seriam fundamentais para tornar o espetáculo inteligível.

Inspiração
A figura do stand-up comedian também inspirou-me bastante. Assisti a alguns vídeos antigos de comediantes americanos como Cid Ceasar e Karl Heiner, entre outros, que de certa forma influenciaram-me principalmente no que diz respeito ao tom de comédia, expressões faciais e concisão de gestos. A linguagem de desenho animado e seu descompromisso absoluto com o realismo, onde um personagem pode – por exemplo – ser esmagado por um trem e não morrer, também foi uma influência marcante.
Através da montagem de Um Papel Trágico percebi que um dos grandes desafios colocados para o ator ao trabalhar num texto de Tchecov consiste muito mais em ampliar as possibilidades e influências do que fechar o foco numa única direção. Além disso, o fato de Tchekov ter sido um contista brilhante não pode passar desapercebido. A detalhista construção dos personagens, a descrição dos ambientes e a exposição do estado emocional dos personagens vêm do contato de Tchekov com a estrutura do conto.

Possibilidades
Apesar de Um Papel Trágico ser praticamente uma transcrição dos diálogos do conto Um Entre Tantos, segundo David Magarshack[viii] Tchecov fez algumas alterações para preservar certas exigências da cena. O autor considerava que o que poderia ser publicado sem uma preocupação crítica no conto, deveria ser melhor avaliado no teatro. A fusão da comédia e do drama, o delicado limite entre um e outro também precisam ser encontrados e medidos. A combinação de elementos realistas, impressionistas e até farsescos numa mesma peça criam um terreno sutil e rico em possibilidades para o ator, o diretor e o público.
Não existe uma forma única de transpor para o palco a dramaturgia de Tchecov. A pluralidade de estímulos e vivências apoiadas no processo criativo do ator podem ser considerados o início para um trabalho honesto. A única exigência que percebo em Tchecov reside na sinceridade dos artistas envolvidos com o projeto. O grau de humanidade implícito na sua dramaturgia mostrou-me que qualquer que seja o caminho, linguagem ou linha de interpretação, uma pergunta estará sempre presente: isto que faço é verdadeiro? ou estou fingindo que é verdadeiro? E a verdade aí não tem que estar submetida ao real, mas ao possível de ser construído com verdade no espaço cênico.

Passarinho
Um bom exemplo ocorreu na cena final de nossa montagem de Um Papel Trágico. Quando Tolkatchov, antes de perder o controle e gritar “Tenho sede de sangue”, engolia o passarinho imaginário, a platéia via e acreditava no que estava acontecendo. Apesar desta cena não estar no texto, foi aceita pelo público, porque poderia acontecer nas circunstâncias vividas pelo personagem.
Para concluir, gostaria de saudar a iniciativa dos CADERNOS DE TEATRO de publicar esta tradução de Um Papel Trágico, realizada por Hofstteter. Nesses últimos dois anos, tivemos um verdadeiro “boom” de montagens de Tchecov no Rio de Janeiro e em São Paulo. Acredito que este interesse esteja relacionado a um salutar retorno ao ator e a palavra teatral. Durante os anos 80 estivemos diante da exaltação, pela mídia principalmente, da figura do encenador soberano, que na maioria das vezes fugia dos grandes autores, pois na verdade procurava ele próprio ser um autor absoluto. Com isso, houve um excesso de espetáculos herméticos, onde a forma e a estética ofuscavam o ator e o texto. Uma geração de atores assim não pode travar o contato com os grandes autores.
Desta forma, acredito que a busca por Tchecov é uma tentativa de reconciliação com a palavra e a possibilidade dos atores serem realmente seres criadores a partir dos personagens sabiamente construídos por ele. Este mesmo processo ocorreu com Shakespeare e Molière, por exemplo, em anos anteriores.

Problemas
Enfim, trabalhar com esta peça de Tchecov pode ser um ótimo exercício para profissionais e estudantes, que terão que se defrontar com os problemas que a própria estrutura deste texto apresenta. O ator que for trabalhar Tolkatchov tem uma grande quantidade de texto e precisa equilibrar este turbilhão de imagens e ações com pausas e respirações tão necessárias em Tchekov. Por outro lado, o ator que for interpretar Murashkhin precisa construir ações paralelas para preencher este imenso tempo em que Tolkatchov desabafa suas mazelas familiares. E, principalmente, precisa saber ouvir, o que parece ser um problema não só dos atores, mas também do homem moderno de uma forma geral.
Este texto é ainda um grande exercício para a criação de um personagem. O próprio Tchecov, ao falar para os atores do Teatro de Arte de Moscou, resume o que pode ser um sábio caminho nesta direção: “Os atores devem criar um personagem que seja totalmente diferente do personagem criado pelo autor e quando este dois personagens – o do autor e o do ator – se fundirem num só terão realizado um trabalho artístico”.[ix]

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Isaac Bernat é ator, diretor, professor de Interpretação da CAL (Casa das Artes de Laranjeiras) e Mestre em Teatro pela Uni-Rio.

1. Dissertação de Mestrado em Teatro, defendida em 20 de abril de 1999, na Uni-Rio. Orientada pelo Professor Doutor em Letras vernáculas pela UERJ, Victor Hugo Adler Pereira.
2. Lionel Fischer. “Peças curtas de Tchecov em excelentes versões”. Tribuna da Imprensa, RJ, 13 de agosto de 1998.
3. Dario Fo. “Manual Mínimo do Ator”, São Paulo, Senac, 1998, p. 120.
4. Dario Fo, p. 175.
5. Anton Tchecov, Carta 45, “A.P.Tchecov: cartas para uma poética”, São Paulo, Edusp, 1995.
6. Anton Tchecov, “A tragic Role”, p.87, Oxford, Oxford University Press, 1984.
7. Henri bergson, “O Riso”, p.12-13. Rio de Janeiro, Jahar, 1980.
8. David Magarshack. P.62. New York, Hill and Wang, 1960.
9. “You must create a character which is entirely different from the character created by the author and when two characters - the author’s and the actor’s - merge into one, you will get a work of art”. David Magarshack. P.152.


[i] Dissertação de Mestrado em Teatro, defendida em 20 de Abril de 1999, na Uni-Rio. Orientada pelo Professor Doutor em Letras Vernáculas pela UERJ, Victor Hugo Adler Pereira.
[ii] Lionel Fischer. “Peças curtas de Tchekov em excelentes versões”. A Tribuna da Imprensa , RJ, 13 de agosto de 1998.
[iii] Dario Fo. “ Manual Mínimo do Ator”, São Paulo, Senac, 1998, p.120.
[iv] Dario Fo, p.175
[v]. Anton Tchekov, Carta 45, ”A. P. Tchekhov: cartas para uma poética”, São Paulo, Edusp, 1995.
[vi] Anton Tchekov, “A Tragic Role”, p.87, Oxford, Oxford University Press, 1984.
[vii] Henri Bergson, “ O Riso”, p. 12-13. Rio de Janeiro, Zahar, 1980.
[viii] David Magarshack. P.62. New York, Hill and Wang, 1960.
[ix] “You must create a character which is entirely different from the character created by the author and when these two characters - the author’s and the actor’s - merge into one , you will get a work of art”. David Margarshack. P.152

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