sábado, 15 de junho de 2013

Virginia Woolf e suas mulheres: "Mrs. Dalloway" e o filme "As Horas"



          O romance Mrs. Dalloway, escrito por Virginia Woolf e publicado originalmente em 1925, foi traduzido em língua portuguesa no Brasil por Mário Quintana. Em comum entre o poeta e a romancista há o fascínio pelo cotidiano, pelas coisas miúdas e que, sem nenhuma importância aparente, descortinam-se ante nossos olhos em profundidade e beleza, levando-nos à reflexão.

          Não quero, entretanto, falar de Mário Quintana, e sim de Virginia Woolf, especialmente a sua obra supracitada, Mrs. Dalloway. Vale destacar que Quintana preferiu manter a forma inglesa para “Senhora”, e descobrimos o motivo no decorrer da leitura: o ambiente londrino, com o Big Ben a marcar o ritmo das horas, referências ao Império Britânico e descrições das ruas e praças da capital inglesa, além de reiteradas alusões a Shakespeare, explicam o anglicismo conservado no título.

Análise das personagens do romance "Mrs. Dalloway"


          O romance, conforme o título sugere, é protagonizado por uma mulher. Mas uma mulher que se esconde sob o sobrenome do marido: Mrs. Dalloway. E é só quando iniciamos a leitura que descobrimos que ela se chama Clarissa. Era, antes de casar-se, Miss Parry (filha de Mr. Parry), mas agora, neste dia em que prepara uma festa, ela é Mrs. Dalloway (esposa de Mr. Dalloway). Donde percebemos, obliquamente, a crítica de Virginia Woolf a este patriarcalismo: a mulher não é definida a partir de si, do seu eu, mas a partir do outro, sempre o homem. Ela deixa de ser “propriedade” do pai e passa a pertencer ao marido. Apesar disto, Clarissa sente-se feliz em ter se casado com Richard Dalloway, afinal, conforme ela acreditava, ele lhe concedia a liberdade necessária ao matrimônio (p.11). Isto não impedia, porém, que ocasionalmente Clarissa sentisse uma esquisita sensação de invisibilidade em relação a ele (p.14).

          Clarissa Dalloway amava mais Londres que ao campo, assim como Virginia Woolf, que no momento em que escrevia o livro achava-se em Richmond por ordens médicas. O livro trata de um único dia na vida de Clarissa, dia este em que ela está especialmente feliz porque prepara uma festa. Mas ela está também desassossegada, já que se preocupa em agradar às pessoas. Mrs. Dalloway resolve então que ela mesma irá comprar as flores.

          No caminho para a floricultura ela encontra uma mulher que acompanha um homem aparentemente perturbado. Trata-se da italiana Lucrezia e seu marido, o inglês Septimus, Mr. e Mrs. Smith. Lucrezia acha que os homens são egoístas, já que podem ser felizes sem as mulheres. O contrário, infelizmente para ela, não ocorre, pois não consegue ser feliz sem seu homem.

          Clarissa depara-se também com Mrs. Dempster, para quem o casamento, com marido e filhos, não passa de um sacrifício para a mulher. É por isso que Mrs. Dempster tem pena de outra transeunte, a jovem Maisie Johnson. Ao vê-la passar no parque, Mrs. Dempster prevê seu futuro tão óbvio e maçante de dona-de-casa. Ao chegar em casa com as flores, Clarissa encontra um bilhete de seu esposo, Richard, informando-lhe que fora jantar na casa de Lady Bruton, e sente-se desapontada por não ter sido convidada.

          Mrs. Dalloway começa então a pensar na sua juventude e lembra-se de Sally Seton. Recorda o amor que sentia por ela, e que era diferente do amor que sentia pelos homens, porque desinteressado. “Não havia sido amor, afinal de contas?” indaga-se ela, sem muita certeza (p. 34, 35). Clarissa queria protegê-la. Mas ambas sabiam que seriam tragicamente separadas pelo casamento convencional, com homens.

          Eis que inesperadamente chega Peter Walsh, outro ex-amor, vindo da Índia para resolver problemas pessoais na Inglaterra. O reencontro deixa-a perturbada, e somos levados a crer que seu amor por Peter não terminou, ou ao menos não estava bem-resolvido. Peter é reiteradamente descrito como sensível, característica geralmente atribuída ao feminino. Seria isto o que o tornava atraente para Clarissa? Dezenas de páginas adiante temos a confirmação: as mulheres apreciavam-no por perceberem que ele não era “demasiado masculino” (p.150).

           Quando Clarissa convida Peter para sua festa de logo mais, sente-se desconcertada, pois sabe que ele a considera “frívola; cabeça-oca; uma simples tagarela” (p.45). Ou, como ele já lhe dissera um dia no passado, fazendo-a chorar, uma “perfeita dona-de-casa” (p.11). Clarissa, tão zelosa dos bons costumes, irrita-se com a falta de etiqueta costumeira de Peter. Ao sair da casa dos Dalloway, Peter pensa em como Clarissa não mudara: “a sua voz, sendo voz de dona-de-casa, timbra em não impor-se” (p. 51). Ele, que sempre fora um aventureiro, amante de livros, de teoria, da ciência, da filosofia e das viagens, não era homem para a rotina sufocante de um casamento. Percorrendo as ruas londrinas ele observa a burguesia, “doutores e homens de negócios”, além de “mulheres modernas”, pontuais, “a caminho de seus afazeres” (p.56). Peter não pode deixar de observar as mudanças nos hábitos femininos no pós-guerra: maquiagem em público, namoros sem compromisso ou sentimento profundo, casamentos tardios e por interesse.

          Aos olhos de Peter, Clarissa e sua classe, a burguesia, eram por demais mundanos. Lembra-se de quando ela, na juventude, mostrara-se preconceituosa em relação a uma mulher que tivera um filho antes do casamento, numa atitude tipicamente burguesa. Sob a perspectiva da burguesia inglesa, porém, Peter não passava de um fracassado, e isto às vezes o incomodava, embora não almejasse mudar de vida.

           Dormitando num banco da praça, Peter, em êxtase, vê uma gigantesca figura de “forma feminina”, o que nos permite analisar sua visão sobre a mulher. Tal imagem, em sua vidência, “derrama caridade, compreensão, absolvição, e, subitamente alarmado, confunde a piedade do seu gesto com uma dança endemoniada” (p.58). Agora é Peter quem observa Lucrezia e Septimus Smith, na praça. Neste momento, com seu Septimus a delirar, Lucrezia, também vivendo sua situação-limite, pergunta-se por que devia continuar sofrendo por seu marido. O casamento, para ela, implicou na renúncia à sua família, sua casa e sua terra, já que ela deixara a Itália para viver com Septimus na Inglaterra.

           Ao recordar o passado com Clarissa, Peter obrigatoriamente lembra-se também de Sally Seton, terceira ponta do triângulo amoroso juvenil. Ao contrário da convencional Clarissa, Sally sempre fora ousada, selvagem e romântica. Ela era defensora apaixonada dos direitos das mulheres nas reuniões sociais. Sally instigava Peter a raptar Clarissa e livrá-la do casamento com “perfeitos gentlmen” como Hugh Whitbread ou Richard Dalloway, pois isso faria dela “uma simples dama, incentivando apenas o seu mundanismo” (p.75). Nisto Peter e Sally eram muito parecidos.

           Ele começa então a comparar Sally com Clarissa, e o contraste é evidente:

          O mais óbvio que se poderia dizer dela [Clarissa] é que era mundana; preocupava-se demasiado com a posição, a sociedade, os êxitos de salão – o que era verdade num sentido; ela própria o reconhecia (sempre se podia fazer com que confessasse as coisas, era leal), (p.75)

          Após refletir sobre a admiração de Clarissa pelas “velhas condessas encanecidas”, Peter continua:


          Em tudo isso havia muito de [Mr.] Dalloway, naturalmente; muito do espírito das classes governantes – bem público, reformas tarifárias, Império Britânico –, que se apodera dela, como acontece. Embora duas vezes mais inteligente que o marido, via as coisas pelos olhos deste – uma das tragédias da vida conjugal. (p.76)

          Nem Sally nem Peter conseguiram “salvar” Clarissa da nulidade que o casamento impunha às mulheres. O casamento, segundo eles, poda, inibe o potencial feminino, e faz da mulher um espectro, uma sombra do homem. Em outras palavras: ratifica a posição do feminino num mundo de estruturas masculinas. Esta era ainda a realidade das mulheres no mundo de Mrs. Dalloway, ainda que os avanços do pós-guerra já se fizessem observáveis.

          A festa que Clarissa planejava com tanto esmero não era, no final das contas, dela, mas do marido. Afinal, Clarissa, segundo ela mesma, sentia-se “na obrigação de sentar-se à mesa e esforçar-se para atender a algum velho tonto que poderia ser útil a Dalloway” (p.77). Como Richard trafegava com desenvoltura na elite política inglesa, manter contatos era vital para o marido, e Mrs. Dalloway só se sentiria útil se fosse útil para o seu esposo. E quando não estava se dedicando a Richard, Clarissa voltava-se para a filha única do casal, Elizabeth.

          Tal submissão da mulher diante da família, especialmente do marido, pode ser notada também na relação entre Lady Bradshaw e seu esposo, o respeitadíssimo médico psiquiatra Sir William Bradshaw:

          Quinze anos antes [Mrs. Bradshaw] havia-se submetido. Nada que se notasse, afinal; nenhuma cena, nenhum ruído; apenas o moroso afundamento, o lento naufrágio da sua vontade na dele. Doce era o seu sorriso, atenta a sua submissão...

          (...) Em outros tempos, há muito, ela pescara salmão livremente; agora, pronta a atender à sede de domínio, de poder, que ardia untuosamente nos olhos do marido, ela diminuía-se, continha-se, recolhia-se, apagava-se, apenas aparecia. (p. 98, 99)

          Nas palavras da narradora, Lady Bradshaw “convertera-se” ao seu marido. Sorridentemente – como era de se esperar da mulher ideal – colocara-se sob seu jugo.

          E Septimus Smith, levado por sua esposa, Lucrezia, a Sir Bradshaw para tratar de sua loucura, desde então odiara ao médico como a personificação da Razão e da Civilização, que todos julgavam faltar a Septimus. O método do Dr. Bradshaw para determinar se alguém é ou não normal era relativamente simples: “seu senso da medida – o seu, se eram homens, o de Lady Bradshaw, se eram mulheres (ela bordava, fazia trabalhos de agulha, passava quatro noites por semana em casa com o filho)” (p.97). Em outras palavras, o padrão burguês masculino e masculinizante determinaria a normalidade. Nesta perspectiva, nem Peter Walsh nem Sally Seton se encaixariam no padrão da normalidade de Sir Bradshaw. Ele porque não era suficientemente masculino; ela porque questionava a organização falocêntrica do mundo. Já Lucrezia e Mrs. Dalloway seriam consideradas normais por Sir Bradshaw, pois ambas agiam como se esperava das mulheres casadas, ou seja, com subordinação. O caso de Septimus fora detectado como gravemente anormal, uma vez que ele se recusava a continuar no seu emprego de boa remuneração, o que claramente desafiava a ordem burguesa/masculina.

          Outro tipo que se deixou dominar pelas estruturas masculinizantes da sociedade burguesa da Inglaterra foi Lady Bruton, a que convidara Richard Dalloway e Hugh Whitbread para um jantar em sua casa, causando ciúmes em Mrs. Dalloway. Mas Lady Bruton se diferenciava em relação às outras mulheres que aceitavam a falocracia. Afinal, ela falava “como um homem”: interessava-se por política e se chateava com mulheres que dificultavam a carreira de seus maridos. Orgulhava-se de seus ancestrais: almirantes, militares, administradores, “gente de ação”, todos, logicamente, homens (p.108). Eventualmente Lady Bruton esforçava-se por manter uma “certa camaradagem feminina” ao perguntar, por exemplo, sobre as esposas de seus convidados (p.103).

          Lady Bruton não era introspectiva (característica feminina), mas sincera e simples. Pesava-lhe, no entanto, o fato de não conseguir se desvencilhar do que considerava ser a “futilidade da sua condição feminina”. Por isso recorreu à ajuda de Mr. Dalloway e Mr. Whitbread. Precisava escrever uma carta ao Times, e achava que só os homens poderiam fazê-lo de tal forma que merecesse ser publicada, pois eles “sabem como encarar as coisas; sabem como dizê-las; de modo que se Richard a aconselhasse, e Hugh escrevesse por ela, estava certa de fazer alguma coisa às direitas” (p.106-107). Escrever como mulher, pois, seria escrever “errado” naquelas circunstâncias, já que o público (jornal) é esfera masculina. A única escrita feminina aceitável seria a de diários íntimos e memórias (esfera do privado).

           Há ainda outra personagem feminina intrigante em Mrs. Dalloway: Miss Kilman, uma desvalida por quem Clarissa teve a condescendência de oferecer emprego como professora de história de Elizabeth. A palavra mais adequada é mesmo “condescendência”, pois Clarissa tivera de transigir para consigo mesma, uma vez que não gostava de tipos como o de Miss Kilman. O que era recíproco, pois Miss Kilman também desprezava “damas inúteis” como Mrs. Dalloway.

          Por saber-se feia, sem atrativos para os homens, Miss Kilman odiava Clarissa e tentava subjugar a carne. Juntamente com Elizabeth entregava-se a orações fervorosas, o que desagradava ainda mais a Clarissa. Nutria, inconfessadamente, uma paixão por Elizabeth, mas não se atrevia a externá-la.

          Além de lecionar história, Miss Kilman emprestava a Elizabeth livros de direito, política e medicina, já que “todas as profissões estavam franqueadas às mulheres da sua geração” (p.126). A professora não aceitava ser sustentada por um homem, e, apesar de não ser ficcionista, parece ter atendido à exortação de Virginia Woolf, de conseguir para si “dinheiro e um teto todo seu” (WOOLF, 1985, p.08). Mesmo sentindo-se infeliz e feia, Miss Kilman, por ter diploma, via-se como uma “mulher que abrira caminho no mundo” (p.128). E por isso aconselhou Elizabeth a fazer o mesmo. Mas, para desespero de Miss Kilman, Elizabeth parecia puxar à mãe.

          Não podemos deixar de chamar a atenção para o fato de que Miss Kilman conseguiu o que a autora, Virginia Woolf, não conseguiu: entrar na universidade, no mundo acadêmico. Woolf nunca se contentou em ser autodidata. Ela relata como foi censurada por ter caminhado na grama de uma universidade, privilégio restrito a estudantes e fellows que, “para protegerem sua grama, há trezentos anos seguidos sendo aparada, eles haviam feito [seu] peixinho esconder-se” (1985, p.10). Isto ajuda a explicar a ironia com que a autora trata a ciência – então sob monopólio masculino – no seu romance: “pois sejamos científicos, antes de tudo científicos”. Esta frase aparece três vezes, nas páginas 24, 68 e 139. O diploma de Miss Kilman, porém, não garantiu sua aceitação integral na sociedade masculinizante, o que fica patente no desprezo que Mrs. Dalloway tinha por ela.

          Naquela tarde havia espaço para uma tragédia. Septimus, que não queria ver o Dr. Holmes, personificação da Razão e da Civilização, juntamente com Sir Bradshaw, comete suicídio atirando-se da janela. Ele não queria (como Virginia Woolf) a paz do campo para tratar sua loucura. Quando Mrs. Dalloway é informada do suicídio por Lady Bradshaw, sente-se incomodada que estejam comentando coisas tristes em sua festa. Não há nenhum lamento íntimo pela vida humana. A ambulância que leva o corpo de Septimus é um “triunfo da civilização”, segundo Peter Walsh, que se dirige à festa de Mrs. Dalloway.

          Clarissa estava angustiada porque nem Richard nem Peter entendiam sua necessidade de dar recepções, numa oferenda à vida. O que tais homens estranhavam, pragmáticos que eram, era a falta (ao menos aparente) de finalidade das festas de Clarissa (p.118). Mrs. Dalloway só deixa suas preocupações de lado após a chegada de Sally, que estava de passagem por Londres e resolveu fazer uma surpresa a Clarissa em sua festa. Sally deixara de pertencer à família da pai, Seton, e agora carregava o sobrenome do marido, Rosseter. E Sally já não é mais a ousada mulher de outrora, pois também ela “convertera-se” a seu marido:


          Porque Clarissa, dizia Sally, era, no fundo, uma esnobe; tinha-se de reconhecê-lo: uma esnobe. E era o que as separava, estava certa disso. Clarissa pensava que ela havia casado mal, pois o seu marido – orgulhava-se disso – era filho de um mineiro. Cada pêni que possuíam, ele o ganhara com o seu trabalho. (p.182)

          O que Sally não conseguia perceber é que sua previsão se cumprira: ela e Clarissa foram separadas pelo casamento. Mas estavam juntas no papel de esposas submissas, anuladas diante de seus respectivos maridos.


Um contraponto com o filme "As Horas"

          O filme As Horas, do diretor Stephen Daldry, lançado em 2002 nos Estados Unidos, é muito oportuno para essa análise que me atrevo a fazer, pois permite pensar sobre a recepção do livro Mrs. Dalloway, de Virginia Woolf. A trama acontece com personagens femininas em três lugares e tempos diferentes: em Richmond, Inglaterra, 1923, Virginia Woolf,(Nicole Kidman), obrigada a recuperar-se de suas crises, escreve o romance Mrs. Dalloway; em Los Angeles, EUA, 1951, Laura (Julianne Moore) lê o romance de Virginia e toma coragem para fazer o que deseja, mesmo sabendo que pode ser repreendida por isso; e em Nova York, EUA, 2001, Clarissa Vaughn (Meryl Streep) planeja uma festa para comemorar um prêmio literário recebido por seu amigo e ex-amor, o filho de Laura, Richard (Ed Harris).

          A primeira coisa que nos salta aos olhos são os efeitos do casamento na vida de cada uma delas. Apesar de amar seu esposo, Leonard (Stephen Dillane), Virginia sente-se sufocada pelo excesso de proteção deste para com ela. Laura, ao contrário da personagem Clarissa Dalloway do livro de Virginia, recusa-se a ser uma “perfeita dona-de-casa”: não ama seu marido e gostaria de se relacionar com mulheres; e Clarissa Vaughn, lésbica assumida, casada há dez anos com Sally (Allison Janney), vive os problemas de qualquer relacionamento.

          O Richard do filme se parece um pouco com o Peter do livro. Não gosta de festas, odeia convenções sociais e considera hipócrita a sociedade em que vive. Acredita que só ganhou o prêmio porque assumiu ser soropositivo. Richard não quer morrer para não estragar a festa de sua amiga Clarissa Vaughn, a quem chama carinhosamente de “Mrs. Dalloway”. Richard diz que sua amiga pensa pouco em si mesma (como a Clarissa do livro), e que não deve abrir mão de si por causa dos outros.

          O beijo que Clarissa Vaughn, casada com Sally, dera há anos, e que lhe marcara profundamente, fora em Richard. Ela ainda o amava. Observamos aqui uma inversão em relação ao livro, pois Clarissa Dalloway, a personagem literária, beijara furtivamente a Sally, e se casara com Richard. Ambas, Clarissa Vaughn e Clarissa Dalloway, porém, sentem-se na obrigação de serem felizes no casamento. A Sally do filme, esposa de Clarissa Vaughn, tem ciúmes do escritor Richard, e acha-o pedante.

          Laura, a personagem de 1951, tem em comum com Mrs. Dalloway o fato de viver no pós-guerra e de achar-se na obrigação de recompensar o marido de alguma forma. Mas Laura não se sente bem como dona-de-casa. No dia em que seu marido faz aniversário, ela, que está lendo o livro de Virginia Woolf, até que tenta, mas não consegue ser uma dona-de-casa convencional, e esta será a grande diferença entre Laura e Clarissa Dalloway. Laura promete abandonar a família assim que der à luz ao segundo filho, o que cumpre para desespero do pequeno Richard.

          Virginia está furiosa porque não pode ir a Londres, por orientação médica. Acha os médicos vitorianos desprezíveis, como no livro o faz em relação aos médicos que tratavam de Septimus, marido de Lucrezia. Como ele, a Virginia do filme reivindica o direito humano de escolher seu tratamento. Lembramo-nos também da aversão de Septimus à medida com que Sir Bradshaw determinava o que é ou não normal. Ao examinar um pássaro morto trazido pela sobrinha, identifica-o como fêmea porque maior e menos colorida que os machos. Ela pensa, no momento em que ainda escreve o livro, em matar a personagem principal. Já o Richard do filme matara em seu livro premiado à própria mãe, Laura, pois nunca a perdoara pelo abandono.

          Richard lembra-se de sua mãe e chora. Ele está transtornado. Diz a Clarissa que não está disposto a enfrentar as horas após a festa, e todas as outras horas que restam. Richard, como Septimus e Virginia, ouve vozes. E como Septimus se mata, jogando-se da janela. Tal acontecimento trágico tira todo o sentido da festa que Clarissa Vaughn preparava.

          Voltamos a 1923. Virginia resolve não matar a personagem convencional, Clarissa Dalloway. Decide matar o poeta, Septimus, o visionário, a antena da realidade à sua volta.

          Clarissa Vaughn recebe a visita da mãe de Richard, Laura. “Então esta é o monstro?!”, é a fala da filha de Clarissa, Julia (Claire Danes), ao ver Laura.

          Laura acha terrível ter sobrevivido à família. Seu ex-marido, o pai de Richard, morrera de câncer, ainda jovem. A filha caçula também morrera. E agora o suicídio de Richard. Laura entende por que seu filho a matara no seu romance, afinal ela abandonara marido e filhos, e isso fazia dela um “monstro”, como dissera Julia.

          Laura, a leitora de Virginia Woolf, diz que sempre se sentiu deslocada. Explica que abandonou a família para não abrir mão de si mesma, e que não se arrependeu disto. Aguentou o quanto pôde a vida familiar. Ser uma perfeita dona-de-casa, como Mrs. Dalloway, significaria a morte para ela. E ela escolhera a vida. Ainda que isso tenha significado, de alguma forma, a morte de sua família.

Conclusão


          É interessante observar como Virginia Woolf traça o perfil da mulher ideal no contexto inglês das primeiras décadas do século XX: uma “perfeita dona-de-casa”, tão criticada pelas personagens Peter (no livro) e Laura (no filme). Especialmente naquele momento de mudanças para a mulher - que ganhava mais espaço e visibilidade - uma crítica como esta se fazia necessária. Como que para marcar os espaços que estavam sendo tão arduamente conquistados pelas mulheres, Virginia Woolf pinta Mrs. Dalloway com as tintas do reacionarismo, tão comum àquela sociedade. Pinta sua personagem principal desta maneira como que para despertar as mulheres de seu sono, forçá-las a mirarem-se no espelho e se indignarem com o seu reflexo de “perfeitas donas-de-casa”. Mais importante, para despertá-las para a necessidade de lutarem pelo direito à igualdade jurídica e à diferença existencial em relação ao homem. Luta esta que pode parecer - e de fato é -, a princípio, injusta, já que o cenário tem sido construído segundo as convenções masculinas.
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Não estou completamente certo, mas creio que o autor deste ensaio é Jerry Guimarães. Seja como for, foi extraído do blog www.oritameji.blogspot.com








Um comentário:

  1. Olá. Sim, o texto é meu, eu o produzi para uma disciplina numa especialização que fiz em Teoria e História Literária. Obrigado pelos créditos. Abraço!

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