No palco elisabetano
LUIZ SUGIMOTO
No século XVI, quando a Londres oficial – com seu conselho administrativo, centros comerciais e financeiros, escolas, igrejas e residências – ainda estava organizada dentro das antigas muralhas erigidas pelo Império Romano, os dramaturgos e atores do teatro elisabetano (período renascentista inglês) se estabeleceram entre os paupérrimos e outros renegados em áreas marginais chamadas de Liberties. Nelas ficavam sanatórios, leprosários, prisões e prostíbulos.
“Das margens de Londres, o teatro elisabetano foi contaminando a sociedade e acabou por se transformar em uma das vozes de maior expressão da cultura no século XVI. Seu apogeu, que se deu com Shakespeare, Marlowe e outros dramaturgos, nunca foi reeditado em épocas posteriores”, conta Flávia Domitila Costa Morais, que apresentou tese de doutorado sobre o tema no Instituto de Artes (IA) da Unicamp, orientada pelo professor João Francisco Duarte Júnior.
Em seu estudo, a autora avalia a participação do teatro renascentista inglês e seus dramaturgos na transição de uma visão de mundo marcada pela episteme medieval para uma cosmovisão renascentista. “Eu apresento este teatro como uma forma de ativismo cultural que visava superar o clima estritamente pietista e sacralizado da Idade Média, contribuindo para a emersão do homem moderno”.
Flávia Morais é formada em Língua e Literatura de Língua Inglesa e seu mestrado, na Faculdade de Educação (FE) da Unicamp, resultou no livro Literatura vitoriana e educação moralizante (Editora Alínea). Agora, em seu estudo de doutorado, a fim de situar o teatro elisabetano no contexto histórico, a pesquisadora teve antes que abordar a essencialidade do teatro, voltando-se para os modelos greco-romanos na sociedade da oralidade, e repassar aspectos importantes do teatro medieval inglês.
“Para falar do Renascimento, geralmente nos reportamos à Antiguidade Clássica, pois houve realmente um empréstimo dos modelos greco-romanos. Na Inglaterra, porém, o Renascimento adquiriu certas peculiaridades, fazendo com que o teatro elisabetano devesse mais ao teatro medieval inglês do que propriamente a uma imitação do modelo teatral greco-romano. Contudo, é preciso lembrar que tanto o teatro grego como o medieval têm origem no culto religioso”, justifica a autora.
Flávia Morais lembra que, no teatro grego, o herói era sempre conduzido pela vontade dos deuses, podendo-se supor a plateia como mera espectadora. No teatro medieval, as personagens eram figuras bíblicas e, embora a comunidade participasse ativamente da montagem dos espetáculos, prevalecia certo distanciamento com relação à vida cotidiana. “É no teatro secularizado moderno que encontraremos personagens que vivem situações em que se refletem as virtudes e fraquezas do ser humano”.
Mistérios e milagres
No capítulo O mito da idade média e o teatro, a autora recorre a estudiosos medievalistas para desmistificar o senso comum de que aquela foi a “idade das trevas”, apenas de doenças e fome, sob o feudalismo como o pior dos regimes. “Na verdade, o teatro medieval era uma explosão de vida e alegria. Descrevo os três tipos básicos de suas peças na Inglaterra: os ciclos dos mistérios e milagres (que duravam semanas como no ciclo de Corpus Christi), as peças de moralidade e os interlúdios”.
A pesquisadora explica que, na Inglaterra ainda católica, as missas eram rezadas em latim e os fiéis que, em sua maioria, nada entendiam, compareciam somente por devoção. “Não se sabe quem teve a ideia de dramatizar alguns trechos da Bíblia no meio da liturgia. Como as igrejas começaram a ficar lotadas, essas pequenas encenações passaram a ser feitas do lado de fora, em praças e feiras. Surgiram assim os ciclos dos mistérios e milagres”.
Segundo Flávia Morais, o fato de padres representarem figuras como as de Cristo, de Deus e mesmo do diabo era considerado blasfematório pela Igreja. Isto fez com que as peças passassem a ser produzidas por guildas – corporações de artesãos ou ofícios. “Cada episódio ficava ao encargo de uma guilda, como no caso da guilda dos Water-Leaders and Drawers in Dee, formada por trabalhadores responsáveis por retirar e drenar as águas do rio Dee, e que preparava o episódio do Dilúvio”.
A autora acrescenta que os ciclos eram apresentados em carroças alegóricas, que passavam em procissão durante dias ou semanas, representando desde a Criação até o Juízo Final, diante do público. Já em algumas cidades, a apresentação se dava em vários palcos fixos e o público é que se deslocava para assistir a todo o ciclo. “De uma forma ou de outra, tratava-se da genuína expressão do teatro de rua, com participação de toda a comunidade na atuação ou na organização destes eventos”.
Aos ciclos dos mistérios e milagres sucederam-se as peças de moralidades, conforme observa Flávia Morais. “Os dramaturgos deixaram de se inspirar na vida de santos ou em trechos das Escrituras para, no palco, apresentarem personagens que personificavam os vícios e virtudes em uma contenda para ver quem influenciaria mais as escolhas do protagonista, geralmente chamado de Everyman ou Mankind, que representava a humanidade”.
Os interlúdios, explica a pesquisadora, apareceram já durante a reforma protestante, tendo Henrique VIII como um dos apreciadores destas pequenas peças encenadas na corte e também por artistas itinerantes. “O interlúdio apresentava ensinamentos morais, mas a temática incluía a luxúria e uma linguagem mais obscena. Creio que foi a ponte que ligou o teatro medieval ao elisabetano, pois possuía características de ambos, embora já com sua atenção mais voltada para o homem e suas escolhas”.
Mundo moderno
Flávia Morais afirma que o teatro elisabetano, portanto, herdou atributos de uma expressão teatral fortemente vinculada ao sagrado e de modalidades já secularizadas, o que veio a gerar grande embate com a igreja reformada. Ao mesmo tempo, abriu as portas para o mundo moderno. “Este teatro nasceu à margem da sociedade, no espaço de maior liberdade de expressão que eram as Liberties, e foi se desenvolvendo paralelamente a acontecimentos históricos cruciais – e prováveis causas do próprio Renascimento – como as descobertas marítimas e a invenção da prensa de Gutenberg que democratizaria a cultura literária”.
Entretanto, ainda era um teatro para ver e ouvir, e não para ler, como atenta a autora da tese. “A peça escrita não era considerada literatura e os próprios dramaturgos não viam sentido em publicá-la. Ainda assim, os espetáculos atraíam quem tinha contato maior com as letras e a arte, além da população em geral. A visualização dos acontecimentos por meio da encenação dos atores proporcionava forte identificação do público com este teatro”.
De acordo com a pesquisadora, o público interagia com os atores de forma bastante livre, levado por forças conscientes e inconscientes, o que dava maior significado ao que estava assistindo. “O filme Shakespeare apaixonado, apesar de ser uma ficção, retrata bem o ambiente do teatro elisabetano. Quando Julieta pergunta ‘onde está Romeu?’, alguém da plateia responde: ‘Está aí, morto ao seu lado’. Era muito interessante; uma verdadeira entrega”.
Igualmente interessante, na opinião de Flávia Morais, foi o hábito de ir ao teatro que se criou na sociedade, apesar dos esforços dos puritanos – bem mais radicais do que os anglicanos quanto às reformas na igreja – para desestimular o gosto por este entretenimento. Com maioria no Parlamento, os puritanos proibiam a publicação de propagandas dos espetáculos. “Para convocar a população, as companhias tocavam uma trombeta e hasteavam uma bandeira no alto das casas teatrais: era branca para comédia, preta para tragédia e vermelha para peça histórica. As casas estavam sempre cheias”.
Poder de Shakespeare
Shakespeare parece ser o único nome a vir à mente quando se menciona o teatro elisabetano, mas a autora destaca na pesquisa outros três importantes dramaturgos do período: Christopher Marlowe, que poderia ter alcançado o mesmo status de Shakespeare, não fosse sua morte prematura; Ben Jonson, cuja obra é bastante extensa; e Thomas Kyd, também falecido precocemente. “A tese tem 330 páginas e, no capítulo mais longo, abordo dramaturgos, companhias e atores deste período. Analiso como ganhavam a vida e como começaram a se organizar profissionalmente, além da sua relação com a realeza e a nobreza.”
Obviamente, Flávia Morais dá destaque especial ao paradigma shakespeariano, mostrando como ele foi construído e quais os temas e imagens recorrentes na obra do bardo de Stratford. “Em sua genialidade, Shakespeare usou de uma força inovadora excepcional no momento em que a língua inglesa moderna estava em processo de formação; usou uma linguagem que, em larga medida, foi responsável pela enorme identidade do público com o teatro da época”.
A pesquisadora observa que mesmo nas tragédias como Hamlet e Otelo, Shakespeare sempre proporcionava um momento de alívio para a plateia, incluindo uma situação cômica. “Shakespeare fazia uso de verso e prosa, agradando tanto aos letrados, que iam ouvir mostras da maestria dos autores, como ao povo, que conseguia compreender e participar do espetáculo”.
Citando Harold Bloom, que escreveu Shakespeare – A invenção do humano, a autora endossa a afirmação de que o dramaturgo inglês, em amplo sentido, foi grande responsável pela formação do homem moderno, lançando, no seu teatro, as bases para a compreensão das potencialidades humanas. “É quando vemos a emergência do sujeito autônomo a fazer suas escolhas, consciente ou em processo de conscientização da sua força. O Renascimento é o período da recolocação do homem no centro de significado da história”.
Flávia Morais recorda outro escritor, o polonês Jan Kott, autor de Shakespeare, nosso contemporâneo, para sustentar que sempre é possível fazer uma releitura da obra shakespeariana, adaptando-a à contemporaneidade. “É um teatro que se mostrou capaz de se adequar a diversos tempos. Acredito, comungando com a convicção de inúmeros estudiosos, que Shakespeare nunca será silenciado”.
________________________
terça-feira, 25 de junho de 2013
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário