sexta-feira, 14 de março de 2014

Teatro/CRÍTICA

"Uma vida boa"

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Ótimo texto em esplêndida montagem



Lionel Fischer



"Baseado em uma história real passada nos Estados Unidos em 1993, 'Uma vida boa' conta a história de B., que nasceu mulher e assumiu uma identidade masculina. A peça encena as consequências desta decisão, que acabou por levar ao assassinato da protagonista. A história que deu origem a 'Uma vida boa' gerou um documentário e o filme 'Meninos não choram'".

Extraído do release que me foi enviado, o trecho acima resume o contexto de "Uma vida boa", em cartaz no Oi Futuro Flamengo. De autoria de Rafael Primot, o texto chega à cena com direção de Diogo Liberano e elenco formado por Amanda Vides Veras, Julianne Trevisol e Daniel Chagas.

"Identidade de gênero é a característica segundo a qual cada pessoa se identifica como homem ou mulher. A incongruência entre identidade de gênero e fenótipo físico recebe o nome de Distúrbio de Identidade de Gênero. Viver esse estado é fonte de sofrimento crônico". Assim começa um dos mais respeitados artigos sobre o tema, de autoria de Louis Goren, da Universidade de Amsterdam, publicado na revista científica de maior circulação entre os médicos: The New England Journal of Medicine.

O referido artigo, dentre seus muitos méritos, contribui para esclarecer muitos equívocos sobre o tema, sendo o principal a confusão conceitual sobre o que caracteriza essencialmente um transexual. Neste sentido, cabe ressaltar (e aqui sou eu quem fala, não o citado médico) que um gay é um homem que gosta de homens, mas não pretende ser uma mulher, da mesma forma que uma lésbica, pelo fato de se sentir atraída por mulheres, não ambiciona ser um homem. 

De fato deve ser uma tragédia habitar um corpo que não corresponde à identidade pretendida. E o presente texto trabalha esta questão de forma exemplar, pois é literalmente impossível se evitar uma empatia total com a protagonista. E isso ocorre desde o início - ela se muda para uma outra cidade, tenta estabelecer novas amizades, exibe caráter, humor e doçura, e finalmente se apaixona por L. Tal paixão é correspondida, até o momento em que sua verdadeira identidade é descoberta pelo até então amigo J, que se encarrega de brutalizá-la até a morte, provavelmente por razões que sua boçalidade jamais admitiria.

Bem escrito, contendo ótimos personagens, diálogos fluentes e reflexões mais do que pertinentes não apenas sobre o tema central, mas também sobre abomináveis preconceitos e a maior praga que assola os homens desde sempre, a intolerância, "Uma vida boa" recebeu esplêndida versão cênica de Diogo Liberano, que contou com a colaboração de Léo Moreira.

Impondo à cena uma dinâmica algo sombria e claustrofóbica, valendo-se de marcas sempre diversificadas e muito criativas, e trabalhando os tempos rítmicos de maneira irrepreensível, o jovem encenador exibe o mérito suplementar de haver extraído irretocáveis atuações do elenco. A começar pela de Amanda Vides Veras, que encarna a protagonista, e que incluo entre as mais brilhantes - senão a mais brilhante - da atual temporada.

Ao construir a personagem com grande economia de gestos e trabalhando a voz em um registro que dispensa desnecessários arroubos, a atriz deixa claro que seu caminho interpretativo nada tem de epidérmico, muito pelo contrário, é como se nascesse de suas entranhas. E cabe também registrar sua inteligência cênica, evidenciada pela natureza de suas escolhas. Sob todos os pontos de vista, estamos diante de uma jovem atriz que reúne todas as condições para trilhar um belíssimo caminho, que espero que seja abençoado pelos sempre caprichosos deuses do teatro.

Vivendo L, Julianne Trevisol consegue materializar, de forma extremamente tocante, toda a trajetória emocional de sua personagem - até um certo momento da peça, não a imaginamos capaz de possuir a coragem e a sensibilidade que evidencia na parte final, quando não apenas entende o que acontece com B, mas reafirma seu desejo de com ela construir uma história. Na pele de J, papel de menores oportunidades já que não sofre uma transformação significativa, ainda assim Daniel Chagas exibe performance totalmente convincente, trabalhando com extrema segurança um personagem que simboliza toda a boçalidade e violência de uma sociedade totalmente doentia como a norte-americana.

Na equipe técnica, Brunella Provvidente assina uma cenografia abstrata e altamente expressiva, basicamente composta por estruturas finas de aço, conferindo à cena uma atmosfera que permite constatar a fragilidade inerente a todas as memórias. Daniela Sanchez responde por uma iluminação apoiada nas relações claro/escuro, contribuindo decisivamente para o aprofundamento dos climas emocionais em jogo. Igualmente irrepreensíveis a angustiante trilha sonora de Diogo Ahmed Pereira e os expressivos figurinos de Bruno Perlatto, em total sintonia com a personalidade e condição social dos personagens. Cabe também registrar a magnífica direção de movimento de João Pedro.

UMA VIDA BOA - Texto de Rafael Primot. Direção de Diogo Liberano. Com Amanda Vides Veras, Julianne Trevisol e Daniel Chagas. Oi Futuro Flamengo. Quinta a domingo, 20h.





Um comentário:

  1. Boa tarde! Gostaria de saber qual a data de publicação da revista "The new England Journal of Medicine" em que Louis Goren disponibilizou seu artigo. Obrigada!

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